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29 de julho de 2020

RÁPIDA


Nei Duclós

A vida é rápida
Como nos insetos e aves
E as plantas que tomam conta da terra exausta do dilúvio

Assim como tu, que depois de uma noite
Some para sempre
E ficas inacessível como pedra lisa
No alto da montanha mais íngreme

Não há memória que te restitua
Criatura que Deus permitiu e depois sentiu remorso
A beleza dói como um ferimento
Que não cicatriza



RENASÇO


Nei Duclós

Lá onde morro de vez
Renasço
Corte rente ao pescoço
Corpo de aço
Aprendi a ser moço
Mesmo na unha
Tenho você ao lado
De testemunha

Lá onde perco o dia
Refaço
Costura de sonho tardio
Maçã dourada
Vieste em pleno frio
Lã de legítimo
laço

Quem decidiu já foi
Firmei o passo
Poema que em ti anunciou
É o mais compacto
Subo no monte e recito
Na língua mater

Lá onde jogaram ao rio
Meu rosto grave
Riso de anjo reabriu
Um novo espaço

O amor eterno venceu
Todo o cansaço



DETALHE


Nei Duclós

Parece sempre a mesma noite
Mas há o detalhe do elástico preso
Um beijo que erra o alvo
E escorrega no batom
A renda que cede antes da hora
A saia que não desce a pele que arde

E assim o amor surpreende
As vezes com humor
Outras com drama
Silêncio na relação
Ou gritinhos de manha
Fazem de cada semana
Um novo acontecimento

Acabamos no chão
 e não na cama



FÚTIL


Nei Duclós

Não vou mudar teu pensamento
Achas que o prazer é fútil
E se acha em qualquer canto
E que alma é o que se impõe ao conceito
De relação entre diferenças

Pois bem. Fique a contento
Impedindo assim a minha chance
De ficar contigo no papel de amante
Preferes a ladainha de um discurso falso

Te falo, mística pastora
Que nenhum gado ou dinheiro compra
A devoção de resultados

Antes há pândega
Dos sentidos em viva confraria
Gostar é melhor do que se opor
E sei o quanto tremes
Em teu púlpito



PROFANO


Nei Duclós

Namoro que dura dois dias
Como fogo de palha
Apesar de pintar intenso
É  sinal dos tempos?

Não  seguramos a barra do sentimento
Preferimos a solidão, o retiro profano
Não  acreditamos e o amor tomba por falta de fé

Volta, você  que se afastou sem ir embora
Estás  aqui, mas o encontro secou
Antes da hora



ADEUS À LENDA


Nei Duclós

Fim da pose
Da lenda pessoal
Todos são  comuns
Ninguém  é  o cara
Nem exibe aventuras que foram para o brejo

Todos de máscara  ficam em casa
É  o pesadelo da matrix 
Sonhamos o mundo nas redes sociais
Mas vivemos nos porões

Não  posso mais mentir
Amor que eu adiei
E hoje decidi ser teu



25 de julho de 2020

DE REPENTE O AMOR


Nei Duclós

Um novo amor veio de repente
Quando já não havia mais esperança
E o desleixo tinha tomado conta

Eu já estava fora do treinamento
E precisei correr para não perder a hora
Amor é como trem, não espera
Depois não adianta correr atrás

Entrei no comboio, ela estava no restaurante
Pediu o cardápio, eu lhe dei um poema
Depois acertamos tudo no vagão leito



DOCE PEREGRINA


Nei Duclós

Vão-se os sinais
Da precoce primavera
O inverno não hiberna, ruge
Impaciente com o calor fora de hora

Fechamos a casa, peregrina que demora
E nos recolhemos ao fogo dos abraços
Pode cair o mundo, estamos fora
Desse trôpego andar, flor dolorosa

Sob um teto, nosso amor, acolhemos solidários
Quem mais quiser refúgio em sua coragem

Porque é preciso braço na voragem
E rosto límpido de quem escolhe a arte



SEM MOTIVO


Nei Duclós

A distância decretada sem motivo
No auge da nossa longa relação
Jogou-me no deserto, bruto exílio
Do sentimento com fome de razão

Mas isso foi antes, agora achei oásis
Fonte amorosa e gentil
Já perdeste tudo
Espero que encontres algo assim



DIVINO LEGADO


Nei Duclós

O Criador repassa a solidão para a criatura
Sua prova de ligação com a divindade
Deus está só como alguém terminal em terra estranha
Sua herança se perde na imensidão da desventura

