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31 de outubro de 2008

A CHINA É VIZINHA


Não lembro quase nada do filme La Cina é vicina, que cheguei a ver no cinema, quando eu ia ao cinema, mas posso dizer com propriedade, graças ao Google, que é de Marco Belochio e de 1967. Tomei emprestado o título para comentar Still Life, ou Natureza Morta, ou Em busca da Vida, do novo cineasta cult chinês, Jia Zhang-Ke, nascido em 1970 e um veterano de boas produções. Esta, ganhou o Leão de Ouro de Veneza de 2006. Muito já foi dito sobre esse grande filme, que aborda o esgarçamento das relações sociais em meio à lenta submersão de uma cidade histórica em função da megausina Três Gargantas, projeto maoísta inspirada em Itaipu, e que será inaugurada no ano que vem. Prefiro enfocar as coincidências explícitas com o Brasil.

Nunca o povo chinês mostrado na tela foi tão brasileiro. O mineiro que se engaja nas demolições, as rodas de cigarro e aguardente, a aparente passividade, a malandragem ingênua, a afetividade navegando na frieza, os corpos suados e detonados em meio às ruínas. Zhang-Ke filma lentamente, como Wim Wenders em Paris, Texas, e revela a grande paisagem do interiorzão do país se transformando junto com seus habitantes. Os subúrbios sujos, os edifícios encardidos, os terraços favelados, as salas aglomeradas, as pensões baratas, as conversas intermináveis sobre dinheiro, o barulho, a tristeza sem fim.

É tão desumano o que está sendo feito, é tão deteriorado o ambiente, é tão imóvel a mente das pessoas, é tão armadilhada a situação em que se meteram, que nenhuma ponte iluminada, nenhuma tecnologia de massa, como os celulares na mão de todos, nada, absolutamente nada poderá redimir tamanha tragédia. Mas o impressionante é que tudo isso tem o tom de um poema épico, jamais de uma agonia. É uma dissonância do discurso cinematográfico, essa força transmitida pela imagem em confronto com a fragilidade humana e das águas,montanhas e vegetação que submergem sob a pressão das decisões políticas e econômicas.

É um privilégio ver essa China que nada tem de milenar (idéia soterrada pelo comunismo de resultados maoísta e que segue firme na atual maré alta do capitalismo chinês). É um assombro ver que toda a tradição dá lugar à precariedade do eterno presente e só o que sobrevive como sinal de grandeza é essa busca pelos entes queridos e desaparecidos, esse esforço de reatar casamentos e filiações, essa força que empurra as pessoas de volta para os grupos destruídos pela avalanche da época. Filme de alta dosagem dramatúrgica, feita com atores amadores, para que tudo esteja livre da intervenção dos clichês e se sobressaia a grande arte desse diretor magnífico.

Nenhum país, a não ser o nosso, perdeu a noção do épico. Pois a radical mudança das nações clama por um cinema desse tipo, que chega ao delírio de sugerir discos voadores na impessoalidade cética dos habitantes, a brincar de surrealismo quando um edifício vira um foguete e sobe aos céus. Nós ficamos na pontualidade estéril, na exposição criminosa dos corpos, enquanto pessoas como Zhang-Ke encontram, no povo ao qual pertence, essa saga que se desdobra aos borbotões. Aqui acontece o mesmo na prática, mas nossos cineastas, em sua maioria, estão com as costas voltadas para esse mural de acontecimentos.

Precisamos seguir esse exemplo, precisamos nos emocionar com nosso país, ver com os olhos livres, enxergar o que está acontecendo conosco, criar/encontrar histórias em meio ao caos. Sob pena de submergirmos como a cidade de Fengjie em Still Life. A vida resiste por mais que o sertão vire mar e o mar sertão. O sopro monumental do povo diante do seu destino: eis a China de Zhang-Ke, eis o Brasil que precisamos ter em nossas retinas tão cansadas.

RETORNO - Imagem de hoje: cena de "Em busca da vida", de Jia Zhang-Ke. Um épico sobre a China contemporânea, obrigatório em todos os sentidos.

SERVIÇO DE ATENDIMENTO AO CLIENTE ORGANIZADO (S.A.C.O)


Os SACs, Serviços de Atendimento ao Cliente, foram feitos para deixar bem explícito o objetivo das corporações: levar o delas e te deixar na mão. Antes dos SACs, você duvidava se faziam isso de propósito. Se não entregavam o produto pago por algum descuido, jamais por má fé. Se te vendiam porcaria chinesa como se fosse indústria brasileira por um erro no sistema de tributação. Ou se te empurravam coisas estragadas por desconhecimento e não, como se descobriu por meio dos Sacs, que fazem isso porque gostam.

Pois tente “recramar”, como eles dizem (“ué, mas ninguém recramou até agora!” ). Você vira a serpente mordendo a própria cauda. Pois um te manda para o outro e o outro para o um. O expediente sacana que usam é abrir, indefinidamente, o chamado protocolo. Você “recrama” e eles abrem um protocolo. Aí fica tudo por isso mesmo. Você liga de novo e abrem novo protocolo. No décimo você desconfia que estão te fazendo de trouxa. Ou seja, o problema não é o gerundismo, isso é só sintoma da doença (“vamos estar te devolvendo o dinheiro” ha ha ha ha ha) . O problema é a bandalheira, mesmo.

Por isso criei o SACO – Serviço de Atendimento ao Cliente Organizado. Aqui, você aprenderá qual o verdadeiro sentido dos SACs, o que eles dizem entre si, com todas as letras, o que escondem nas entrelinhas e nas vozes agradáveis. Com esse acervo, você poderá usufruir melhor a quantidade de vezes em que é enganado e poderá assim mandar tudo para o saco sem precisar ir ao Procon. Você se organiza para enfrentar a cara de pau dos SACs. Não vai precisar mais dormir ao lado do telefone esperando o momento em que, enfim, ameaçam te ouvir e aí cai a ligação. Vamos aos itens:

SAC boa tarde. Rosicreide falando. Estamos aqui para atendê-lo. Enquanto isso, aproveita para ir tomar no teu cu.

O produto não chegou? Que pena. Deve ter sido desviado. É, sim, roubaram o caminhão. Aonde? Em Portugal. É verdade. Os portugueses agora deram para isso.

É produto americano, sim senhor. Não, não é chinês. Estragou na hora de abrir? Culpa sua. O senhor abre sem cuidado. Vamos abrir um protocolo.

Isso mesmo, não vamos entregar. Por que? Porque a fábrica faliu, ué. Aqui somos apenas um número de telefone.

Ah, a senhora recebeu o produto que dissemos que não ia ser entregue? Agora é problema seu. Comprou outro? O que vai fazer com o nosso artigo? Vende para o ferro velho.

Quer que a gente “busca”? A gente busca. Mas não vá querer receber de volta o dinheiro ou ganhar outro artigo substituto. Roubar a gente rouba, devolver, nunca. Não costuma ver o noticiário político não?

A senhora quer agradecer? Pelo quêêê? Ah, gostou do atendimento? Posso lhe garantir: foi descuido. Na próxima vez, e haverá próxima vez, já que a senhora está tãããão satisfeita, a gente provindencia uma sacanagem, entendeu? Vai agradecer quem te pariu. Saco.

RETORNO - Imagem de hoje: tecnologia de ponta de faca. Ninguém "recrama".

30 de outubro de 2008

CHEGA DE CLICHÊS


Aniversário tem tudo para ser um clichê, mas não foi isso o que aconteceu, pelo menos é assim que vejo neste caso. Foi bonita a festa dos meus 60 anos. Mais de 60 mensagens no Orkut. Por telefone a presença do litoral gaúcho, representado por Laís e Clovis Heberle (que estão prontos para passar temporada aqui em Floripa), Sueli Orsini Lobato (firme nos seus 90 anos bem vividos) e Geraldo Hasse (prestes a lançar seu novo livro, agora sobre a navegação no rio Uruguai); São Paulo por Dorival Jesus Augusto (sempre agitando novos projetos) e Daniel del Fiore, o piloto de aviões e de artes gráficas; sul da ilha por Virson Holderbaum (feliz com todos os filhos talentosos); Lagoa da Conceição por Tabajara Ruas (que está lançando novo e portentoso livro pela Record); Florianópolis/Curitiba por Luiz Carlos Duclós (também muito orgulhoso das filhas, me dando notícias sobre sua filha bailarina clássica Rita, que faz sucesso nos Estados Unidos). Por e-mail, vários, como Muts Weyrauch, prestes a gravar novo dvd, onde vai incluir o nosso Blues da Casa Torta. E minha irmã Védora, que lembrou minha infância, ela que foi testemunha do meu crescimento.

Exagerei na dose: anunciei o aniversário no Diário Catarinense (de onde veio mensagem magnífica do editor Dorva Rezende), no Comunique-se (onde novos e fiéis leitores mandaram abraços), aqui no Diário da Fonte (com o vídeo que arrancou elogios do ator maior Miguel Ramos) e no Orkut, onde durante todo o dia recebi parabéns. Assim fica difícil começar no dia seguinte! Dá vontade de fazer 60 anos todos os dias! Aqui em casa, muitos abraços das pessoas queridas e chegadas (esposa, filha, neta e filhos). Ida Duclós, no Orkut, resgatou os beatles e seus lendários futuros sixty four. Juliana Duclós, animada com seu blog Freak Mothers, fez homenagem com foto de Maria, a arteira impossível.

De Amsterdam, Daniel e Carla Duclós (prontos para conhecerem Londres no feriadão) me enviaram cumprimentos d´além mar. Daniel é destaque no site WTF Brasil, especializado em histórias bizarras de TI. Aos poucos, o talento do daniduc ganha seu merecido espaço. E ainda ganhei presentes! Miguel Duclós (a mil com seu site consciencia e com seus estudos nas Letras da UFSC) me brindou com maravilhosa garrafa de vinho do porto, outra de finíssimo azeite de oliva grego.

Mas precisamos voltar ao batente. E nada melhor do que voltar a bater. Tenho, ultimamente, escolhido os blogueiros da grande imprensa para receberem algumas saraivadas. Fico pasmo com a arrogância dos textos-pílulas (claro, são blogs! precisam ser bem enxutos!), por isso comecei a encher. Nada demais, já que ninguém lê mesmo, nem eu. Bueno, hoje voltamos a atacar os clichês, aqueles que nos atormentam. Pois não agüento mais a repetição do maravilhoso verso do Mário Quintana (“eles passarão, eu passarinho”) como se fosse a panacéia suprema da auto-ajuda. Entre outras barbaridades. Para desconstruir os trilhos do Mesmo, vamos arriscar novas fórmulas:

Não, o meio não é a mensagem. O meio é o meio e a mensagem, a mensagem. Senão haveria só um jeito de dizer vai-te catar.

