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31 de agosto de 2007

ÁGUA PURA PARA O PEREGRINO


Transcrevo hoje uma pequena jóia da memória, de autoria de Clovis Heberle, jornalista e escritor. É um passeio que ele faz junto com Dedé Ferlauto até a casa do poeta Barbosa Lessa, em Camaquã, interior do Rio Grande do Sul. Aqui está resumida toda a história de uma geração que se insurgiu contra a violência invasiva de inúmeras maldades e tentou criou algo fora do circuito. É uma narrativa enxuta, primorosa e que atinge o alvo: recupera o que foi construído nas últimas décadas e joga para frente o que podemos inventar nesta vida que ainda foge da natureza apesar de tantos alertas. A foto mostra Dedé bebendo a água pura que tanta falta faz para todos nós. Atenção: o texto a seguir é de Clovis Heberle.


"UM DOMINGO COM DEDÉ


Clovis Heberle


Numa dessas noites de verão, na cozinha da casa dos Ferlauto na rua São Luís, entre uma e outra fatia de pão integral quentinho (feito pelo Dedé) com queijo e suco de uva, decidimos passar o domingo no sítio de Barbosa Lessa, no interior de Camaquã. Lessa era um dos inúmeros frutos cultivados na fértil lavoura da amizade do Dedé. A cada sábado ele a regava na feira ecológica da José Bonifácio, em longos papos com o poeta, folclorista e então produtor de erva-mate e travesseiros aromáticos, que ali vendia os seus produtos e encontrava os amigos.

Partimos bem cedinho, pois a viagem seria longa. O dia, de sol sem nuvens, estava perfeito. Cheguei antes das oito horas, e a Usha, o Dedé e a nossa amiga Ana Zilles já estavam me esperando. Colocamos no porta-malas macarrão, molho de tomate (preparado pelas gurias), água mineral e um bom vinho tinto chileno para ajudar no cardápio do almoço.

Até Camaquã, o único incidente da viagem foi uma tentativa de estrangulamento: Ana, sentada ao meu lado, começou a sufocar, apertada pelo cinto de segurança. Olhei para trás mal consegui conter o riso: com cara de sádico a la Jack Nicholson, Dedé puxava o cinto, enquanto Ana, quase sem ar, tentava concluir uma frase. Gargalhamos todos. O papo estava sério demais para uma bela manhã de domingo na estrada, e ele o encerrou à sua maneira.

Lessa havia dado todas as informações para chegarmos até o sítio. Depois de Camaquã a estrada de terra não tinha nenhuma sinalização, e volta e meia parávamos para perguntar onde estávamos. Conseguimos identificar a porteira do sítio e seguimos por uma estradinha estreita onde mal cabia um carro - depois ficamos sabendo que aquele caminho já não era usado há meses.

Algumas descidas e subidas eram tão íngremes que tememos não conseguir passar. Em alguns trechos, os galhos das árvores roçavam as laterais do carro. Mas o Fiat Mille (e o seu experiente motorista) superaram todos os obstáculos, e finalmente chegamos à casa de madeira, construída no alto de um pequeno vale. Da varanda sevê um riacho, que rola pelas pedras e forma um pequeno lago depois de despencar em cachoeira. Aquele sítio comprado por Barbosa Lessa depois de sua aposentadoria era a realização do sonho de voltar a viver na sua terra natal sem precisar parar de pesquisar, de ler, de criar e de se comunicar com seus amigos residentes na capital.

O casal morava no meio de uma área de mata nativa, onde cultivava e processava artesanalmente erva-mate e colhia plantas aromáticas na mata virgem para a fabricação de travesseiros. Aos sábados viajava até Porto Alegre num jipe Lada Niva para vender o seus produtos e encontrar os amigos. Perto da casa principal, Barbosa Lessa tinha o seu “escritório” - uma casinha de madeira cheia de livros, com uma janela voltada para o vale, onde podia ler e escrever sossegado, desfrutando de uma paisagem belíssima.

Os abraços e beijos dos nossos anfitriões foram interrompidos por gritos guturais vindos da mata. Rindo, o poeta explicou: são os bugios dando boas-vindas a vocês... Naquela mata virgem viviam bugios ainda em estado selvagem, que se alvorotavam ao ouvirem sons diferentes dos que estavam acostumados.

Quando entrávamos na casa com os alimentos, Nilza, a mulher de Barbosa Lessa, nos deteve, dizendo: “Tudo bem com o macarrão e o vinho, mas aqui não há ncessidade de água mineral engarrafada”. Em seguida nos levou até uma fonte de onde jorrava água para uma bica, saída da terra, fresquinha, sem qualquer impureza. Uma bebida rara.