Não trago esperança, trago a poesia
Profeta sem carisma que apagou o nome
Ficou o testemunho, religião estranha

Recite na montanha
Prometeu que enfrenta abutre todo dia
Amarrado ao penhasco só tem a companhia
Da sua voz, legado no isolamento e na bravura



24 de julho de 2020

TARDIO


Nei Duclós

O amor veio depois que os corpos serenaram
E a brisa no lugar do vento forte
Aprendo contigo a sonhar além do agarro
Pleno de prazer agora dou um salto

Não que seja ilusão,  já é de tarde
Mas acompanho a paixão com sentimento
És a estrela norte eu o bravo
Que conquistaste com minha sorte

Amor tardio nascido antes
Que o paraiso existisse
Somos raiz e erva bruta
A gerar flor e fruto na planície



MEU CONVÍVIO




Nei Duclós


Sentes vergonha depois de expor teu sonho
Remorso pelo medo de ser vista
Pelos que não merecem tua íntima beleza

Pois comigo estás segura
Meus olhos são para dentro, sem portas ou janelas
Aqui te esparramas, flor do meu convívio
Mulher absoluta, sopro do divino


UMA AVE MARINHA


Nei Duclós

Longo foi o dia depois da noite contigo
Sumiste no amanhecer, ave marinha
Exausta de banhar-me com tua ousadia
Eu também me recupero e aguardo teu retorno
Habitante do amor que inauguras
Em minha outrora triste poesia



FIQUE POR AQUI


Nei Duclós

Fique por aqui, pássara noturna
Poema em cabeceira
Amores na coberta
Uma cama sem tamanho
Onde cabe o oceano
Poderás ser sereia
Capitã ou passageira

Nada falta neste espaço de veludo
Para tua pele lisa
Teus cabelos de estudante
Saia acima do joelho
óculos de arame

Estás perdida, papel de celofane
Vem que te amasso
beldade esplêndida



OS MIGRANTES


Nei Duclós

Fui empurrado para a poesia
Por calar-me diante da política
Terreno minado de extremo perigo
Com saldo negativo em qualquer lado

Deixo passar a borrasca ignóbil
De palavras que ferem mais que bala
Mantenho o espaço livre mas cercado
Pela desconfiança e a falsa realidade

Poema não é frágil nem um fugitivo
É apenss alimento. Assim sobrevivo
E levo junto os migrantes desse mundo
Que se agregam às forças do princípio
Quando havia luz de uma nova vida



O ACERTO


Nei Duclós

Nem sempre acerto o poema
Mas não conserto, deixo
Talvez a nova versão
Fique pior que o original
Que transcende o erro

Em época transparente
Desisti da gaveta
Posso arrumar um pouco
Mas mantenho o tom
Mais que perfeito
Que mostra o que faço
E sou. Poeta do ermo
Onde foge a perdiz
Em voo rasteiro
Da fuça do perdigueiro

Escondido no campo
Moro na chuva e no sereno
Capture-me, flor avessa

Ne

23 de julho de 2020

PRECOCE


Nei Duclós

A primavera chegou precocemente
Dois meses antes do combinado
Encerrou o frio do inverno provisório
E despertou o amor que estava dormente

Não qualquer amor, mas o mais quente
Em corpo de beldade deslumbrante
Romance físico,  mão que atinge a mente
E êxtase sem culpa

Natural como o dia sobre a noite
A resgatar o tempo que foi fora



TENHO TEMPO


Nei Duclós

Devíamos ter vivido como dois amantes
Mas ficamos distantes, como o sol e a lua
Eu desapareço no meu lado oculto
Enquanto brilhas, flor, num jardim inútil

Agora que entregas todo teu acervo
Para quem adoras desde o primeiro minuto
Vejo que não tive o dom da alegria
De te por nocaute no esplendor da cama

Mas tenho tempo para não parecer covarde
Deito em teu sonho, que em nós madruga



TESOURO


Nei Duclós

Despes, tesouro, teu corpo raro
Mais bela que uma deusa, glória permanente
Perdi tanto tempo sem te ver de perto

Eu estava distraído e tu atenta
Gozo o privilégio do teu assédio
Amoroso e ardente como um milagre
Louco de prazer com tua mágica
Aguardo mais momentos, paixão molhada