Nem toda a unanimidade é burra. Se fosse, seria sinal de burrice.

Eles passarão, tu minhoca.

Toda crise é crítica. As oportunidades só surgem quando não há crise. As honestas, pelo menos.

A globalização não é irreversível. O que é irreversível é a mania de dizer esse tipo de coisa.

Aldeia global não existe. Uma aldeia é uma aldeia mesmo. O ermo não mora em Nova York.

O sonho acabou e Elvis morreu. E 1968 terminou. O que não tem fim é a elasticidade do saco de ter de ouvir sempre essas sacadas.

Quem paga para ver perde dinheiro. E ainda pode levar uma surra.

Mais vale dois pássaros voando, que dão uma bela foto, do que um na mão. O que você vai fazer com um pássaro na mão? Eu falei pássaro.

Um beijo no coração sai sangue. É crime.

O problema não é comigo, é contigo.

Eu não sei como você se sente.

Tudo o que é sólido nem tchuns para o ar.

Não, o Brasil não fez a lição de casa, foi reprovado.

Economia robusta é a que tunga o dinheiro aplicado sub o guarda-chuva da produção de pensamento.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: Mario Quintana, o poeta que advertiu, quando fez 70 anos: "Por favor, não me chamem de septuagenário".

2. Como no Orkut foi um assombro de tanta mensagem, fica difícil agradecer aqui um a um (o que já fiz lá no orkut mesmo). Mas não posso deixar de agradecer aos meus amigos e amigas de Uruguaiana, Ricardo, Rubens, Vera, Alice, Regina, Nanni, Vicente; jornalistas amigas como Julia e Francis; poetas como Selmo, Sidnei e Orlando; escritores como Urariano Mota; atores como Julio Conte; meu irmão maior, Elo, autor da melhor mensagem (Elo escreve como poucos); gurizada nova como Angelo e Clavio; e muito, muito mais, que não cito porque sempre acabo esquecendo alguém e isso não é legal.

3. Antonio Kleber de Araújo, carioca, não me deu os parabéns, mas abriu um precedente nesta pré-estréia de verão: comprou três livros meus, diretamente de mim! Muito bom exemplo. Tenho em oferta "O Refúgio do Príncipe", que pode ser solicitado via e-mail, como já foi anunciado aqui. Um conto assustador e crônicas de mar e pampa. As jóias do Diário da Fonte: Leitura no Elevador, Os Blocos do Mestre Bazinho, O Vigia do Mar, A Volta na Quadra, Bumba Meu Boi de Mamão, A Fazenda Azul, entre outros textos favoritos.

29 de outubro de 2008

DIA NACIONAL DO LIVRO

Decidi comemorar, na rede, meus 60 anos. Considero um feito, o fato de ter chegado até aqui. Como meus amigos mais próximos estão no mínimo a uns 30 quilômetros de distância, sem falar os que estão acima dos 500 até dos mil quilÕmetros, e ainda os que estão na Europa, a milhares de milhas daqui, minha vida social, eu que nunca fui de clubes, é a rede. Decidi então assustar os transeuntes colocando minha caratonha no video para recitar um poema meu que gosto demais, que é o Tarde, o primeiro poema do meu livro No mar, veremos. O resultado assustador pode ser visto aqui. Está também no you tube.


28 de outubro de 2008

UM POEMA DE COMEMORAÇÃO



Decidi comemorar, na rede, meus 60 anos neste 29 de outubro. Considero um feito, o fato de ter chegado até aqui. Como meus amigos mais próximos estão no mínimo a uns 30 quilômetros de distância, sem falar os que estão acima dos 500 e até dos mil quilômetros, e ainda os que estão na Europa, a milhares de milhas daqui, minha vida social, eu que nunca fui de clubes, é a rede.

Decidi então assustar os transeuntes colocando minha caratonha no video para recitar um poema que gosto demais: Tarde, o primeiro do livro No mar, veremos, que lancei em 2001 pela Editora Globo. O resultado pode ser visto acima (está postado no
you tube). Aviso que ao vivo sou ainda pior.

Ontem, dia 28, tive o privilégio de participar de uma mesa junto com o professor e poeta Alcidess Buss, na Biblioteca da Universidade Federal de Santa Catarina, sobre o tema livro. Buss levantou uma série de tópicos fundamentais, como a necessidade de aprovação urgente da Lei do Livro, que dorme nas gaveas do Congresso há cinco anos. Falou da sua experiência na Alemanha, onde compareceu na Feira do Livro de Frankfurt, anunciando o avanço dos e-books.

Buss chamou a atenção da necessidade de as bibliotecas se transformarem em centros culturais importantes e leu trechos de um abecedário sobre estratégias do livro, escrito há mais de vinte anos e de grande atualidade. Entre muitas outras coisas. O poeta Alcides Buss é um autor atuante, um intelectual brilhante e um mestre muito considerado.

Hoje, 29 de outubro, Dia Nacional do Livro, celebro autorias e leituras nesta rede de relacionamento que vai gerar ainda novas realidades culturais. Pois é no excesso que acabamos acertando. É difundindo nossos textos, poemas, comentários, análises, desabafos, é quando nos cumprimentamos, por mais en passant que possa parecer, aí é que mora a lenta a prazerosa construção de uma sociedade atuante e viva.

Agradeço a todos os que me visitam e principalmente os que comentam. O Diário da Fonte vai continuar, olhando para frente, os lados, para trás, para cima. Somos um veículo completo e viajamos como as naves da obra máxima de Stanley Kubrick, 2001, Uma Odisséia no Espaço, com o chão que inventamos, com o espaço infinito diante de nós e com a sintonia perfeita entre seres apartados, mas em permanente comunhão.

27 de outubro de 2008

ENCOSTO


Nei Duclós (*)

Palavra é como gente, possui mediunidade e, portanto, está propensa ao encosto. Sessentão, por exemplo, que serve para me definir a partir deste final de outubro, sempre traz ou trazia o adjetivo sacudido na garupa. Eu sabia (ou confiava) que chegaria aos 60, mas jamais imaginei ser um sessentão sacudido. Por muito tempo, a pobre da palavra portuguesa vinha, obrigatoriamente, acompanhada pela expressão “com certeza”. Não era só para rimar, era para definir uma identidade. Tudo o que é portuguesa ─ casa, família, mulher ─ tem ou tinha o com certeza junto. Hoje o com certeza tem vida própria, já que existe uma lei que obriga todo mundo a usá-lo.

Por décadas, não existia americano que não fosse tranqüilo, graças a um célebre livro de Graham Greene. Nem velha senhora que não fosse indigna, graças a Bertold Brecht. Morte, nos tempos áureos de Gabriel Garcia Marquez, era sempre anunciada , numa reprodução de massa que provocava a desconfiança de que todos os tituladores tinham surtado de vez. O pior era a cara de grande descoberta quando alguém “bolava” algo como “crônica de uma morte anunciada” para qualquer reportagem.

Já tivemos surtos de sonhos que acabavam todos os dias; e de anos que, ao contrário, jamais chegavam ao fim. Há casos graves que soterram conjugações de verbos toda a vez em que são invocadas. Diga-se, por exemplo, jamais poderá vir sozinha. É fundamental que seja acompanhada com o “de passagem”. O uso é tão excessivo que importante diretor de redação costumava bradar para as paredes: “Ninguém diz nada de passagem, as pessoas simplesmente dizem!”

O que impressiona é a resistência desses vícios, que voltam à tona ciclicamente. Quem chega aos 60 pode se desesperar se for identificado com algo como sacudido, dito por alguém de passagem, numa tirada de humor anunciado, o que nos faz querer fugir para o além mar, para uma casa portuguesa com certeza que irá nos acolher. O pesadelo maior será alguém chegar de microfone na mão e perguntar como é que “você se sente” chegando aos sessenta, e como é “essa coisa” de ficar assim, digamos, velho. São ameaças que devemos nos prevenir criando respostas rápidas e malcriadas. Espero não ter de usá-las.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 28 de outubro de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: em 2002, quando fez "O Americano Tranqüilo", Michael Caine, nascido em 1933, ainda era um sessentão sacudido. Continua em plena forma, como vimos recentemente em "O Cavaleiro das Trevas".

O LIVRO COMO INSTRUMENTO DE LIBERTAÇÃO


Dentro da programação da Semana Nacional do Livro, a Biblioteca Universitária da Universidade Federal de Santa Catarina promove nesta terça-feira, dia 28, no auditório Elke Hering, três palestras: às 8h30 - “Acesso e organização da Informação: publicações eletrônicas” - professoras Ursula Blattmann e Rosângela Schwarz Rodrigues (CIN - UFSC); às 10h - “Para gostar de ler...” - poeta e professor Alcides Buss; e às 11 horas, “O livro como instrumento de libertação” – que é o meu tema. Atendi o convite gentil da professora Roberta Moraes de Bem, depois que fui indicado pelo carismático Paulo Clovis, o PC, jornalista querido aqui da ilha e um dos editores do jornal Notícias do Dia. Sobre o assunto que escolhi vou falar um pouco aqui no Diário da Fonte, pensando alto já para o evento.

A servidão é fruto das relações econômicas, que geram as classes sociais e os sistemas de dominação, pelo pouco que entendi da literatura marxiana. Para rompê-la, é precisa que essas relações sejam transformadas. Não adianta falar em libertação, nessa ótica, sem que haja essa mudança. Passam-se os anos e por mais que sejam prometidas as tábuas de salvação, somos surpreendidos pelas crises cíclicas, que é, no fundo, o velho sistema em constante reacomodação para não mexer no principal. A solução leninista é a guerra, a luta revolucionária liderada por uma vanguarda esclarecida, que ao intensificar a luta de classes cria condições para uma intervenção política. Tudo isso é sabido. Mas tanto a guerra quanto a solução pacífica (outra saída que a prática apontou) precisa ser exercida com a cabeça feita. Ninguém luta no escuro.

Hoje, há uma percepção poderosa de que a guerra não leva à libertação, mas a mais servidão. A mudança sem o uso das armas precisa, mais do que todos os outros caminhos, de instrumentos como o livro. Pois a pressão escravista acontece hoje, na sociedade do espetáculo, por meio da manipulação das linguagens. Estamos impregnados de linguagem corporativa, de auto-ajuda, política, religiosa. A diversidade do livro, os redutos que representa de livre pensamento, a sedução que oferece por meio de obras de qualidade, exercidas pelo talento e pela sabedoria, é uma grande vantagem sobre a superficialidade dos outros veículos, todos eles às ordens de interesses variados. Não que não hajam interesses expressos no livro ou que seus conteúdos não sirvam para manipulações. Mas o livro, acredito, é que o oferece a margem maior de tráfego do pensamento sem as amarras. Ele pode libertar nossa percepção das armadilhas montadas em todos os cantos.

