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8 de agosto de 2005
O PESQUISADOR DE CHURRASCOS
Faço pesquisa com churrasco há décadas. Jamais acerto, pois sou fiel ao processo clássico da busca do conhecimento, o da tentativa e erro (com ênfase para o erro). Normalmente provo o resultado de minhas experiências sozinho, ou com a ajuda generosa dos familiares. Mas às vezes, compartilho com algumas visitas, pois sempre há a esperança de ter chegado a um patamar um pouco acima do zero em eficiência. Fui convocado para esse tipo de experiência por minhas raízes pampeiras, mas a cada braseiro comprovo a tese de que assar é uma arte, jamais um ato voluntarioso. Minha mais recente vítima foi Rodrigo Schwarz, que veio especialmente de Joinville neste domingo para arriscar-se na minha churrasqueira. Sua gentileza e esforço faz parte do seu talento. Para homenagear o amigo, reproduzo a resenha que publicou no sábado, no caderno de Cultura do Diário Catarinense. Um texto sobre a maldição do nosso ofício, que por meio do exemplo de John Fante nos enche de gás para o que der e vier. Rodrigo é escritor de primeiro time, que lançou recentemente seu primeiro romance.
"UM REBELDE QUE NÃO ESMAECE
Obra de John Fante publicada após sua morte marca a estréia do controverso personagem Arturo Bandini
RODRIGO SCHWARZ/ Jornalista e escritor. Autor do romance A Ilha dos Cães (Bertrand Brasil, 2005)
Livros póstumos costumam macular a bibliografia de um autor. Em alguns casos, herdeiros de escritores célebres esvaziaram, com a responsabilidade de um saqueador, o conteúdo das gavetas dos finados escribas, tentados pelas cifras ofertadas. É graças as suas viúvas que acabaram no prelo obras irregulares e inacabadas de talentos como Alberto Moravia, Italo Calvino, Borges e Hemingway. Felizmente, esse não é o caso de O caminho de Los Angeles (tradução de Roberto Muggiati, 208 págs. R$ 31), de John Fante, publicado agora no Brasil pela José Olympio. Apesar do manuscrito ter sido descoberto entre os papéis de Fante após a sua morte, em 1983, o livro é, na verdade, o seu romance de estréia. Se continuava inédito, não era por desprezo de Fante, e sim, do mercado editorial, incapaz de digerir o conteúdo provocante do original.
Fante iniciou a obra em 1933, aos 24 anos. Na época, havia despertado a atenção do meio literário norte-americano devido aos diversos contos publicados em revistas como as prestigiadas Harper's Bazaar, Esquire e The Atlantic Monthly. Foi com grande entusiasmo que o jovem ítalo-americano ávido por sucesso recebeu a proposta da editora Knopf: um adiantamento de US$ 450 para escrever um livro em sete meses. Fante enclausurou-se em um apartamento de sótão em Long Beach, dedicando-se, com exclusividade, ao projeto. No entanto, mesmo não sendo um prazo exatamente espartano o determinado pela Knopf, ele não conseguiu entregar o original a tempo. Só três anos depois Fante pôde finalizar o romance, reescrevendo as primeiras cem páginas e cortando alguns excessos. O manuscrito o agradou bastante, como comprova a carta endereçada ao amigo Carey McWilliams: "O caminho de Los Angeles foi terminado e, rapaz!, como isso me alegra... Tem passagens de chamuscar os pêlos do rabo de um lobo. Pode ser forte demais; isto é, faltar-lhe 'bom' gosto. Mas isso não me incomoda."
As editoras não partilharam da opinião de Fante. De fato, o personagem de O caminho de Los Angeles, Arturo Bandini, apresentava um comportamento revolucionário para os anos 1930 - e ainda hoje continua difícil de ser superado. Arturo Bandini era um rebelde em uma época em que rebeldia não vendia livros. Só uma década depois, com a chegada dos beatniks, é que o estilo e a temática de Fante passaram a ser apreciadas por um público maior. O estilo e a temática, não os títulos protagonizados por Bandini, que fracassaram comercialmente quando aportaram nas livrarias, no final dos anos 30 (ao contrário da primeira aparição do personagem, os outros dois romances que Fante escreveu sobre ele foram editados: Espere a primavera, Bandini, em 1938, e sua obra-prima, Pergunte ao pó, que saiu um ano depois).