ESSA ARMADILHA


Nei Duclós

Solidão.  Faça um balanço
Das opções para sair dessa armadilha
Um novo amor, cada vez mais longe
Voltar atrás nas decepções

Só há você na adversidade
Todos estão bem nos seus jantares
Enquanto te sentes mal
Em todos os lugares

O mar também padece
Dessa doença
A Lua tenta levá-lo a passeio
Mas ele não acha graça
Nas marés



MARCA DOURADA


Nei Duclós

Já dizias sim mas havia obstáculos
Que o tempo não removeu, flor da praia
Estavas dourada ao sol da mocidade
E eu bizarro como um gigante magro

A vida passou, como tudo passa
Mas não apagou o fogo da marca
A idade diminui a violenta caça
Mas permanece o mesmo mar com açúcar

Hoje te encontro em poucas palavras
E aliso tua pele com mãos de urso
Salivas um tremor de puro naufrágio
Eu mudei o prumo, assumo ser bárbaro

Removo o entulho e mergulho em tua mágica



DESAFIO DO TEMPO NOVO


Nei Duclós

A casa é um palco, todos tem talento
A indústria do espetáculo entra pelo ralo
Música poema crônica teatro
Só falta o cinema deixar de ser o Mesmo
E adotar o tempo novo que se instaura

Toque na lata o samba do chuveiro
Diga a história que inaugurou a familia
Dance mesmo sem ser bailarino
Cante para o ouvido que te ama

Fim do gerentão do lixo dos estúdios
O pica doce das tendências e agendas
Os donos dos shows os ágrafos covardes
Que decidiam o que ler. Lemos os tubos

Adeus ano velho
Olá ano que nos desafia



PESCARIA




Nei Duclós


Guri novo, jovencito
Nunca fui de camperear
Mas me levaram no grito
Expedições de mosquito
Barro no arroio Rodrigues
Ibicui de arraia e areia
Uruguai tempo da cheia
Touro Passo e no Jarau

Friorento e sem camisa
Sem saber como pescar
Caniço que pega piava
Traira em linha de nylon
E de colher na corredeira
Dourado em postas no fogo
Rede pega grumatã
Pintado maior que o rio

Ficava sujo na beira
Micuim ardida coceira
Jipe com barco no teto
Barraca fedida do Exército

Voltava para ir ao cinema
Esquecia que a pescaria
Valia mais que um poema


TEU ESFORÇO




Nei Duclós


Vejo teu esforço,  flor do vale
Na casa sem descanso bruto inverno
Tudo tão escasso frio da barra
Sem companhia a não ser o rádio

Não pensas em outra coisa pele lisa
Lavrar os dias com o rasgo inculto
Da mão que te anima, só que está ausente
Querias a cor da primavera
Mas tudo tarda, foto do crepúsculo


UMA CRIATURA


 Nei Duclós



O amor nasce adolescente
Tímido prudente romântico
Depois deslancha vira criança
Brinca passeia se diverte

Então amadurece
Compromisso aliança filhos
Até ficar compacto rígido
Vive  à parte na lembrança

Amor quando morre gera luto
Como qualquer criatura
Só em sonho ressuscita


20 de julho de 2020

MUSA


Nei Duclós

Exausta de amar, sentas na calçada imitando teu alvo
Ela fica mais linda conforme vai se deixando levar
Pernas e braços atirados e o rosto de paisagem
Fazes o mesmo porque compartilhas esse cansaço da celebridade
Que resolveste dedicar tudo o que tens

Não sei quem é a musa
Ela, que te inspira e não te conhece
Ou tu, amor sem intervalo
Teimosa flor entregue a uma criatura que parece lenda
Mas é tua razão de viver


O SUSTENTO


Nei Duclós

O amor não cria raiz no vento
No que passa e não deixa rastro
Mas na terra adubada pelo tempo
A palavra que fica e dá sustento

O amor apaga a ilusão da balada
A festa provisória e seu remorso
E gera a planta que em teimosa pedra
Se alimenta

Não fale em nome do amor como confidente
Me dizem quando espalho no poema
Esse visgo em visita à eternidade

Posso falar mesmo sem decreto
Porque sobrevivi e estou desperto
Acho água no coração deserto
Navego onde falta mar e não há velas
Só o leme desta lucidez amarga
A seguir o sonho de existir para sempre



FADA ARISCA


Nei Duclos

Demoro a ser descoberto
Tens muito a dizer e não enxergas
Aguardo minha vez na lua oculta
Em véspera de nuvem tempestuosa