Qual o papel do livro nos momentos de transformação? Roberto Darnton, em suas teses, lançou novas luzes sobre o carisma do livro como instrumento principal da revolução iluminista. Antes de Darnton, achávamos que os grandes livros dos grandes autores tinham sido responsáveis diretos pela luta desenvolvida no front revolucionário contra a aristocracia. Sabemos agora que foi a disseminação, e até mesmo a diluição, da literatura essencial iluminista, por meios panfletários de autores que intermediavam as novas teses com a leitura da época, que ajudou a fazer a cabeça das pessoas engajadas nessas mudanças.

Recentemente Darnton tem se dedicado a fazer a difusão dos estudos de História por meio de uma linguagem mais acessível, pois sabe que os historiadores não trabalham para a leitura de massa. Ele se preocupa com o rumo que as teses universitárias tomam ao chegar ao grande público e por isso está engajado num esforço, idêntico aos antigos intermediários pré-revolução francesa, de fazer com que a cabeça do público chegue às esferas dos altos estudos. Lembro que aqui no Brasil Monteiro Lobato fez algo parecido com a cultura grega. De tabela, ele nos levou para leituras mais intensas, ao teatro grego, por exemplo. Lobato, com sua obra infanto-juvenil, formou sucessivas gerações de leitores e, mais importante ainda, de escritores. Quando leio e-mail de garota de 12 anos comentando nosso primeiro livro da trilogia Diogo e Diana (escrita em parceria com Tabajara Ruas) fico entusiasmado. Soube de fontes insuspeitas que esse livro – Meu vizinho tem um rottweiler (e jura que ele é manso) - foi o primeiro lido inteiro por vários adolescentes. Só isso já me enche de esperança.

A intermediação entre leitor e autor precisa ser bem resolvida. Gosto de citar Mario Quintana, que respondeu a uma professora que perguntara sobre o que deveria ler para entender Shakespeare. “Leia Shakespeare”, foi a brilhante resposta. A experiência nos ensina que, quando vamos direto às fontes principais, temos mais chance de entender os assuntos do que os grandes explicadores ou diluidores. Mas acredito que, no início do processo, quando começamos a nos familiarizar com os livros, a intermediação fundamental é a do professor. É no sistema de ensino que aprendemos a ler os grandes autores, graças ao apoio, ao auxílio dos professores. Não que eles sejam especialistas em grandes assuntos ou grande autores, mas são especialistas em leitura rica e proveitosa. Mais tarde na universidade, os professores são a base para a seleção e orientação sobre livros. Mas isso só vale quando o mestre nos deixa à vontade para ler com os olhos livres.

Com o e-book, e os conteúdos multiplicados na internet, como fica o livro impresso? Acho que ele continuará tendo sua função, pois nada substitui uma boa biblioteca. Muita coisa não está ainda na rede e levará algum tempo para que o universo digital possa competir com as ofertas existentes nos livros. Mesmo depois, quando tudo estiver na rede, abrir um livro continuará sendo um prazer renovado. Para olhos exaustos, então, que não suportam o cansaço gerado pelas luzes das telas de computador, uma página impressa é um alívio.

Acho que esses são os vetores principais do que vou dizer nesta terça feira na UFSC. Não muito mais do que isso.

RETORNO - Imagem de hoje: Monteiro Lobato. Sempre ele, quando se fala em livro.

26 de outubro de 2008

IMOBILIDADE, REGRESSÃO E LOUCURA EM "DURVAL DISCOS"


Nei Duclós

A demolição da loja que só vendia vinil e se recusava a acompanhar os tempos, no final do cult Durval Discos (Anna Muylaert, 2003) é a destruição não apenas de um negócio obsoleto, ou de uma construção velha, mas de todo o imaginário do país que se transformava na época em que ocorre os eventos da narrativa (1995). Essa superestrutura, nascida e criada na época da ditadura e que, em tese, se contrapunha aos poderes políticos do sistema, exibiu sua fragilidade no momento em que os protagonistas que dela se alimentavam não amadureceram. O dono da loja é o paradigma dessa imobilidade, que se estende aos outros personagens.

Durval (Ary França, antológico) não desvinculou o espaço profissional do doméstico. Vive com a mãe (Etty Fraser, definitiva) já sem capacidade física de manter a casa funcionando e que não entende o fracasso do empreendimento. O cabelo insistentemente comprido, inadequado ao visual do corpo marcado pela idade, no filho, e as roupas muito antigas, na mãe, são sinais evidentes de que pararam no tempo, incapazes de avançar. O que seria esse avanço? O reconhecimento do fim da adolescência, por parte do sujeito, e da chegada da senilidade, por parte da senhora.

Qual a saída? Seria o casamento, representado pela garçonete (Marisa Orth), que assedia o dono da loja em escapadas pretensamente para fumar, ou seja, fugir da tirania do pequeno patronato (a perua proprietária sempre com o filho pequeno nos braços). Mas o imaturo não reconhece que chegou a hora de casar, ter filhos, procurar uma solução profissional (no mínimo, tirar o ganha-pão do ambiente caseiro, do amadorismo). A velha não quer perder a mordomia do convívio com o filho, o mantém sob jugo e não aceita concorrência . Tanto não aceita, que se encarrega de atirar quando a moça descobre a menina seqüestrada sob custódia na casa/loja.

A criança (Isabela Guasco, perfeita), é a regressão. A velha quer voltar a ser mãe, o filho disputa o almoço com a menina. A infância abandonada pela mãe verdadeira, fingida e rica, que vive com a falsa mãe, a babá (Letícia Sabatella), acaba na mão dos seqüestradores. A filha não veio pelo amadurecimento dos personagens, e sim pela transgressão nesse mundo em ruínas. Ao pedir histórias de Cinderela e Branca de Neve, ao se fantasiar de bailarina, ao montar no cavalo branco (o símbolo do príncipe que um dia virá), a criança é a reprodução desse mundo imóvel, que recua. No filme, esse recuo deságua na loucura, quando acontece os assassinatos, a morte tanto da garçonete quando da babá, e o surto da velha, que não quer chamar a polícia.

A narrativa que começa tradicional, tipicamente brasileira, evolui para o surreal e o bizarro. É incrível como elementos simples (a carroça no asfalto, o cavalo no quarto, o sangue na parede) funcionam. Elogiadíssima, com justa razão, a diretora e roteirista Anna Muylaert teria, segundo alguns críticos, se inspirado em Dali para compor o visual de algumas cenas antológicas. Acredito que ela tenha um pé no cinema da Europa Oriental. Existe um toque de Cinzas e Diamantes, do polonês Andrzej Wadja, nas cenas do cavalo, assim como seu roteiro de “Quando meus pais saíram de férias”, que fez junto com o diretor Cao Hamburger, é totalmente calcado em “Quando meu pai saiu em viagem de negócios”, do iugoslavo (nascido em Sarajevo) Emir Kusturica.

O importante é que ela conseguiu grande impacto com seu filme ao radiografar uma população que não amadurece, que se refugia no imaginário ao qual foi acostumado e que considera ser de total libertação. Há encarceramento nessa cultura gerada em oposição, ou paralelamente, ao sistema de opressão econômica. É, no fundo, fruto dele. Por isso não tem força para sobreviver e sucumbe com as marteladas da barbárie urbana e econômica. São Paulo (o bairro de Pinheiros, mais especificamente) é o retrato desse caos a que foi reduzido o país na ditadura. Capote Valente com Teodoro Sampaio: passei mais de uma vida por esse endereço.

Lá estou eu freqüentando, com velhos discos de vinil, os sebos especializados, ciscando preciosidades, desatento à brutal transformação que erradicou nossas vidas para a lata do lixo. Toda aquela música estupenda que fez nossa cabeça foi junto e no seu lugar implantaram, com a nossa conivência, o baticum eletrônico, o berreiro pseudo-sertanejo, o esganiçamento pop, entre outras falcatruas. Mas, como Durval no final do filme, parecemos aliviados que tudo tenha enfim acabado. A criança volta para seu ambiente e nós voltamos à prisão a qual fomos acostumados. A servidão é um vício e Durval Discos sua denúncia.

RETORNO - 1. Imagem desta edição: Etty Fraser, Isabela Guasco e Ary França em Durval Discos.

2. Recebi o seguinte e-mail da diretora do filme, Anna Muylaert: "Olá Nei, adorei seu texto. Foi um dos melhores sobre o filme que ja li. Vc entendeu tudo em profundidade. Obrigada."

25 de outubro de 2008

O QUE OFENDE AS PESSOAS


Xingamento não ofende mais. O que agora ofende é fazer algo realmente importante, um gesto solidário sem nenhum outro interesse do que atender, servir. Isso é uma ofensa sem perdão. Toda vez que você contribui com alguém, sem querer você enreda o semelhante numa arapuca. Como ele vai sair dessa? Terá que pagar, retribuir com a mesma moeda, retaliar. O expediente mais usado é o mutismo. A pessoa se fecha em copas. Ou a indiferença: tem uma reação fria, para que você não se entusiasme muito. Ou acontece outra coisa: ela vira contra você a sua ação, te devolve a bola quadrada. Se assenhora dela, dizendo que a iniciativa não foi sua, mas de quem foi beneficiado. Isso acontece tantas vezes que chega a ser um espanto.

Quando você ajuda, acaba escapando do enquadramento que te puseram por longo tempo. Ao fazer o gesto, você estaria sendo superior, portanto, arrogante. Merece punição. Não se arvore a proporcionar coisas. E se fizer algo, não cobre a conta, não espere retorno, suma de vista. Fazer o Bem é extremamente perigoso. Por isso existe essa entrega em massa para o Mal, muito melhor compreendido e disseminado. Fazer o mal confirma que você é um pulha asqueroso e merece esse sentimento de repúdio que os contemporâneos te lançam. Se estiver por acaso fazendo o Bem, aí tem.

Estou exagerando? Claro que sim. Apenas chamando atenção para uma distorção do comportamento que tem se revelado recorrente, tomado conta de muitas relações humanas, contaminando amizades, destruindo amores, partindo famílias. Prejudica até mesmo nações, criaturas gigantescas cheias de ruídos. Nos debates, as acusações mútuas, as calúnias, as brutalidades verbais e físicas são o sintoma desse asco em relação aos outros, que exibiu tantos exemplos nesse segundo turno das eleições.

