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10 de agosto de 2005

CHAPÉU NAVEGA O CICLONE

Protegido pelo chapéu que ganhei, num aniversário não muito distante, do Delmar Marques, cruzei o ciclone extra plus invernal que se abateu sobre Florianópolis ontem e hoje e que exibiu, em cada palmo do território conflagrado pelos ventos de mais de cem quilômetros por hora e chuva pesada, os cadáveres de centenas de guarda-chuvas chineses. Para isso serve um chapéu de couro: para desmoralizar uma das muitas tiranias do nosso tempo, democratizadas pelo regime de 64, que continua em vigor. Um guarda-chuva chinês não te protege de nada, mas você precisa pagar o pedágio: todo mês você dança com oito ou dez reais para ter um desses troços, que quebram logo ao abrir. Ele faz parte das outras tiranias, também evidentes: juros que te saqueiam o bolso, desemprego que te destrói a auto-estima, fome, violência e filas em hospitais e escolas, que te envergonham. Como o rescaldo de um ciclone, o país exibe o esqueleto da sua ruína, quando aflora, sem máscara, para que servem as agências de publicidade que prestam serviços aos poderes, e para onde vai o dinheiro suado que nos falta. Mas eu preciso contar as histórias de São Paulo, quando havia esperança.

BARRA - Era um tempo de promessas. Acabara de lançar meu livro de estréia e com o dinheiro dos direitos autorais de mil exemplares comprados pelo Instituto Estadual do Livro do meu estado natal, enfrentei a tempestade paulistana, aquele mar de concreto e carros que te atrapalha a visão e te enche de perguntas. Como poderiam saber onde dobrar, para onde se dirigir, se tudo era igual, se não havia um bairro diferente do outro, e se a cidade era limitada por gigantescas auto-pistas de codinomeMmarginais, ponteadas por pontilhões assustadores? Bastava pegar uma rua qualquer para você parar em Cidade Ademar, seja lá isso onde for. Já estivera ali cinco anos antes. Tentara a sorte na megalópole e fui apoiado por Ayrton de Magalhães, o fotógrafo seminal que pela primeira vez escancarou a humanidade excluída da cidade onde foi criado. Ficara na casa dele por alguns meses, mas o esforço resultara em nova fuga, para Floripa, como sempre. Tentara então Vitória do Espírito Santo, novamente Porto Alegre e, desempregado novamente, encarei a barra da Paulicéia outra vez. Lá não me esperava Mario de Andrade, mas eu estava escritor militante e sonhava mais uma vez em viver de literatura. Consegui cravar na Planeta um conto sobre o ET que visita o subúrbio paulista, bate na porta de um cidadão e entabula uma conversa. O alienígena vinha porque fora chamado, pois vira um recado, posto por astronautas americanos na Lua, de que a humanidade estava pronta para recebê-lo. Como o ET não tinha noção de hierarquia, achava que em qualquer casa morava uma pessoa responsável por todo o planeta. Nosso suburbano ficou invocado e depois furioso e despediu-se de maneira abrupta. Esse final quebrou o encanto do conto, segundo Ignácio de Loyola Brandão, e talvez tivesse razão. Mas sempre fui turrão e mantive o conto intacto, no que fui respeitado pelo romancista posto editor da revista.

AJUDA - O outro conto, para o jornal Movimento, era sobre uma visita sinistra de um assaltante a um posto de ajuda aos desesperados. O cara domina a atendente (o conto é narrado na primeira pessoa da vítima) e obriga-a a tratar mal quem pede socorro. O conto também tem um desfecho em aberto, pois não se sabe se o cara mata a atendente ou não. Encontrei Flavio Aguiar, o editor de cultura do jornal, na rua, que me garantiu: é um bom conto, vamos publicá-lo. Com os mirreis arrecadados, fiquei um tempo sonhando que eu era escritor profissional. Mas logo bateu a ressaca e acabei numa redação. Por indicação de Jorge Escosteguy (sempre ele) fui trabalhar na TV Guia, da Abril, sob as ordens de Woile Guimarães, o sargento Guima, mais tarde diretor do telejornalismo da Globo. TV Guia não deu certo. Não foi talvez por eu levar marmita fria (arroz integral com gergelim e dois ovos duros) para um local de classe média estabelecida. Um migrante atraía a atenção geral. Todos me rodeavam quando eu abria a marmita. Eu era o pedreiro das letras. Copidescava Caco Barcelos e Audálio Dantas. Copidescava porque era a Abril: precisava colocar suculentas reportagens em textos de cem meias linhas. Quem me ensinou o truque foi o editor de texto Macedo Miranda, filho, que viera do Fantástico e descendia de um pai escritor, até hoje desconhecido e que foi o primeiro a abordar o futebol num romance.