Virás com a rosa que te dei um dia
Quando passavas gloriosa pela rua
E eu atirei a flor que desperdiças
Não por muito tempo, fada arisca



DIÁRIO



Nei Duclós

Faço tudo cedo
A cama o café o banho
A roupa a louça o livro
A compra o uber o poema
A espera do almoço
Em mãos experientes

Estendo as cobertas
Navego na rede
Escrevo o frila
Atualizo o blog
Visito o twiter
Ração e água para o cachorro
O varal no vento
Fotografo nuvens

E sobra tempo para pensar besteira
Até o sono demorar
Madrugada adentro
 

DOIS ESTRANHOS


Nei Duclós

Não tenho nada a ver com você
Dormimos separados,  vivemos sem amor
E mesmo que fôssemos juntos à missa ou à feira
Seríamos o que somos, estranhos

A mocidade nos iludiu, nunca houve futuro
Éramos tontos e solitários
E hoje somos o que?
Espécies opostas no mesmo aquário

Voltaremos aos nossos planetas de origem
Tu à Terra
Onde és árvore e água
Eu a Júpiter ou Marte
Tanto faz
Onde sou pássaro



17 de julho de 2020

BRINQUEDOS


Nei Duclós

Os tempos tornam-se bons com o tempo
Perdem o ranço do presente
Viram memória, literatura
E você quer voltar ao que era antes
Mas hoje é quem comanda
E não nos damos conta
Que ele é bom mesmo sendo tirano

Assim vivemos
Novelo de lã nos brinquedos
De um deus criança



DATADOS


Nei Duclós

Tempo de resgatar o que perdemos
Por soberba ou pouca idade, o que dá no mesmo
E que sobrevive a nós;  únicos datados
Enquanto os fatos alcançam a eternidade

Longevos agora vemos com clareza
O que não prestou em nossa natureza
De achar que o mundo se dobraria
E ficaríamos incólumes pilares de um templo

Mas vergamos e somos hoje mais antigos
Que nossos pais
Sem a sabedoria desprezada
E a lucidez que nos cegava

Mas o destino é indiferente ao remorso
E mantemos a escrita por teimosia
Tarde demais para desligar o bruto arranque da nossa lendária mocidade

Queríamos ficar vivos simplesmente
E sentir o sabor do cosmo em movimento



MESMO RITMO


Nei Duclós

Onde a arte na rotina?
O amor no gesto repetido
O passo em rodízio
No mesmo espaço do limite

Qual o sentido de acordar
Sempre no mesmo ritmo
Deitar comer, sair para voltar
em seguida
como se estivesse
fugindo

Só que o destino
É este esconderijo
De palavras ditas em tom baixo
Já que perdemos o vício
Do encontro como comício
Eventos de gritos
Arquibancadas em estádios
Hoje vazios

O poema aguarda melhores dias
Cultivando não se sabe o que
Em suas mãos que permanecem frias



14 de julho de 2020

SERENATAS


Nei Duclós

Não se assuste com os passos
Que passam em sua janela
São de serenatas que faço
Sem voz violão ou conversa
Só eu, ausente no todo
Mas capaz de pisar forte
Mesmo com meu pé de vento



NÃO NEGO AMOR


Nei Duclós

Não nego amor que me convoca
Nem descarrego na beira da calçada
Transporto amor na minha estrada
Cubro com ele o que me falta

Parece conversa jogada fora
Indiferença em roupa de gala
Mas não é só flor ou açúcar na água
É pele de bicho que se estica ao sereno

Amor é veneno, mata
Para que desperte a dor de ser humano
Já leste isto, gata
Eu me repito porque assim te amo



ARTE AGORA


Nei Duclós

A arte se despe
Das luzes, do palco
Da maquiagem
Das plateias dos teatros
Das bilheterias
Dos lançamentos vernissage
Entrevistas coletivas sessões de fotos autógrafos
Dos microfones câmeras caixas de som eletricidades

O artista cru sobre um prato
Sem estúdios equipes agentes diretores falas

A arte em si mesma
O corpo como instrumento
Na cozinha na sala
A cara lavada o gogó escasso
Sem ver nada, o público confinado
A arte de volta ao que era antes de ser levada para os palácios

O tribuno em cima de uma pedra
Um profeta no deserto
Um poema que o vento leva
E pousa em teu coração
Aberto