Todos os candidatos são vestais, virgens puríssimas. Seus adversários é que não prestam. É triste ver o dinheiro público sendo disputado como um butim de pirataria. Somos espectadores desse navio miserável, a ditadura civil brasileira, a que devolve refém a seqüestrador (o maior feito da idiotia policial que toma conta do país), a que mentiu sobre a robustez de uma economia que agora cai como dominó ou castelo de cartas. Somos os maltrapilhos da imoralidade pública, a tropeçar em calçadas inexistentes, tentando furar o bloqueio da indústria automobilística, mal servidos de transportes públicos e saúde, palavras de ordem de campanhas banais e podres.

Somos as testemunhas desse gigantesco naufrágio que é o Brasil tomado pela soja e pela cana e onde todas as lutas populares foram cair no colo de quadrilhas bem formadas e que hoje reclamam inocência e exibem a paranóia dos excluídos, como se a grana preta que arrecadam do povo fosse álibi para seu passado de lutas. Contamos moedas que nada valem, fazendo filas em padarias que vendem pão com bromato, enquanto os nababos da política e da especulação financeira gargalham sacudindo as partes em frente às câmaras, como se fôssemos vermes facilmente subornáveis por suas palavras de ordem, por suas bolsas esmolas, por seus títulos de honoris causa, por suas autocríticas de ocasião.

Somos o povo brasileiro da nação que foi soberana. Vamos como rebanho ao matadouro na hora de votar. Sob o tacão mortal das leis manipuladas, das obrigatoriedades sacanas, das sinucas de bico. Rezamos a Deus para não adoecer, para não ficar duros, para ter um teto e uma mesa posta com algo em cima dela. Rezamos por nossos descendentes enquanto aos poucos nos convencemos que esse foi o tempo que nos coube viver sobre a terra, o da ditadura no Brasil, país que foi solar, belo, cheio de vida, num passado remoto, pois não falo nem da era tucana ou da era dos militares no poder.

Falo desse Brasil verde e trigueiro, o meu Brasil brasileiro, terra de samba e pandeiro. Com suas cascatas murmurantes, onde eu mato a minha sede e onde meu exausto coração vem cantar. Abre a cortina do passado, tira o gênio do cercado, vem refazer o resplendor. Venha ver o Rio de Janeiro dos anos 30, São Paulo dos anos 40, Porto Alegre no início dos 60. Venha ver o presidente Roosevelt tendo que vir para cá, em cadeira de rodas, para puxar o saco do nosso presidente, que não via motivos para ir até lá.

Volta, Brasil Soberano. Traga a nossa bandeira hoje em farrapos. Venha ao som da charanga da ressurreição, do parto.

RETORNO - Minha reportagem "O som desconhecido das novas gerações", publicada na IstoÉ de 12 de dezembro de 1979, é citada no livro The Defence of Tradition in Brazilian Popular Music, de Sean Stroud. É a nota de número 29 da página 73 e se refere à denúncia, feita na matéria, por músicos do nordeste e do Rio Grande do Sul, contra a hegemonia do eixo Rio São Paulo. Ou seja, contra o Mesmo imposto pela indústria cultural viciada, que pisoteava nos novos talentos. Minha luta é longa, veio de longe e hoje serve de acervo para os estudiosos. O gringo analisa como a MPB alcançou um alto status e porque a tradição musical (incluindo a MPB) foi defendida com tanto vigor por tanto tempo. É simples, tchê Stroud. Tínhamos um país, o Brasil Soberano. O da Era Vargas. Por isso nossa música chegou lá. É assim que a coisa funciona, gringo. Ou funcionava.

24 de outubro de 2008

CARLINHOS HARTLIEB URGENTE


Recebi surpreendente e-mail de Rene Goya: "Nei Duclós. Segue divulgação do filme que fiz sobre o Carlinhos Hartlieb. Está feito o contato. Teu nome está nos créditos com a bela canção "Manhã", uma das minhas prediletas. Abs. Amigos!" Manhã: poema publicado no livro Outubro, foi musicado por Carlinhos e só agora, 30 anos depois, tenho acesso à interpretação dele dessa canção que faz parte de nós. Só tinha ouvido uma vez, ao vivo, num bar em São Paulo. Depois, nunca mais. É muita emoção. Não só a belíssima melodia, o arranjo, a voz, mas também a plena sintonia entre música e poema. Trata-se da mais bela leitura do poema, que eu vou colocar na roda quando souber manejar com esses links. Feita por Carlinhos Hartlieb, que se foi cedo demais.

Rene Avisa:
ANOTEM NA AGENDA!

Mais uma produção da ESTAÇÃO ELÉTRICA em parceria com RBSTV poderá ser assistida neste sábado, 25 de outubro, 12h20, na RBSTV, dentro do projeto Histórias Curtas 2008. Agora é a vez do documentário sobre a vida e obra deCarlinhos Hartlieb...Assista o trailer de"Um Risco no Céu", em: http://www.youtube.com/watch?v=mlvrNvMjFSs. Agradecemos a todos os envolvidos no projeto e desejamos que a LUZ de Carlinhos se espalhe e que todos conheçam sua maravilhosa obra.Até sexta-feira o site deve estar no ar. Abraços queridos em todos...e espalhem, por favor!!!
http://www.estacaoeletrica.com.br/ - conheça a produtora!
www.myspace.com/timoneiros - ouça o som e veja o clipe!
www.clicrbs.com.br/natrilhadosrios - parceria RBSTV/Estação Elétrica

De Ricky Bols, mais informações: Documentário sobre a vida e obra de Carlinhos Hartlieb - Histórias CurtasRBS TV Sábado 25/10 12:20 hsTV COM Sábado 25/10 23:00hs . Domingo 26/10 8:15 e 24:00 hsCanalBrasil Terça 28/10 20:30 hs. Quarta 29/10 15:00.

23 de outubro de 2008

LEI E DESORDEM EM GOTHAM CITY


Aviso de cara: achei o máximo o novo Batman, o Cavaleiro das Trevas. Filme de ação costuma ser monótono, pois a sucessão de eventos, sem permitir que o espectador respire, hoje é lei no cinema. Batman não foge muito à regra. Mas seu valor está fora do tiroteio, explosões, corridas e saltos no abismo. Mora em outros vetores. Personagens contra si mesmos, por exemplo.

Todos confrontam sua própria persona: o promotor Harry Dent, com o rosto dividido entre o ódio e a justiça; o vilão Coringa, que tem sua cicatriz, fruto da auto-mutilação, como emblema da rejeição que sofreu na vida amorosa; o próprio Batman (interpretado pelo assustador Christian Bale), alter-ego de Bruce Wayne, por sua vez o amante esquecido e vingativo que não suporta a perda e que convive com um velho (Michael Cane), retrato de sua obsolescência; o investigador (o camaleão Gary Oldman) , que morre e ressuscita, que tem o poder e ao mesmo tempo implora clemência; até mesmo a mulher, Rachel, dividida entre dois amores. Diálogos com frases poderosas. E o melhor: uma carga de sínteses e alegorias que traduzem uma série de coisas da nossa era.

A principal delas é a paranóia. A tecnologia disseminada em massa como o pesadelo do caos, que é a representação do terrorismo da era Bush no momento da verdade: valeu a pena abrir mão da liberdade em função de uma segurança impossível? O uso de celulares para os ataques, a presença múltipla do bandido e seu poder infinito de mistificação e manipulação. O que assusta não é a cara de palhaço com a boca cortada pela própria navalha, mas essa rede de acessos e ferramentas que transforma todos em cúmplices da vitória do Mal sobre Gotham City, a cidade mais mal informada do mundo, já que é a única que não sabe que Batman é Bruce Wayne.

O filme é um mural de referências. A sociedade que perde a batalha para o crime precisa do herói solar que suplante a fase infantil de confiar em alguém que age no escuro. O Cavaleiro das Trevas deve dar lugar à lei e à ordem, mas o que acontece é que a desordem toma conta da lei. Para manter o mito, Batman assume a vilania para que seja perseguido e livre a cara do promotor, que lutou contra o crime e morreu depois de se entregar para a Queda. A dupla face do protagonista da Justiça, uma normal e outra cadavérica, diz muito sobre a divisão que o Bem, ou o que as pessoas identificam como Bem, sofre no embate contra a criminalidade.

Batman, como Shane no mitológico final do grande faroeste de George Stevens, despede-se da inocência, que grita em vão seu nome. No fundo, a criança continuará fiel a ele, por mais que o persigam. Criança precisa de alguém a seu lado quando tudo está escuro. Os adultos é que se iludem achando que a claridade irá provar alguma coisa, vai lhes dar segurança. No escuro existem coisas que não dormem. Coringa, por exemplo. Heath Ledger detona. Sua atuação é misto de palhaço de circo e vilão de filme B de gangster. Sua força vem do entorno: ele está em todos os lugares e tudo pode. É o pânico que provoca que alimenta sua performance. Ele não precisaria fazer nada, tanta é injeção que o roteiro e o visual emprestam ao seu personagem. Como é desnecessário, brinca em cena e isso o salva.

O banditismo terceirizado, o que obriga a cidadania em pânico a assumir o papel de assassina, é o grande pesadelo do filme. Detono meu semelhante e me torno igual ao que condeno ou não? É uma questão de sobrevivência. Deve-se perguntar por que chegamos a esse estágio de desrazão. Coringa é a resposta. Ser do Mal dá barato. Enquanto Batman arrosta os pecados do mundo, o multifacínora brinca no abismo.

Onde estamos nesse ruído todo? Presos no barco com a máfia, votando pra chegar a uma decisão. Com a mão no detonador – fuck them all. Confiando o gesto final ao primeiro malvado que se oferece para assumir o encargo. “Batman, come back!” Impossível. Amadurecemos demais para acreditar em heróis de histórias em quadrinhos. Pena que isso não nos leva a nada. É hora, portanto, de revisitar o mito criado por Bob Kane, o que é feito com competência por Christopher Nolan, que também é co-roteirista, junto com Jonathan Nolan.

Novo Batman: matou a pau. Sai da frente.

RETORNO - Imagem de hoje: o Coringa, de Heath Ledger. Brincou. O cara põe o filme no bolso.

22 de outubro de 2008

QUERO FAZER UMA NOVELA DE TV


Agora que ninguém liga mais a TV aberta, por ser a pior coisa do mundo depois de ficar sem dinheiro, em que todos cansaram de mais do mesmo, em que desperdiçam a Claudia Abreu fazendo-a se roçar por nada, que não colocam nas suas falas algo à altura da sua presença e talento; agora que encheram o saco com tanta porcaria e afastam cada vez mais o público da telinha, pois agora quero fazer uma novela de TV. Não para recuperar a audiência, porque disso não entendo nem quero entender. Mas só para mostrar como é fácil fazer uma novela que não seja uma sucessão de besteiras, e que hoje está muito abaixo de qualquer dramaturgia, do teatro ao cinema, do evento ao filminho de publicidade.