É em O caminho de Los Angeles que Bandini mostra-se de forma mais irascível. Como o autor, Arturo Bandini é um jovem ítalo-americano vindo de uma família pobre. Para ele, amante dos bons livros e ateu, é extremamente penoso o convívio com a mãe ignorante e com a irmã devota. Pior: elas exigem que o rapaz trabalhe para pagar o aluguel do apartamento onde moram. Bandini, então, se aventura por uma infinidade de subempregos, sendo demitido rapidamente de todos por sua intolerância em conviver com pessoas que, diferente dele, "não se alimentam da carne de Nietzsche". Sempre empunhando um livro do filósofo alemão, Bandini vocifera com seus efêmeros companheiros de trabalho, tratando-os como um rebanho de bestas. Afinal, é Bandini o escritor. E, apesar de raramente redigir algo, se autoconfere o título de gênio. No seu primeiro dia trabalhando numa fábrica de enlatados, avisa aos funcionários que estão na presença de um escritor digno de um Nobel. Após a fala, vomita na frente de todos, devido ao cheiro da sardinha destripada, provocando uma explosão de escárnio em toda a fábrica.
Bandini é um personagem quixotesco, acredita em algo que apenas ele enxerga, mas faz o mundo pagar por não concordar com sua visão. Pelo menos, as pessoas ao alcance de suas blasfêmias. E os animais. Sim, como nos livros de Hemingway, diversas espécies são exterminadas pelas mãos do personagem. Contudo, enquanto nas obras do autor de O sol também se levanta são sacrificados imponentes touros e gigantescos marlins, Bandini contenta-se em pulverizar caranguejos e insetos. Invariavelmente, por achar que os pobres bichos duvidaram de sua grandiosidade, de sua condição de super-homem nietzschiano.
Em O caminho de Los Angeles, o comportamento de Bandini é tragicômico demais para aproximá-lo da vida de Fante, como é o caso de Espere a primavera, Bandini e Pergunte ao pó, trabalhos imbuídos de um forte tom confessional. Não que inexistam traços autobiográficos no romance de estréia. A relação problemática do personagem com a mãe e a irmã espalha-se na do próprio Fante com seus familiares. E a ambição de Bandini equipara-se à do seu criador. Fante era obcecado por obter fama e dinheiro com sua literatura.
Fracassando em sua meta, passou a escrever roteiros de cinema, e a aprofundar-se em suas ocupações prediletas: a bebida e o jogo. Após o lançamento de Pergunte ao pó, publicou apenas quatro títulos, num período de mais de 40 anos. Nesse intervalo, vários originais foram rejeitados. Por recusar-se em largar as garrafas, mesmo após ter sido diagnosticado com diabetes, acabou perdendo a visão e as duas pernas. Antes da doença, seu temperamento volátil, sempre inflamado mais ainda pelo álcool, já tornava difícil sua convivência com os amigos e família. Quando a esposa começou os trabalhos de parto para o nascimento do quarto filho de Fante, ele a colocou sozinha num táxi, despachando-a para o hospital. Fante continuaria sendo um escritor cuja atribulada história pessoal era mais conhecida que as histórias criadas por ele; caso não fosse a intervenção de Charles Bukowski. Em 1980, Bukowski intimou seu editor, John Martin, da Black Sparrow Press, a reeditar as obras de Fante, bem como encaminhar ao prelo seus títulos inéditos. Pressionado pela popularidade de Bukowski, Martin aceitou a demanda. Assim, uma nova geração de leitores tomou conhecimento de que a prosa de Bukowski, assim como a de Kerouac, não era tão original ou transgressora como pensavam.
Apesar de jamais ter ido visitar Fante, que, cego, ditava os textos à sua mulher, Bukowski não economizava elogios ao mestre. "Eu era um jovem, passando fome, bebendo e tentando ser escritor. Nada do que eu lia tinha a ver comigo. Eu tirava livro após livro das estantes. Por que ninguém dizia algo? Por que ninguém gritava? Então, um dia, puxei um livro e o abri, e lá estava. As linhas rolavam facilmente através da página, havia um fluxo. Cada linha tinha a sua própria energia e era seguida por outra como ela. (...) E aqui, finalmente, estava um homem que não tinha medo da emoção", escreveu, sobre Pergunte ao pó.
Segundo Bukowski, o livro de Fante foi onde descobriu a mágica literária que o contaminou de forma irrevogável.
No romance O caminho de Los Angeles, Arturo Bandini é pela primeira vez conjurado. Conjuração feita com intensidade e perfeição demais para que a morte do autor ou a descrença das editoras pudessem impedir o enlevo dos leitores."
RETORNO - No La Insignia, uma reportagem cultural primorosa de Urariano Mota sobre a boçalidade das homenagens aos poetas do Recife. Vejam o que vão fazer com João Cabral e Manuel Bandeira.
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