11 de julho de 2020

OBJETOS


Nei Duclós

Objetos são exigentes
Estão sempre a pedir limpeza
São desobedientes
Feitos de materiais imprestáveis
Sobra de lixos industriais
Com btilharecos na aparência
A exibir-se em lojas caras

Os sapatos que não entram
A roupa virada do avesso
Facas que não cortam
Tesouras cegas
Furos no encanamento
Telhas soltas
Sótãos sinistros
Porões antidiluvianos
Portas que ringem
Fechaduras  que enferrujam
Ferramentas que emperram
Badulaques que despencam
E esses móveis que combinam a derrocada
Com o Tempo

Objetos atormentam
Quem insiste em ser sujeito
No mundo impessoal e obsoleto



ÍNTIMO DESEJO


Nei Duclós

Tão sutil teu gesto
Quase imperceptível
Batom invisível beijo sem deixar rastro
Íntimo desejo de vocação feminina

Por isso admiro o próximo passo
Quando acordares feliz de estar comigo



SEM ASSINATURA


Nei Duclós



Culturas gravadas em barro e pedra
Em grutas paredes escadarias
sem assinatura
A mão invisível projeta o testemunho
O artista some
O monumento fica

Nós sumiremos junto com a obra
Papéis podres telas com chuvisco
E as cinzas dos livros perdidos

Melhor compor agora
Uma canção que os pássaros memorizem
E repitam numa futura janela
Onde me esperas, amor que não pertence ao Tempo
Amante imprevisível




CEDO


Nei Duclós

Cedo, do verbo ceder
A noite cede ao dia
Seus íntimos tesouros
E a ele se mistura
Em forma de sombras

Assim como eu sobrevivo no escuro
Sob as folhas que brilhas ao sol
Mulher poesia



PERTO/LONGE


Nei Duclós

Vim de longe porque perto não havia nada
A não ser o passado
mordendo os calcanhares
Por todo lugar
estive só de passagem
Certo que no fim da linha
Iria encontrar-te

Agora sou o próximo
porta-estandarte
Desfilo em tua honra
No camarote
tens meu coração
Vestido de palhaço



DUENDE


Nei Duclós

Onde coloquei a palavra?
Estava comigo ainda há pouco
Queria usa-la numa fala

Talvez seja melhor assim
Buscar outra
na escuridão deste tempo
Indecifrado ainda
Pálido duende



PURO ENIGMA


Nei Duclós

Quando vestígios são reconhecíveis é porque fazem parte de passado recente. O passado remoto é caixa fechada: monumentos de pedras templos derrubados altares toscos rostos de gigantes encravados nas montanhas degraus para pés imensos grutas assombrosas fingindo-se naturais. Não há tesouros nem tronos ou papiros. Apenas a paisagem bruta em forma de catedral e fendas que revelam a luz fugidia nas mudanças das estações.

Quem poderá decifrar o que está oculto sendo tão explícito?



PORTO SECO


Nei Duclós

Esperei por você no amanhecer supremo
Bastava um aceno flor que não alcanço
E continuo em guarda no meu porto seco
Nem existe mar que te deixe à deriva

Vem, barca de verbenas
Vem perfume de jasmim
Corte o nó com teus fios de veludo
Venha, você que é tudo
E que chega inspirada pelo vento
Mensageiro do amor e da esperança
Venha reduzir a pó meu desespero



7 de julho de 2020

CARTEADO


Nei Duclós

Se eu desço em ti como querias
Finges um mal entendido
Gostas de ver o mico
que pago ao descalçar as botas

Jogos de amor, como no pôquer
Não entendemos e acabamos perdendo

Riem de mim os calaveras
Mas venço ao te bater pesado



SOMA


 Nei Duclós

Que mais posso dizer do teu poema
Esse que ostentas no rosto sem dizer palavra
E que por eu demorar você me bloqueia
Como se fosse crime o provisório silêncio
Só posso dizer me adicione
Para que eu volte a viver
Do amor que exerces em cada letra



ORIGEM DE PEDRA


Nei Duclós

Tudo virou pedra
Os deuses, os altares
Os templos fecharam-se
E toda civilização é agora apenas vestígio
De uma natureza selvagem

Como vamos compreende-la
Mãe de todos os cultos
Água que ainda escorre
Em petroglifos sagrados

Pisamos num território
Que é o mistério da origem
E a ligação oculta
com as estrelas



