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15 de agosto de 2005

O POVO NA RUA




As manifestações previstas para esta semana inauguram a participação de um protagonista que ainda é um enigma, o povo. O núcleo do drama não é a intensidade dos que irão gritar contra ou a favor do governo. Mas sim se essa mobilização, se houver, servirá ou não para o estopim de coisas mais perigosas. O tecido social, já rompido na prática pelo aprofundamento das diferenças de classes, poderá manifestar seu estado deplorável se houver insumo suficiente para a desesperança incorporada nas ações de rua. O que resta de costura nos grupos que ainda mantém uma identidade (partidos, sindicatos e mesmo a chamada maioria silenciosa) poderá fazer pender a balança para um ou outro lado. Na Internet, fala-se abertamente em golpe militar. Pelo que se sabe, as vivandeiras de quartel estão ou imobilizadas ou inexistentes. O deputado Fernando Gabeira, que com a crise recuperou sua lucidez, anuncia o debate de cenários possíveis a partir desta segunda-feira, entre os políticos não envolvidos com os trabalhos das CPIs. Diz Gabeira que procurar saídas tornou-se mais fácil, pois hoje nem se precisa debater a conjuntura, escancarada nos depoimentos online. Acho um equívoco. Não existe testemunha ocular da História, já que a História não pode ser vista a olho nu. O que está posta na mesa é nossa sobrevivência como sociedade em busca da convivência democrática, a legalidade das instituições e a continuidade, pelo menos na superfície, de um país pacífico que aprende a lidar com suas contradições. Isso exige produção de pensamento e ação estratégica preventiva.

HISTÓRIA - O que diz a História? O maior perigo é cairmos no anacronismo, ou seja, ver o passado com os olhos do presente. Mas o Brasil oferece farto material de estudo e situações similares. Vimos como um presidente, no atual regime, não pode eleger-se sem que tenha à mão recursos milionários e composições políticas que extravasam os limites das propostas. O problema é que todo exercício da presidência, entre nós, é uma continuidade das campanhas eleitorais. Os adversários derrotados querem o sangue dos vencedores, e têm conseguido. Foi assim com Getúlio Vargas, jamais perdoado por sua vitória nas urnas, e traído por seus assessores da área de segurança, que teve de arrostar o suicídio para ter voz no desfecho da crise. Foi assim com Collor de Mello, que no depoimento de domingo no Fantástico reconheceu que só não cometeu suicídio porque tinha prometido a Brizola não repetir o gesto de Getúlio. E está sendo assim com Lula, respingado pelas denúncias que inundaram seu governo de lama. As presidências que conseguiram terminar os mandatos são todas conservadoras. O Marechal Dutra, que segundo Darcy Ribeiro governou com os udenistas, Sarney, que é um demiurgo das adaptações políticas, FHC, que deu de comer a quem tinha fome de riquezas. Quem esteve identificado com qualquer tipo de ruptura (Vargas com o trabalhismo, Collor com a abertura, Lula com as reivindicações populares) são colocados contra a parede. O Brasil não encontra equilíbrio, dentro da legalidade, entre tradição e ruptura. Isso é fonte permanente de retrocesso.

HERÓIS - A morte de Arraes na maré alta da crise revelou algumas forças poderosas do atual momento. Em primeiro lugar, como notou Urariano Mota em seu artigo no La Insignia, a identificação total com o povo que o idolatrava, sinal de que uma vida dedicada às necessidades populares se foi para sempre. E não porque, com Arraes, pela primeira vez as pessoas pobres tiveram acesso ao rádio de pilha, como notou, toscamente, o presidente Lula no velório (ele acha que o povo é mendigo, não tem grandeza). Mas sim porque Arraes representa uma linhagem de políticos dedicados à causa nacional, e que por isso foram perseguidos e imobilizados. Outra força revelada foi a da existência, entre nós, de pessoas com real valor, ou seja, o Brasil tem capacidade de produzir homens públicos memoráveis, o que pode nos libertar dos grilhões da mediocridade vigente. O encontro (sem cumprimentos) entre José Dirceu e Caetano Veloso na madrugada diante do corpo presente, como conta Noblat no seu imprescindível blog, mostra dois vetores contraditórios da mesma geração. Dirceu encarna a pobreza cultural dos militantes de 68 que queria tomar o poder, mas eram conservadores na estética e na política, exatamente a denúncia de Caetano num festival de música. O pranto de Caetano diante do corpo presente nos devolve também o artista que rompeu e ampliou as comportas da música popular. Vê-lo chorando é lembrar o quanto foi importante nos anos de chumbo, quando sua palavra, seu som e seu exemplo eram nossos companheiros de estrada. Não se trata de um revival. Mas a revelação (mais uma ) de que os grandes artistas estão vivos e podem ser fundamentais nesta quadra de incertezas que atravessamos. Precisamos da transcendência da cultura para decifrar o enigma. A vida do país é importante demais para ser deixada apenas para os políticos.

POEMA - Do meu livro Outubro: "Ao Brasil tenho um recado: estou vivo, entornando caldo, na mesa comum, com as mãos em brasa. Dentro da noite, escuto a charanga da ressurreição, do parto".

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