Aliás, a melhor coisa da dramaturgia que surgiu na telinha nos últimos tempos é Sapateado, da W Brasil, o cara que sapateia sem querer por quatro anos e assim perde seu tempo. É um exemplo de que os talentos estão na mão e podem muito bem ser aproveitados. Basta pegar o criador, o roteirista, o câmara, o editor do filminho do TSE e contratá-los. Paga uma grana para eles, que o talento se resolve na boa. Com tempo e remuneração, tudo deslancha. Não pode é ficar pagando bobalhão para mostrar o surfe (pára com isso, o surf é dos anos 80!) ou essa coisa sinistra que é A Favorita, a novela que indispôs o estômago dos espectadores com a bela e talentosa Patrícia Pillar.

Como seria a minha novela? Não, não vou colocar o Lula comparando o povo brasileiro ao paciente terminal que merece ouvir mentiras otimistas sobre a crise, como confessou ontem publicamente, numa demonstração explícita de idiotia. Precisamos melhorar o nível. Ninguém com a cara do FHC vai aparecer babando com um chapéu carnavalesco de doutor Honoris Causa das Universidades Unidas da Transilvânia (se você bate no PT, tem que bater nos tucanos, é uma questão de isonomia). Também não teria o eterno Tony Ramos fazendo assim com as mãos e forçando algum sotaque. Ou o Antônio Fagundes, de bigodinho grisalho, comendo uma franga stripper. Também não desperdiçaria talentos como Tarcisio Filho ou Werner Schüneman.

Uma novela minha teria obrigatoriamente Pedro Cardoso e Miguel Ramos como protagonistas, atuando sob a pressão magnífica de grandes atrizes como Sandra Corveloni, a que ganhou Cannes, e Silvia Lourenço, estupenda em O Cheiro do Ralo. Teria José Dumont e Julio Conte. Teria Dira Paes, Claudia Abreu, Marília Pera e Othon Bastos. Eu não escreveria a novela. Chamaria o pessoal do Literário, do Comunique-se: Marco Albertim, Fabio de Lima, André Falavigna, Celamar Maione, Daniel Santos. Ficaria só na edição e complementos. Mandaria para o mestre Moacir Japiassu dar uma olhada. Pediria conselhos ao Wagner Carelli.

Pronto, estaria pronta a minha novela. Seria sobre o Brasil que as novelas não mostram. Vamos começar por gente honesta que não seja babaca. Vilão que não seja charmoso. Mocinha que não seja programa. Galã que vista camisa. Os bandidões, os manda-cuvas, seriam todos estrangeiros. Os executantes, os bandidinhos, todos brasileiros. Os heróis, todos da Terceira Idade. Haveria cenas de alfabetização sob a cartilha O Caminho Suave. Teria no mínimo um personagem sempre com um livro na mão. Haveria segredos, mas não de Polichinelo. Não chuparia nenhum escritor importante. Haveria mistério, mas bem amarrado. Não teria núcleos, nichos dramatúrgicos divididos em classes sociais. Não teria apelação, apenas qualidade.

Coloca no horário nobre para ver o que acontece. Depois não digam que não avisei.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: Rita Moreno em West Side Story, de Robert Wise, o filme que é a glória da ação, do drama, do canto, da dança, do sapateado. Arte é encanto e lágrima, inteligência e narrativa e não um monte de fórmulas gastas. 2. A grande novidade do segundo turno são as imagens dos candidatos em frente às telas de computador, com cara de produção de pensamento. Devem ter dito para eles: "Ei, a mídia tradicional está fazendo água, o que pega agora é a internet". "É mesmo?" respondem. "E como é que funciona isso? Onde eu sento? Aqui? Como assim, chat?"

21 de outubro de 2008

BEM POR AÍ


Nei Duclós (*)

Tio Patinhas fez suas abluções matinais, colocou a sunga de grife, subiu no trampolim e saltou na piscina vazia. Foi um baque: sua liquidez tinha ido para o ralo. Ela parecia ilimitada desde o momento em que trocou a montanha de dinheiro, acumulada em décadas de sucesso, por ações na Bolsa e investimentos de alto risco. Por um longo tempo, conseguira manter seu pulo diário dentro do cofre forte, transformado num paraíso de negócios virtuais. Quando a crise apontou na curva, não houve mais quaquilhão de agüentasse. Era hora de quebrar o bico na laje do lucro selvagem.

Fico pasmo com o bico afiado dos analistas de economia, muitos deles responsáveis por planos mágicos de um passado próximo, em que sucessivamente foram substituindo nossa unidade monetária por algo próximo a uma pena de pato. Quando restou apenas a penugem, era penoso vê-los engomados a sustentar o insustentável. O desequilíbrio dos argumentos revelou-se no primeiro tremor financeiro sério. Mas eles jamais perdem a pose. Imediatamente se transformam em críticos do que na véspera celebravam, advertindo de dedo em riste para a platéia.

Falam como se nós, o gentio, fôssemos responsáveis pelo mau comportamento da realidade. O único pecado do leigo, aluno aplicado do livro-caixa, é arriscar palpites fundados no bom senso ou nas evidências, o que o torna alvo do desprezo dos sabichões. "As coisas não são bem por aí", dizem, enquanto capricham na cara de paisagem.

Imagino que os analistas possam também ser vítimas desse sistema que entrega a favela depois de prometer a estação de esquis. Em todo o nicho de conhecimento há um quê de auto-ajuda. Quem acreditou na própria pregação, apostando no cassino podre, deve estar hoje solfejando os prejuízos, vendendo na baixa do Sapateiro para sair do raso da Catarina. A não ser que seja o tipo de especulador que só perde o que é dos outros, quando a bolha estoura. O mais engraçado é que a bolha só existe depois que explode. Antes, é chamada de mercado.

Ao pagar o pato, descobrimos que as coisas eram mesmo bem por aí, como desconfiávamos. Mas a era do "com certeza" impediu que revidássemos a tempo.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 21 de outubro de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Tio Patinhas nos bons tempos.

20 de outubro de 2008

A CÂMARA ESPERTA


Os editores estão estragando o cinema. Parece que, nos Estados Unidos, eles têm poder total sobre o resultado final do filme. Se encerram numa ilha de edição e fazem as maiores estripulias, prejudicando a narrativa e jogando as obras no lixo. É verdade que o diretor que permite isso não merece muito crédito. Você sabe do que estou falando. São firulas metidas as besta, como se vanguarda fosse fazer arabescos para a platéia. Começa com o que chamo de câmara esperta. No lugar de deixar a câmara em paz, filmando a ação, eles colocam a câmara como protagonista, fazendo zooms desnecessários, e mais essa infinidade de recursos permitidos pelas novas tecnologias, com cenas tremidas, closes, retrocessos, replays e não sei o que mais.

Depois vem a mania de colocar tudo em flash back. É que pretendem chocar o espectador na primeira tomada, como se isso fosse possível. Nossos olhos exaustos, de qualquer idade, não suportam mais os excessos visuais da indústria. Então eles colocam primeiro o assalto, pois é preciso fisgar o espectador no impacto e não na sedução da história a ser contada, e em seguida vem a chamadinha: 30 horas antes. Aí vai lá nas 30 horas antes, e daí a pouco: três dias antes. Quando não chegam ao cúmulo de colocar: quatro anos before. Parem com isso. Porque não contam a história direito e deixem a vanguarda, as inovações, para quem é do ramo?

Vejam o caso de Gus Van Sant, um dos mais radicais cineastas da atualidade: vai ver se tem câmara esperta nos filmes dele. É aquele olho fixo, em lento movimento por longos corredores, tomadas intermináveis. Godard também sempre foi assim. Mudou tudo ao manter a câmara fixa diante dos diálogos. Não queria que a edição se transformasse no que é agora, a grande proprietária da nossa percepção. Não se pode mais ver um policial decente que não esteja lá as não sei quantas horas antes do assassinato. Porra, mostra primeiro como a coisa aconteceu e não o troço pronto. Querem o quê? Parece aqueles caras que colocam no texto: isso veremos depois. Ou seja, migra para outro espaço o que deveria estar ali presente. Quando me prometem abordar novamente o que está sendo colocado, desisto de ler.

Estou desabafando porque tenho tirado filmes das locadoras que voltam quase intactos, pois não suporto as cambalhotas dos editores visuais. Tem um recente do Sidney Lumet, que decidi que é um chato asqueroso, com bons atores como o Philip Seymour Hoffman, Oscar pelo filme Capote, e Ethan Hawk, que desde menino milita no cinema, além da excelente Marisa Tomei e até o grande veterano e maravilhoso ator Albert Finney. Pois não é que, além das tais horas antes várias vezes (tanto, que as cenas se repetem até a exaustão) ainda tem, para provar que virá o flash back, aquela tremidinha da imagem. Isso se fazia no cinema antigo e com muito mais charme: a tela se derretia para mostrar que haveria um flash back.

Mas desta vez, no filme esse (antes que descubram que você está morto, ou algo assim), fica aquela coisa chata, repetitiva. E tudo acaba numa brutalidade total. Lumet não gosta de cinema. Se gostasse, não cagaria assim em cima da Sétima Arte. Lembro O Homem do Prego, que ele dirigiu, filme chatíssimo. Termina idêntico ao atual, com o velho se retirando com as mãos pesadas para o nada absoluto. Parece que o mau conteúdo tem a ver com a péssima edição.

Outra bomba é Ligações criminosas (Last Hour, 2008). É impossível ver. Os caras tentam inventar tanta merda que não dá para perceber o que estão querendo mostrar. Tem briga de kung fu misturado com outras crueldades, como o ex-monge que incendeia o mosteiro entre outras barbaridades. Tudo pontuado pela câmara esperta e pelas horas antes. É muita sacanagem. Daqui a uns 30 ou 40 anos, da nossa época (que vai dos anos 50 até agora) o que vai ficar serão obras-primas como Play Time, de Jacques Tati, em que a câmara é amiga do nosso olhar e o civiliza pela grandiosidade do talento inigualável. E não essas merdas que vão tudo para o lixo.

RETORNO - Imagem de hoje: Jacques Tati em sua obra-prima, Play time. Vejam que imagem! É exatamente o oposto da câmara esperta. É a câmara no esplendor absoluto da arte. Ora, dirão, você vai querer arte em filmes comerciais! Quero arte todo o tempo das nossas vidas, cada segundo, cada minuto, cada hora, cada dia. Em todos os nichos, ninhos, cantos, ações, campos, cidades. Quero arte! Peguem os filmes noir, peguem Sindicato dos Ladrões, peguem Lawrence da Arabia: filmes que estiveram no mercado e são arte suprema. É isso. Quero gênios filmando. Chega de ruindade.