SAMUEL WAINER - Quando a TV Guia acabou, Woile se achou responsável por mim e me indicou para Samuel Wainer, que me recebeu com desconfiança. Você é editor? perguntou. Menti que sim. Era apenas redator (só virei editor mais tarde, quando Mino Carta me ungiu no cargo). Samuel vinha de uma briga com grandes jornalistas da sua equipe e estava sem ninguém. Ajudei a fazer o fechamento e a edição e ainda montei uma equipe para ele. O jornal Aqui, São Paulo, tablóide, era a primeira manifestação de Samuel depois do exílio.Ele tinha sido o exilado número um, o cara que encabeçava todas as listas de perseguição. O velho mito comentava: Deu certo aquele negócio lá em Porto Alegre, não? Fizeram muito dinheiro. Ele se referia à Zero Hora, que nasceu logo depois do golpe de 1964, e ocupou literalmente (com redação e tudo) o lugar da Última Hora. Samuel se referia ao seu ex-império com muita tristeza. Amargava ainda um exílio do jornalismo que ajudou a transformar (e que mudou para sempre, deixando para trás a glória que o lançou na vida nacional). Naqueles idos dos fins dos 70, fui agraciado com reportagem de página inteira na Última Hora de Sampa (já nas mãos da Folha), com direito a fotaça e título generoso de Poeta do Povo. Só agora, com o caderno cultural Encontro, de Uruguaiana, editado por Ricardo Peró Job e Vera Ione Molina, ganhei idêntico destaque. Depois do Aqui, São Paulo, Scotch (sempre ele) me indicou para a Folha de S. Paulo, para onde fui trabalhar com o Zuba, Antonio Carlos Coutinho. Zuba me colocou lá sem avisar o editor da Ilustrada, o Tarso de Castro. Mas Tarso chegou para mim, com seu jeito franco e poderoso, me apertou a mão e disse que iria dar um jeito. Sem saber, eu estava fazendo História. Quando conto essas histórias hoje, recebo olhares admirados. Mas isso era o normal das redações. Trabalhávamos com os maiores e deles tirávamos as principais lições. Cruzamos o ciclone do tempo vestindo o chapéu da solidariedade e aqui estamos diante do desconhecido, destelhados de uma nação que deveria ser outra, mas que um dia será o fruto de nosso sonho e do nosso suor.

RETORNO - 1. O Pesquisador de Churrascos cometeu novamente. Aproveitando o breu, já que faltou luz na maior parte da ilha, decidi transformar o rescaldo do churrasco de domingo (uma maminha guardada no freezer) numa nova experiência. Dispunha apenas de um saco de carvão e o resultado foi carne crua. Mas uma breve fritada na frigideira com azeite de oliva deu vida a mais essa acometida na arte de assar, com um detalhe: tudo foi feito no escuro, pois chegamos tarde demais às compras de velas, que acabaram rapidamente aqui no norte de Floripa. Churrasco no escuro fritado no azeite de oliva, acompanhado do estoque de cervejas depositado aqui em casa por Rodrigo Schwarz: eis mais uma tentativa e erro do emérito Pesquisador que, no pampa, aprendeu tudo, menos fazer direito uma carne. 2. Ricardo e Vera estão de parabéns pelo Encontro, que já teve sete edições. 3. Cícero Galeno Lopes escreve agradecendo sua inclusão na minha lista dos 15 melhores de literatura e me avisa que está me enviando seu novo livro.

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