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26 de outubro de 2008

IMOBILIDADE, REGRESSÃO E LOUCURA EM "DURVAL DISCOS"


Nei Duclós

A demolição da loja que só vendia vinil e se recusava a acompanhar os tempos, no final do cult Durval Discos (Anna Muylaert, 2003) é a destruição não apenas de um negócio obsoleto, ou de uma construção velha, mas de todo o imaginário do país que se transformava na época em que ocorre os eventos da narrativa (1995). Essa superestrutura, nascida e criada na época da ditadura e que, em tese, se contrapunha aos poderes políticos do sistema, exibiu sua fragilidade no momento em que os protagonistas que dela se alimentavam não amadureceram. O dono da loja é o paradigma dessa imobilidade, que se estende aos outros personagens.

Durval (Ary França, antológico) não desvinculou o espaço profissional do doméstico. Vive com a mãe (Etty Fraser, definitiva) já sem capacidade física de manter a casa funcionando e que não entende o fracasso do empreendimento. O cabelo insistentemente comprido, inadequado ao visual do corpo marcado pela idade, no filho, e as roupas muito antigas, na mãe, são sinais evidentes de que pararam no tempo, incapazes de avançar. O que seria esse avanço? O reconhecimento do fim da adolescência, por parte do sujeito, e da chegada da senilidade, por parte da senhora.

Qual a saída? Seria o casamento, representado pela garçonete (Marisa Orth), que assedia o dono da loja em escapadas pretensamente para fumar, ou seja, fugir da tirania do pequeno patronato (a perua proprietária sempre com o filho pequeno nos braços). Mas o imaturo não reconhece que chegou a hora de casar, ter filhos, procurar uma solução profissional (no mínimo, tirar o ganha-pão do ambiente caseiro, do amadorismo). A velha não quer perder a mordomia do convívio com o filho, o mantém sob jugo e não aceita concorrência . Tanto não aceita, que se encarrega de atirar quando a moça descobre a menina seqüestrada sob custódia na casa/loja.

A criança (Isabela Guasco, perfeita), é a regressão. A velha quer voltar a ser mãe, o filho disputa o almoço com a menina. A infância abandonada pela mãe verdadeira, fingida e rica, que vive com a falsa mãe, a babá (Letícia Sabatella), acaba na mão dos seqüestradores. A filha não veio pelo amadurecimento dos personagens, e sim pela transgressão nesse mundo em ruínas. Ao pedir histórias de Cinderela e Branca de Neve, ao se fantasiar de bailarina, ao montar no cavalo branco (o símbolo do príncipe que um dia virá), a criança é a reprodução desse mundo imóvel, que recua. No filme, esse recuo deságua na loucura, quando acontece os assassinatos, a morte tanto da garçonete quando da babá, e o surto da velha, que não quer chamar a polícia.

A narrativa que começa tradicional, tipicamente brasileira, evolui para o surreal e o bizarro. É incrível como elementos simples (a carroça no asfalto, o cavalo no quarto, o sangue na parede) funcionam. Elogiadíssima, com justa razão, a diretora e roteirista Anna Muylaert teria, segundo alguns críticos, se inspirado em Dali para compor o visual de algumas cenas antológicas. Acredito que ela tenha um pé no cinema da Europa Oriental. Existe um toque de Cinzas e Diamantes, do polonês Andrzej Wadja, nas cenas do cavalo, assim como seu roteiro de “Quando meus pais saíram de férias”, que fez junto com o diretor Cao Hamburger, é totalmente calcado em “Quando meu pai saiu em viagem de negócios”, do iugoslavo (nascido em Sarajevo) Emir Kusturica.

O importante é que ela conseguiu grande impacto com seu filme ao radiografar uma população que não amadurece, que se refugia no imaginário ao qual foi acostumado e que considera ser de total libertação. Há encarceramento nessa cultura gerada em oposição, ou paralelamente, ao sistema de opressão econômica. É, no fundo, fruto dele. Por isso não tem força para sobreviver e sucumbe com as marteladas da barbárie urbana e econômica. São Paulo (o bairro de Pinheiros, mais especificamente) é o retrato desse caos a que foi reduzido o país na ditadura. Capote Valente com Teodoro Sampaio: passei mais de uma vida por esse endereço.

Lá estou eu freqüentando, com velhos discos de vinil, os sebos especializados, ciscando preciosidades, desatento à brutal transformação que erradicou nossas vidas para a lata do lixo. Toda aquela música estupenda que fez nossa cabeça foi junto e no seu lugar implantaram, com a nossa conivência, o baticum eletrônico, o berreiro pseudo-sertanejo, o esganiçamento pop, entre outras falcatruas. Mas, como Durval no final do filme, parecemos aliviados que tudo tenha enfim acabado. A criança volta para seu ambiente e nós voltamos à prisão a qual fomos acostumados. A servidão é um vício e Durval Discos sua denúncia.

RETORNO - 1. Imagem desta edição: Etty Fraser, Isabela Guasco e Ary França em Durval Discos.

2. Recebi o seguinte e-mail da diretora do filme, Anna Muylaert: "Olá Nei, adorei seu texto. Foi um dos melhores sobre o filme que ja li. Vc entendeu tudo em profundidade. Obrigada."

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