19 de outubro de 2008

PEDRO CARDOSO, DO BRASIL SOBERANO


O ator Pedro Cardoso, sobre o qual me referi aqui no Diário da Fonte tempos atrás como “o ator essencial especializado no fragmento da fala e do gesto”, e também como nosso atual “comediante maior”, numa linhagem que revisita dialeticamente todos os grandes talentos do passado, abriu o verbo contra a exploração pura e simples da putaria no cinema e na televisão. Sua entrevista à jornalista Silvana Arantes neste domingo (19/10/2008) na Folha é puro Diário da Fonte: “Minha batalha é contra o disfarce da pornografia em obra de arte e em entretenimento. Quem quiser fazer pornografia ou usufruir da pornografia no seu mundo privado não é assunto meu. É assunto meu que a pornografia esteja, disfarçada, na novela das seis, no programa de auditório, na quase totalidade dos filmes, porque atingiu meu mercado de trabalho”.

“Pedro leu manifesto sobre o tema há duas semanas, no Rio, antes da sessão de Todo Mundo Tem Problemas Sexuais, que produz e no qual atua - sem cenas de nudez”, informou Silvana Arantes. Claro que os proxenetas, os cabareteros, os gigolôs, os exploradores sexuais, que mandam na indústria cultural, caíram em cima, xingando-o de “moralista”. Só no Brasil da eterna ditadura moralismo é nome feio. Cardoso chama às falas os caras que investem (dinheiro público inclusive, e como!) nessa bagacerada sem fim. Diz que o problema não se resolverá entre artistas. Claro que não, é uma questão política.

Faltou dizer: os corpos estão disponíveis porque o país perdeu a soberania. Sem soberania, todos ficam à mercê da exploração sexual nacional e importada. O Brasil, já disse aqui mil vezes, é o rabo do mundo. A pornografia tomou conta de maneira tão profunda que está sendo confundida com identificação nacional. País escravo abre as pernas, quer queira ou não. Mistura tudo, como explica Cardoso neste parágrafo lapidar:

“A questão do nu para o ator é muito complexa. Para representar nu, um ator terá que vestir a nudez do personagem. Se algo de verdadeiramente fundamental acontece na história no caminho da nudez, o ator é capaz de representar o personagem nu e, numa habilidade muito grande da sua arte, iludir a visão do espectador, de modo que ele veja a nudez do personagem sobre a nudez do ator. Ou seja, o ator tem que vestir algo inefável. É possível. Não tenho nada contra a nudez em si, como uma possibilidade de momento da arte. Tenho contra a nudez sem história, onde o ator fica nu na hora em que tira o figurino. Convenhamos, um homem ou uma mulher tomando banho, como é freqüente ver na TV aberta, é algo prosaico. Essa nudez é mera exibição do corpo da atriz. Não é dramaturgia. Uma relação sexual entre dois personagens em que nada acontece além da própria relação não é dramaturgia.”

O ator entrega que muitos cineastas de araque impõem a nudez às atrizes e depois curtem, usufruem das cenas, em sessões privadas. Cardoso tem uma namorada atriz, mas não foi por isso que se insurgiu contra o deboche, a falta de respeito, a sacanagem, a brutalidade, a violência desse tipo de expediente. Não foi para "defender o seu" de maneira torpe e mesquinha. Na fonte de sua postura está a consciência, a luta pelo direito de trabalhar sem se prostituir: “Não respondo perguntas sobre minha vida particular, porque considero que a totalidade da imprensa que cobre os fatos culturais não tem parâmetros éticos confiáveis. Mencionei o fato de namorar uma atriz por honestidade intelectual, quando percebi que a temperatura com que eu lidava com esse assunto era causada pelo fato de ver minha namorada ter de enfrentar os ataques da pornografia diariamente.”

Como a pressão é muita, violenta, avassaladora, Cardoso disse que foi mal compreendido. Compatriota Pedro Cardoso: eles entenderam perfeitamente, estão é a fim de te queimar, de te erradicar de cena. Teu talento se impõe, você se segura, não precisa dessa canalha. Você se retirou de um filme que o enganou em 1983, quando um cineasta queria que você se pelasse em cena e você, garoto firme e forte, caiu de banda, no que fez muito bem.

Nós, que sabemos que a pornografia é usada para desmoralizar a liberdade de expressão neste país ainda sob o jugo da ditadura, que não tememos ser chamados de reacionários ou comunistas porque defendemos a soberania nacional, nós que pertencemos, Pedro Cardoso, cidadão exemplar, ao Brasil Soberano, dizemos: Não! Fora com o abuso dos corpos. Abaixo a ditadura e fora o imperialismo. Sim, as palavras de ordem estão ainda vigentes. Infelizmente.

RETORNO - Imagem de hoje: Pedro Cardoso na peça "O auto-falante".

18 de outubro de 2008

QUANDO CHEGAR A IDADE


De: William Butler Yeats
Tradução: Nei Duclós


Quando chegar a idade, grisalha e exausta
Caída frente ao fogo, pega este livro
E leia devagar, e sonhe com a doçura
antiga em teu olhar, e as sombras ao redor

Tantos amaram teus dias de glória e graça
e de beleza extrema. Alguns eram sinceros
mas só um quis saber de tua alma peregrina
fisgado na rude mutação do teu semblante

Curvada sobre o calor do braseiro sereno
Relembra, com pesar, desse amor em fuga
Que pousou na mais alta das montanhas
De rosto borrado em remorso de estrelas


RETORNO - O poema, belíssimo, de Yeats (foto), é assim, no original: "When You are Old - When you are old and grey and full of sleep, /And nodding by the fire, take down this book, /And slowly read, and dream of the soft look /Your eyes had once, and of their shadows deep; /How many loved your moments of glad grace, /And loved your beauty with love false or true, /But one man loved the pilgrim soul in you, /And loved the sorrows of your changing face; / And bending down beside the glowing bars, /Murmur, a little sadly, how Love fled /And paced upon the mountains overhead /And hid his face amid a crowd of stars".

Pois bem. Corre na rede uma tradução que não achei adequada. Por isso, fiz a minha tradução, que está acima.

O HUBBLE QUER COLO


Simpatizo com o Hubble, o telescópio que mudou tudo e já é considerado obsoleto, com suas avarias, superado por outros portentos que enxergam ou enxergarão tricolhões de anos luz mais do que ele. Nada supera a ingratidão humana. Imagino que já exista a percepção de que o Hubble pertence ao acervo da arqueologia. É a voragem da pressa, todo mundo quer avançar sem dó, deixando para trás as melhores coisas de nossas vidas. Aquelas colunas estelares (foto acima), vistas pela primeira vez graças ao Hubble, foram incorporadas ao imaginário popular e às pesquisas científicas, mas já ninguém presta atenção no pobre e gigantesco telescópio espacial, que se recusa a emitir dados e obriga uma visita pessoal a seus aposentos, já que todas as tentativas de resolver o problema a distância fracassaram. O Hubble quer colo.

Vejam o caso do Douglas Prasher, bioquímico que descobriu porque as algas brilham. Separou o gene, sei lá, essas coisas, e com isso contribuiu para que outros cientistas, que pediram e levaram (ele entregou suas pesquisas generosamente) o segredo da descoberta, ganhassem o Nobel, ou seja, 450 mil dólares cada um. Douglas hoje, informa o New York Times, dirige uma van e ganha dez dólares a hora. Sofre de depressão. E admite que não gostaria de tomar o lugar de nenhum dos três laureados, pois isso seria uma injustiça.

É que não pode ter mais do que três ganhadores do mesmo prêmio. Deveria ter quatro, desta vez. Mas Douglas, grande sujeito, ficou de fora e se conforma. Numas. Depressão é falta de colo. Douglas precisava de dinheiro para continuar suas pesquisas, não deu certo. Deixou de transmitir dados. Exige a presença de astronautas. Ganhou apenas espaço na mídia. É pouco. Merecia mais. É a ingratidão humana. Essa exclusão acaba com o sujeito. “Eu poderia ser alguém, eu poderia estar na luta”, dizia Marlon Brando na célebre cena com Rod Steiger em Sindicato de Ladrões, de Elia Kazan.

Todos os que se identificam com o Hubble e Douglas sentem essa voragem mortal, o bafo da medusa no rosto, o cheiro da múmia. Todos os que ficaram no desvio, no canto, na estrada, vendo a caravana passar. Todos os que fizeram alguma coisa e foram esquecidos. Todos os que disseram algo importante e vêem suas palavras sendo apossadas pelos espertalhões de sempre. Todos os que compuseram músicas que viraram domínio público. Todos os que não tiveram nenhuma oportunidade na vida. Todos os que se desperdiçaram, todos esses são como o Hubble solto no espaço depois de cumprirem seus destinos.

Os nós que atavam o grande telescópio à terra se esgarçaram e ele rodopia pelo espaço afora. Ele então continua, o grande e majestoso Hubble, enxergando por mais da conta, mas não compartilha com mais ninguém. Foi deixado de lado, como um velho herói esquecido sem netos que escutem suas histórias. Foi liberado para a morte. Ele cruza a fronteira do Sistema Solar e se perde para sempre. Talvez desça num planeta gigantesco, desses descobertos recentemente, tão enormes que deixam Júpiter no chinelo. Lá, será encontrado por uma criança e vai virar, por ser minúsculo diante das novas dimensões, um brinquedo querido. Será guardado em armários brilhantes. E aí será a alegria das festas de aniversário.

Grande e poderoso Hubble, o telescópio das nossas vidas, deixa eu ir até aí te consertar. Vou colocar um disquete, daqueles que não se usam mais, no teu drive, que também não existe, vou me fechar numa sala e sem que ninguém veja, nem mesmo esses pulhas de Houston, Texas, vou teclar a palavra mágica: format! Pronto, estarás reformatado. Então, poderás simplesmente capturar e transmitir dados espirituais, nebulosas de gelatina gosmenta, sonhos de verão, corações virtuais, canções perdidas no cosmo. Toque, Sam, aquela velha canção. Se ela pode suportar, eu também posso.

17 de outubro de 2008

DECAPITARAM A NATALIE PORTMAN!


Sorte que vejo filme sem ler nada a respeito. Atiro no escuro e só consulto a opinião alheia depois da sessão ou mesmo depois que eu já escrevi a respeito. “A outra guria Bolena” (agora eu vou fazer minhas traduções de títulos de filmes), que aqui se chama só A Outra, título merreca e batido, é um filme, ponto. Não é História, pelo amor de Deus. Não pretende explicar como o rei de verdade, aquele que viveu há séculos, decapitou sua amante transformada em rainha, mas apenas mostrar como o ator Eric Bana sofreu em se livrar de Natalie Portman, depois de dispensar Scarlett Johansson (Maria Bolena), o que não é uma decisão fácil para ninguém.