DENTRO E FORA


Nei Duclós

Beleza é relativa
O que está dentro aparece
O que está fora desanda

Vi você entre as ruinas
De um mundo feio
Teu rosto era o futuro
Perfeito

O que mata passa
Sobrevivemos



VENTO SOLAR




Nei Duclós


Não fale nada
Ninguém quer escutar
Não olhe na direção errada
Melhor sobreviver

Mas não se tecolha
Concha não aprende a voar
Converse com os pássaros
Do preamar

As nuvens ouvem
O que tens a dizer
Montanhas falam
Com o vento solar


AFOBADO


Nei Duclós
 
Não usas mais nada porque eu tirei
Afobado por tanto esperar
Agora estas com frio
Recusas qualquer cobertor
Queres minha pele, louco amor


AMAR A MULHER


Nei Duclós

Amar a mulher
Seja quem for
A mesma mulher
Idêntica flor
Amor à mulher
O rosto melhor
Poema de cór
És o que sou
Palavra e calor
Presente do céu






DOIS PILARES


Nei Duclós

Não erro a mão do poema
Porque sou o que ele espera
Pastor que vela o rebanho
Carpinteiro e confidente
Cada obra ganha o mundo
Com dois pilares do templo
A fé que maneja o relho
Luzes do conhecimento

Ele persegue a excelência
Sou seu aprendiz prudente
Carrego pedra e madeira
Nos projetos de um ofício

Não erro a mão no poema
O amor não perde seu tempo



3 de julho de 2020

PRESO


Nei Duclós


Confinado nos limites dos meus recursos
Não noto o quanto posso estar preso
Até experimentar um choque de realidade
Quando com pena te enxergam
Debatendo-se no escuro surdo e mudo

Todos plenos de si em suas normalidades
E tu, avesso outsider
És apenas um mendigo na terra de castas
Pontificas para o nada no quintal do teu drama

Penso nisso quando estou na cama
E me faltas, amor que não retorna


ESSE AMOR


Nei Duclós

Esse amor que te consome
E não abre espaço para mais nada
E que testa teu fôlego
Desafia teu olhar com sua beleza
Que não dá trégua por ser destino
Em que te coloca na exaustão extrema

Esse amor
Que todos dizem deixa
E não tens forças, apenas sentimento
Corvo abatido em pleno voo
Por um tiro impiedoso
é só o que resta
Na Criação de miseráveis perdas

Esse amor
Guardião ou gueixa
É a única felicidade em teus redutos
Onde te reduzes a uma surda
monstruosidade humana



ESSE OLHAR

Nei Duclós


Esse olhar que busca
Ou que de frente impacta
Até cair no espelho
Que trago no fundo de um poço
E que se estraga, meu amor ferrenho
Intenso ferrado

Tua imagem é o que dizes de mais nobre
Sem nada para discordar, puro conceito
Teu rosto peito
E tuas mãos que falam melhor
Conforme se aproximam

És feita de calor
Ninho da palavra de amor
E da verdade



EU TE INVENTO


Nei Duclós

Eu te invento sem saber o quanto
Digo o que vejo no fundo e na aparência
Isso basta para que te aplaudam
E te deixem com síndrome de glória
Enquanto vou para escanteio

Ensinam que o sábio aponta a estrela
E o idiota presta atenção no dedo
Já acho que apontar é o segredo
A linguagem que forma os eventos
Amar o alvo esquecendo a seta
É o que te faz metida a sebo



MUNDO AFORA


Nei Duclós

Hora de recolher o lixo
dentro do corpo partido
Parto de ar que se fina
em memórias de granito
Distrair a palavra no circo
de um renovado convite

Moro agora na paisagem do alívio
Trabalho para mais de uma vida
As ruínas ainda persistem
mas ficam além do martírio
Virei duro especialista
de uma ciência ainda no início

Mundo feito de escudos
emerge sobre o monturo
Hábitos que me desistem
Certezas de vulcão extinto
Como se eu fosse alienígena
de um planeta sem batismo

Combino com os semelhantes
o instante da semeadura
Terreno estéril sem planos
água escassa na cacimba
A verdade vem à tona
sem tempo para a vingança

Escrevo sobre as paredes
que balizam meu remorso
Nada resiste ao escombro
a não ser a nossa força
Acordo fora da sombra
O sonho vem em socorro


(Poema sobre o mundo pós pandemia)