Nei Duclós (*)
Não existem mais fantasmas. Acho que o motivo é o excesso de luzes firmes. Espíritos precisam de fagulha, chama de vela, crepitar de fogueira. Eles são atraídos pela indecisão do fogo entre brilho e sombra. Lembro das labaredas que começavam com folhas secas no crepúsculo no meio do mato. Elas migravam para gravetos e galhos e chegavam submissas, em forma de brasas, às toras, que duravam até alta madrugada. Enquanto havia claridade, permanecíamos acordados, atentos aos barulhos, inexplicáveis.
Quando o breu tomava conta do acampamento, tentávamos dormir sob o sereno. O pai roncava com a auto-suficiência dos adultos, depois de nos assustar falando sobre bruxas, pontuando a narrativa com gestos largos sob o lusco-fusco de estrelas tímidas. Não havia lua, apenas nebulosas pretas a surrar as bordas da Via Láctea. Garras saíam à caça. Ou seria o roçar de almas famintas?
Algo mergulhava na correnteza fazendo um surdo estrondo, um silvo cruzava a margem oposta, alguém arrastava alpargatas: tudo era prenúncio de sustos. Criaturas misteriosas queriam fazer contato. Desconfio que elas nos raptavam no sono. E nos devolviam de manhã, provocando o despertar com mordidas de insetos.
Em casa era a mesma coisa. Tias contavam histórias de damas mortas, cadeiras que balançavam sozinhas, no ritmo de relógios de parede, imensos como catedrais. Mãos leves e invisíveis roubavam colares de pescoços nus. Mulheres de vestido platinado pediam carona e desciam na porta do cemitério. Avôs tossiam atrás de portas de quartos que jamais se abriam.
Tudo isso sumiu junto com as famílias numerosas, as casas de infinitos cômodos, os quintais onde cabia o mundo vasto. Foi-se embora como o chiado dos rádios de ondas curtas, os trens que partiam de estações vazias, rumo a plataformas tragadas pela névoa. Ficamos perdidos, sem ancestrais que batiam sinos em torres de aldeias fora do mapa.
Um dia, estaremos de novo no limite do arroio à espera da última barca. Seremos recolhidos, como os peixes nas redes de náilon. No outro lado, um entardecer idêntico nos espera com um fósforo aceso no montinho de folhas. Lá, será revelada a origem daqueles ruídos. E tudo acabará em risada, como nas pescarias.
Não existem mais fantasmas. Acho que o motivo é o excesso de luzes firmes. Espíritos precisam de fagulha, chama de vela, crepitar de fogueira. Eles são atraídos pela indecisão do fogo entre brilho e sombra. Lembro das labaredas que começavam com folhas secas no crepúsculo no meio do mato. Elas migravam para gravetos e galhos e chegavam submissas, em forma de brasas, às toras, que duravam até alta madrugada. Enquanto havia claridade, permanecíamos acordados, atentos aos barulhos, inexplicáveis.
Quando o breu tomava conta do acampamento, tentávamos dormir sob o sereno. O pai roncava com a auto-suficiência dos adultos, depois de nos assustar falando sobre bruxas, pontuando a narrativa com gestos largos sob o lusco-fusco de estrelas tímidas. Não havia lua, apenas nebulosas pretas a surrar as bordas da Via Láctea. Garras saíam à caça. Ou seria o roçar de almas famintas?
Algo mergulhava na correnteza fazendo um surdo estrondo, um silvo cruzava a margem oposta, alguém arrastava alpargatas: tudo era prenúncio de sustos. Criaturas misteriosas queriam fazer contato. Desconfio que elas nos raptavam no sono. E nos devolviam de manhã, provocando o despertar com mordidas de insetos.
Em casa era a mesma coisa. Tias contavam histórias de damas mortas, cadeiras que balançavam sozinhas, no ritmo de relógios de parede, imensos como catedrais. Mãos leves e invisíveis roubavam colares de pescoços nus. Mulheres de vestido platinado pediam carona e desciam na porta do cemitério. Avôs tossiam atrás de portas de quartos que jamais se abriam.
Tudo isso sumiu junto com as famílias numerosas, as casas de infinitos cômodos, os quintais onde cabia o mundo vasto. Foi-se embora como o chiado dos rádios de ondas curtas, os trens que partiam de estações vazias, rumo a plataformas tragadas pela névoa. Ficamos perdidos, sem ancestrais que batiam sinos em torres de aldeias fora do mapa.
Um dia, estaremos de novo no limite do arroio à espera da última barca. Seremos recolhidos, como os peixes nas redes de náilon. No outro lado, um entardecer idêntico nos espera com um fósforo aceso no montinho de folhas. Lá, será revelada a origem daqueles ruídos. E tudo acabará em risada, como nas pescarias.
RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 14 de outubro de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Miguel Ramos e Clênia Teixeira nas filmagens de "Enquanto a noite não chega", de Beto Souza, baseado em história de Josué Guimarães. Vi algumas cenas deste filme e aguardo com a maior ansiedade, pois a amostra empolga pela beleza e intensa dramaticidade das imagens.
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