Gosto de cinema, portanto gosto dos filmes. Os caras que escrevem sobre filmes parece que odeiam a Sétima Arte. Ficam pontificando abobrinhas. Dizem, por exemplo que Natalie não é uma atriz adequada ao papel de Ana Bolena. Querem que a guria só faça papel de stripper ou de jogadora maluca, não pode fazer papel “histórico”. Não teria estofo. É de uma imbecilidade absoluta. Natalie Portaman mata a concorrência desde que surgiu, inesquecível, aos 13 anos como a garota de um matador. Em “A Outra”, faz uma rainha perversa, que de garota do interior se transforma numa cortesã sedutora e depois sofre com a gravidez e o parto e fica feia, se isso fosse possível, quando é rejeitada.

O pior é que lhe cortam a cabeça, depois de fazer um pequeno discurso fúnebre. Precisa gostar do talento, gostar de atrizes, gostar de filmes. Senão vá catar coelho, chuchar sabão, se esfregar numa tuna. Para que vêem filmes, só para encher o saco de quem gosta? Pois é isso que parece: os caras vão ao cinema porque todos vão. Como odeiam, ficam azucrinando: veja como ela é isso, aquilo, é um comentarismo de comadres.

O filme de Justin Chadwick é bom e merece ser visto. Scarlet Johansson se encontra com um grande papel, e deslumbra com sua capacidade de brilhar. Não é para qualquer um. Tente brilhar em frente as câmaras. Ninguém vai prestar atenção. Mas vejam Scarlet brilhar! Ela está trêmula quando se apaixona pelo rei, trágica quando assiste a execução da irmã, decidida quando pega a filha de Ana para criar. Está ótima. Mas a grande performance é da veterana Kristin Scott Thomas como Lady Elizabeth Bolena. Claro que aproveitaram sua magnífica atuação para, numa sacanagem comparática, dizer que ela estava ótima porque as outras estavam péssimas. Que coisa.

É um filme sobre mulher. Amar, casar, transar, sofrer, decidir, pensar, convencer, sobreviver, morrer: tudo o que é humano está lá. Para quem gosta. Quem não gosta, que vá dormir.

RETORNO - Imagem de hoje: as duas gurias Bolena. Natalie (à esq.) e Scarlet, juntas. Precisa mais?

CONCEITOS CULTURAIS REVISITADOS


Hoje vale tudo. Estão reescrevendo o universo, impondo conceitos, adaptando as pessoas à situação inventada pelos meganhas de todos os poderes. Estão deixando de lado coisas básicas, esquecendo necessidades prioritárias. Decidi me insubordinar contra isso e repor algumas coisas no lugar. Uso a provocação, mãe da vingança justa.

ENSAIO - O ensaio é o doutorado com preguiça. Para que perder tempo citando autores estrangeiros, quando você pode muito bem dar uma cravada, expor a essência de um insight em poucas linhas? Voltaire sabia disso. Hoje há milhões de doutorados sobre Voltaire, mas nenhum com a graça de um “Que Deus me proteja dos meus amigos. Dos inimigos, cuido eu”.

TELEDRAMATURGIA BRASILEIRA - A teledramaturgia brasileira é a arte de falar com a boca cheia. Como produzimos commodities e não alimentos, cavamos fundo a escassez, a demanda e a fome. Onde há famintos, é preciso impor a fala dos bem nutridos. Por isso abusam das cenas na mesa do almoço e jantar em todas as séries e telenovelas. Os personagens falam expelindo comida pela boca. O faminto precisa ver e invejar aquele que tem o direito de falar porque está comendo.

NOUVELLE VAGUE - A nouvelle vague é a inveja dos críticos franceses, que não suportaram a grandeza do expressionismo alemão transformado em arte suprema no filme noir nos anos 40 e 50, e apelaram para o cinema não mais narrado pelo protagonista, mas pelo próprio crítico. Noir é ação, nouvelle vague é olho parado. Noir é fonte, nouvelle vague é referência. Noir não precisa de crítica, a arte existe por si, dispensa o vagalhão de palavras. Noir é frase precisa e solidão. Nouvelle vague é alagaravia e promiscuidade. Gosto dos dois.

HORÁRIO DE VERÃO - O horário de verão é uma imposição do Windows. Você ainda não chegou na vigência do prazo definido para o horário mudar, mas Bill Gates já disse como a coisa funciona. Todos os dias, você acerta o horário, até chegar o dia 19. Porque Bill quer. E quando Bill quer, Bill pode.

HONESTIDADE - As pessoas são honestas quando há lei. O que evita alguém de esmigalhar o próximo, destruí-lo com atos e palavras, erradicá-lo do convívio terreno, invadir seus redutos, acabar com sua biografia, se apossar de seu território, bater sua dispensa, cuspir em suas obras, chutar seu cachorro, acabar com sua família, jogá-lo no fundo do mar e ainda gargalhar depois disso tudo é a lei, a ameaça de ser preso ou executado. É assim que funciona. Sem lei, que é um conceito cultural, portanto contra a natureza, voltamos ao normal. Antes havia a lei de Deus. Temia-se a Deus. Hoje não tem nem lei humana.

REMORSO - O remorso é a lei introjetada na alma, consciência, coração. Sobram facínoras e meliantes e tungadores de todos os dinheiros porque não há mais remorso, não se teme o castigo eterno. O remorso é Deus moendo os minutos que te restam sobre a terra. Ou você dá um jeito nisso e nunca mais repete a bandalheira, ou entra para um convento e amarga o exílio do olhar divino ate ser perdoado. Sentir remorso é uma encrenca, é por isso que foi erradicado. Nada melhor do que rebentar com tudo e depois ir tomar um café com chantilly. E o pior: jurar inocência.

RETORNO - Imagem de hoje: Voltaire, antevendo o trabalho que ia dar nas universidades.

VENTO



Nei Duclós

Que cheiro me traz o vento?
E quando pára, que silêncio?

Ele forrou meus pés de folhas secas
E é dono de assustar-me nas tormentas

Sabe ser distante, nos coqueiros
E de manhã, bater-me em cheio

Mas o vento é simples, seu segredo
É pura invenção do meu poema

RETORNO - 1. Poema publicado no meu livro Outubro (IEL-RS/A Nação, 1975). 2. Imagem de hoje: quadro de Juliana Duclós.

15 de outubro de 2008

O QUE É FILME NOIR?


Nei Duclós

Filme noir é um duelo de chapéus, desabados em rugas na testa, cobrindo cabelos lisos e lassos, jogados em cima de sofás quando alguém chega num apartamento vazio. Chapéus que jamais saem de cena e são recolhidos no chão dos becos, depois de uma briga, meia dúzia de socos ou um assassinato cometido por punhais. Filme noir é uma criança na escada, atrapalhando o trânsito dos suspeitos, fornecendo pistas para os perseguidores, fazendo contraponto com sua imobilidade intensa à ação que tropeça quando sapatos de verniz descem em fuga. É uma silhueta na porta de vidro, onde se lê o nome do detetive, sombras no tapete a representar corpos que caem sob o impacto de atiçadores de lareira.

Filme noir são tiros de mulher. A fragilidade como último recurso da trama, a sedução embaralhando a narrativa, a sensualidade apontada pelo pecado, as mechas que caem sobre os olhos, os batons tomando conta da tela, cílios mais longos do que a angústia, saltos pretos sob a pressão de passos limitados por saias coladas muito abaixo dos joelhos. São suspiros, sorrisos marotos, entrega e cobrança. São apontamentos de secretárias, jóias de amantes de milionários, de herdeiras que se apaixonam por matadores, de rostos com estudado espanto, mãos que chegam à boca compondo o gesto do pânico falso, ou até mesmo verdadeiro, quando enfim há sangue.

Filme noir é um cigarro atrás do outro, tragado como quem respira, colocado no canto da boca, em busca sempre do fogo que se esconde em pequenas caixas de fósforos brancos, que se acendem em qualquer lugar, em paredes, nos sapatos e até nas costas dos subalternos. São pequenos copos de bourbon despejados na voracidade da sede, a aplacar a culpa, a esconder perdas, a mascarar desenganos. São garrafas que perdem conteúdo conforme a dor vai desenhando vítimas e confirmando derrotas.

Filme noir é vício como intervalo de virtudes, que são colocadas no início e no final, de maneira breve. A maior parte do tempo é o desespero que canta em balcões resplandecentes, pianos que lembram, microfones ao redor de casais impossíveis. É amor que não se realiza a não ser como farsa. É confronto de gêneros incompatíveis que por breves instantes se aproximam e incendeiam o cinema. É Veronika Lake e Alan Ladd, o sexo possível numa era de solidão e sombras. E é Victor Macture e Richard Widmark, a amizade eleita como caricatura, o ódio que atira da janela de um carro, com a mesma força do beijo profundo roubado depois do crepúsculo.

Filme noir é texto como provocação, é diálogo inverossímel tratado com a maestria da imaginação incendiada. É arte de transgressão que debocha dos marchands e das galerias, pintura que se apartou de todas as escolas, é penumbra elevada à categoria do gênio. É revelação de talentos, que depois se desperdiçaram em filmes que jamais chegariam aos pés de quem os gerou. São corpos sob medida, talhados para ternos clássicos, para vestidos que varriam salões e se jogavam em camas de casais cobertos por cetins e platinados.

Filme noir é pulsação oculta, essência revisitada, parâmetro, luz irmã da sombra. É momento único, crivado de significações infinitas, composta de rostos inesquecíveis, quando homens e mulheres conheceram integralmente o sentido de sobreviver na civilização que, ao chegar ao esplendor, se acabou para sempre. Por isso fica essa canção feita para a amada ingrata e morta, esses blues tocados em vozes por todas as biroscas, esse clímax de orquestras seguindo detalhes, pontuando descobertas, impulsionando ruas vistas de sacadas, terraços, coberturas, andares supremos onde justiçamentos e chantagens fazem mais vítimas.

Filme noir é armadilha. Você não escapa de um filme noir. Ele te persegue, ele permanece, ele retorna. Tente decifrar o enigma, localizar o talismã, recuperar o broche. Você estará na mira de velhos galãs, de quarentões de olhar duro, de perfis subindo escadas de incêndio. Não adianta tentar adivinhar. Tudo ficará claro só depois que as luzes se acenderem e o cinema, mais uma vez, sumir do teu convívio, como os parentes mortos, a vizinha inesquecível, o mestre que deu adeus. Eles jamais voltarão, por mais que você tente reencontrá-los numa esquina escura, numa sala com o piso repleto de retratos quebrados.

Filme noir é a desesperança de não existir outro cinema igual, em qualquer tempo, em qualquer condição. É como crime insolúvel, seqüestro com final trágico. Talvez a mulher desta vez não atire em você. Talvez você a leve para uma vida feliz. Quem sabe? Filme noir é imprevisível, como as tormentas na véspera..

RETORNO - Imagem de hoje: Veronika Lake e Alan Ladd, a encantadora dupla de vários noir.

14 de outubro de 2008

FANTASMAS


Nei Duclós (*)

Não existem mais fantasmas. Acho que o motivo é o excesso de luzes firmes. Espíritos precisam de fagulha, chama de vela, crepitar de fogueira. Eles são atraídos pela indecisão do fogo entre brilho e sombra. Lembro das labaredas que começavam com folhas secas no crepúsculo no meio do mato. Elas migravam para gravetos e galhos e chegavam submissas, em forma de brasas, às toras, que duravam até alta madrugada. Enquanto havia claridade, permanecíamos acordados, atentos aos barulhos, inexplicáveis.

Quando o breu tomava conta do acampamento, tentávamos dormir sob o sereno. O pai roncava com a auto-suficiência dos adultos, depois de nos assustar falando sobre bruxas, pontuando a narrativa com gestos largos sob o lusco-fusco de estrelas tímidas. Não havia lua, apenas nebulosas pretas a surrar as bordas da Via Láctea. Garras saíam à caça. Ou seria o roçar de almas famintas?

Algo mergulhava na correnteza fazendo um surdo estrondo, um silvo cruzava a margem oposta, alguém arrastava alpargatas: tudo era prenúncio de sustos. Criaturas misteriosas queriam fazer contato. Desconfio que elas nos raptavam no sono. E nos devolviam de manhã, provocando o despertar com mordidas de insetos.

Em casa era a mesma coisa. Tias contavam histórias de damas mortas, cadeiras que balançavam sozinhas, no ritmo de relógios de parede, imensos como catedrais. Mãos leves e invisíveis roubavam colares de pescoços nus. Mulheres de vestido platinado pediam carona e desciam na porta do cemitério. Avôs tossiam atrás de portas de quartos que jamais se abriam.

Tudo isso sumiu junto com as famílias numerosas, as casas de infinitos cômodos, os quintais onde cabia o mundo vasto. Foi-se embora como o chiado dos rádios de ondas curtas, os trens que partiam de estações vazias, rumo a plataformas tragadas pela névoa. Ficamos perdidos, sem ancestrais que batiam sinos em torres de aldeias fora do mapa.

Um dia, estaremos de novo no limite do arroio à espera da última barca. Seremos recolhidos, como os peixes nas redes de náilon. No outro lado, um entardecer idêntico nos espera com um fósforo aceso no montinho de folhas. Lá, será revelada a origem daqueles ruídos. E tudo acabará em risada, como nas pescarias.


RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 14 de outubro de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Miguel Ramos e Clênia Teixeira nas filmagens de "Enquanto a noite não chega", de Beto Souza, baseado em história de Josué Guimarães. Vi algumas cenas deste filme e aguardo com a maior ansiedade, pois a amostra empolga pela beleza e intensa dramaticidade das imagens.

12 de outubro de 2008

BALCÃO DE PECADOS


Nei Duclós (*)

Extra: Veja abaixo, na seção Retorno, a repercussão desta crônica entre leitoras do Donna DC, do Diário Catarinense.

Desatenção talvez seja o maior pecado do comércio. Nos pequenos estabelecimentos, a indiferença se manifesta pelo espírito de grupo, autocentrado e impermeável a interferências. Conversar entre si, deixando o cliente parado à espera de atendimento, cobrar no caixa sem olhar quem está pagando, varrer os pés da vítima que tenta consumir alguma coisa são alguns exemplos dessa expulsão involuntária promovida pelos que deveriam estender tapete vermelho. O pior é o olhar de “tu-por-aqui?” quando você chega na loja familiar e os proprietários estão ocupados em colocar a conversa em dia. Deveria haver um buraco onde o cliente pudesse se enfiar por alguns momentos, até passar o efeito devastador que a virada coletiva e silenciosa de cabeça em sua direção provoca, como a perguntar os motivos para a presença estranha em território sagrado.

Nas grandes corporações, o expediente é o famoso olho branco, o treinamento corporativo “tiau-pra-ti”, como dizem em Porto Alegre. Ausência ou as costas são os fatos mais comuns nos vestíbulos imensos e cheios de mercadorias, em que a migalha de uma orientação é negada pela falta absoluta de funcionários visíveis. Você é filmado de todos os ângulos, deve haver uns 15 analisando teus gestos, mas nenhuma gentileza chega para te encaminhar à estante certa, dizer se a casa trabalha com determinado produto, ou simplesmente para informar o preço que está oculto em código. É um paradoxo, pois existem grandes investimentos no marketing de relacionamento, quando pagam os tubos para mostrar o gesto virtual solícito que inexiste ao vivo.

O único lugar realmente explícito, visível e à disposição dos clientes é o setor de pagamentos. Como não pode existir sintonia entre falta de atenção e dinheiro em caixa, é um mistério que as megalojas aumentem cada vez mais o faturamento. Talvez porque a população tenha crescido de forma geométrica, e os monopólios, em relação a essa demanda, mantenham ainda encolhidos de maneira brutal os espaços reservados para as vendas. Meia dúzia de grifes exibe um olhar olímpico, como a dizer que os incomodados se retirem para as ruas de comércio popular, onde a desatenção usa de outras armas. Como, por exemplo, a gritaria no ouvido dos passantes, as mentiras escrachadas sobre qualidade e preços e o falso charme da ignorância vestida pelo tom da esperteza.

É por isso que ganha força as negociações via internet, capaz de uma comodidade que falta aos espaços comerciais físicos. Tenho preferido esse tipo de intercurso, apesar das eventuais surpresas, como a megamagazine que nos deixou esperando um mês para fornecer um reles gabinete de cozinha e, quase esgotado o prazo, avisou que não tinha o dito disponível. O transtorno foi driblado pela promessa de devolução do dinheiro, não sem antes a empresa definir, como solicitação sua, a desistência que foi deles. Mas quem pode contra a linguagem burocrática engessada em inúmeros documentos?

Gosto de freqüentar livrarias, mas ultimamente minha preferência por obras antigas tem me empurrado cada vez mais para a rede. Comprei esses dias um exemplar caprichado, bem melhor do que outro, da mesma edição, que eu tinha perdido, de conteúdo detalhado e interessante: “Viagem Militar ao Rio Grande do Sul”, do Conde D`Eu. Reli o livro para revisitar a minuciosa geografia desse narrador aristocrático, que debocha o tempo todo dos maus hábitos riograndenses, a começar pelo excesso de luxo em aposentos desconfortáveis. Não perdoa a fraqueza dos cavalos gaúchos, tão famosos, denunciando o gasto excessivo em arreios e estribos de prata, em contraposição à economia absurda em cereais adequados à alimentação das montarias, uma necessidade urgente em plena Guerra do Paraguai.

Como esqueci a narrativa, lida muitos anos atrás naquele exemplar que sumiu, ainda não cheguei ao destino do Conde, que acompanhava o Imperador em direção à minha cidade natal, Uruguaiana, tomada pelo inimigo. Mas sei que, graças à competência de uma livraria de Goiânia, tenho em mãos uma raridade sobre História do Brasil, que ensina mais do que muita análise desatenta, idêntica ao mau comércio que não faz questão de nossa existência.

RETORNO - 1.(*) Crônica publicada neste domingo, dia 12 de outubro de 2008, na revista Donna DC, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Charles Chaplin em Monsieur Verdoux.

3. " Senhor Nei, Adorei seu artigo de hoje: "Balcão de Pecados"! Além de oportuno e educativo, retrata bem nosso cotidiano no globalizado e inevitável mundo consumista. Eu, particularmente, me senti muito bem, pois concordo inteiramente com suas idéias ali expostas. Muitas vezes me questionei: será que estou ficando velha e chata? Estou me tornando uma "coroa" reclamona?

Na verdade, apesar de estar na casa dos cinqüenta anos e não me sentir tão velha quanto devem achar, tenho observado muito a mudança de hábitos de cortesia, tão ensinados e cobrados pelos pais da minha geração. Estes "modos" estão sumindo! E não estão em desuso apenas pelos jovens, mas pelos mais velhos (como eu) também!

Bom, não desejo, aqui, defender nenhuma tese. Apenas elogiar seu belo trabalho e ainda aproveitar para sugerir sua observação, reflexão e talvez um novo artigo sobre um ato corriqueiro e que me incomoda muito nos dias de hoje: a falta de privacidade, de respeito e de educação por que somos tratados nos caixas de supermecados. Pode-se observar que ninguém espera a sua vez: vão colocando as compras no balcão, em cima das mercadorias de quem está a frente, e ainda ficam "grudados" na hora do pagamento. Participam do valor a ser pago, da forma de pagamento e, se quiserem , conseguem até saber nome e telefone de que está sendo atendido. O bom senso me diz que devo aguardar minha vez no início do balcão, e esperar o cliente que está sendo atendido efetuar seu pagamento e retirar suas compras para, então, eu me aproximar do caixa. Será que estou sendo chata por me sentir incomodada com a "pressão da pressa" de quem está atrás de mim?

Agradeço sua atenção e volto a cumprimentá-lo por seu ÓTIMO artigo!" Kátia Ávila.

"Parabéns pela lucidez e sensibilidade tuas crônicas são maravilhosas em especial a do dia 3 de fevereiro desse ano e a de hoje."
Sandra Sandrini.

"Prezado Nei! A tua crônica: Balcão de pecados, é a constrangedoura verdade deste nosso mundo tão desamoroso. Quando achamos mais conveniente fazermos compras pela Internet,é porque as relações humanas estão indo muito mal,com nossos semelhantes cada vez mais indiferentes ao convívio olho no olho. A Internet,a meu ver,deveria ser um recurso,não uma fuga desse mundo moderno e apressado. O pior é que tenho notado que pouco a pouco vai-se ficando sozinho. Abraço afetuoso e continue escrevendo com essa lucidez e senso crítico." Elisa Wenzel Luzzato.

11 de outubro de 2008

ONDAS CURTAS


Nei Duclós

A lua cheia rola na grama do quintal
Convida para o drible, um tiro a gol

O tinteiro inteiro da caneta derramou
Mancha de rimas o céu passando mal

Essa tramela que fecha a porta ao sol
É uma gaiola que prende o rouxinol

Não posso jogar com essa Lua futebol
Ganhei castigo por sangrar o trovador

Mas o lamento me fazia tanto mal
Estrelas vertem remédios contra a dor

A bola bate nos meus versos de cristal
Enquanto escuto as ondas curtas do paiol

Não faz sentido essa conversa de hospital
Depois do jogo me conjugue um madrigal

RETORNO - Imagem de hoje: rádio Phillips Mullard, o rei das ondas curtas.