Máquina fotográfica na mão, desci por um caminho entre as árvores até a beira do riacho para fazer fotos da cascata. Estava com pouca água, depois de três meses de estiagem, mas mesmo assim impressionava. Lá em cima, piscinas entre as pedras. Embaixo, as águas límpidas escorriam entre as árvores, toda esta beleza no quintal de casa. Dedé chegou apoiado num cajado, como se tivesse peregrinado léguas e léguas para chegar até ali. Se agachou e bebeu a água da sanga com as mãos em concha.

O almoço foi um banquete. Degustamos com vagar, quase em silêncio, o feijão com arroz, carne de panela e legumes preparados no fogão a lenha pela Nilza. De vez em quando Dedé exclamava “hummmmm, hummmmmm”, o melhor elogio que conseguia fazer quando gostava muito da comida. Bebemos o excelente vinho chileno, mas fiquei encantado mesmo pela água da fonte. Passei o dia bebendo. Tomei um porre daquela água.

Depois do almoço passeamos pelo sítio, envolvidos pelo carinho do Lessa e da Nilza. Foram horas de felicidade, paz e harmonia naquele pequeno paraíso.

Nas fotos, imagens para lembrar de um Dedé despreocupado, risonho, moleque, dedicado ao que mais gostava na vida: dar e receber afeto."

RETORNO - Imagem de hoje: Dedé Ferlauto, fotografado por Clovis Heberle.

30 de agosto de 2007

BALEIAS E BALÕES



Nei Duclós

Alertado sobre uma família de baleias que fazia evoluções na praia de Ingleses, onde moro, aproveitei a manhã de sol para mais um passeio com minha neta Maria Clara.

Pensei: que bela oportunidade para a criança usufruir da natureza, vendo essas glórias da criação ainda existentes. E elas estão pertinho de nós, praticamente na beira. Puxei a neta num passo apressado e vislumbrei dorsos cinza-esverdeados se sobressaindo no mar azul de inverno. Eram dois adultos e um filhote, pelo menos era o que eu adivinhava na coreografia de esconde-esconde.

No mesmo instante em que nos somávamos a centenas de espectadores do espetáculo, com direito a esguichos e caudas que administravam espumas em gestos graciosos, eis que três grupos de balões multicoloridos amarrados davam sopa bem no limite entre a areia e a água.

Maria Clara ficou encantada com a maravilha da natureza que são os balões pipocando ao sabor do quebra-mar. "Balão, balão", disse, exigente, com passos apressados e dedos decididos. Estava completamente alheia ao centro do picadeiro, uma exibição rara até mesmo em viagem de navio. Fui atrás, avô obediente que sou. Mas não conseguia alcançar nenhum dos tufos de balões, que brincavam de pegar comigo.

Uma senhora, condoída, se atreveu a me ajudar, não sem esforço. Depois de muita luta, ela alcançou um dos ramos de borracha vermelha e amarela, o que deixou Maria Clara pronta para voltar. Pois a idéia era prender os fugitivos num lugar seguro. Para ela, o principal do passeio estava feito: a captura daquela prenda surpreendente, que inventou de rolar bem na nossa frente, fazendo sombra ao que eu achava ser a coisa mais importante da temporada.

Mas não desisti. A toda hora, chamava a atenção da garota, que dava voltas ao redor dos seus balões. Quando ela atendia o meu pedido e se dignava a olhar os gigantes, contra o sol, eles tinham mergulhado por alguns segundos. Ela se virava, mas só via o de sempre: o mar infinito, a ilha lá adiante, navios no horizonte e na ponta direita da praia, a montanha, ou o morro, como queiram. Coisas banais de todo dia. O que é raro é balão pedindo para ser colhido, fazendo concorrência ao foco das atenções.

De mãos dadas com a neta, fiquei bastante tempo admirando a tranqüilidade das criaturas, que devem gostar mesmo é de praia. Sentem talvez uma vontade imensa de viver em terra, e essa, quem sabe, deve ser a explicação de tantas vezes escolherem o encalhe no lugar do alto mar.

Mas aquelas baleias não ameaçavam chegar até nós. Ficavam praticamente no mesmo lugar, gozando as delícias dos remansos da baía. Havia o vento tépido e uma súbita sintonia se estabeleceu entre gente e bicho. De quebra, ainda tínhamos na mão os balões ariscos, soprados num tamanho ideal, para que não estourassem.

Agora eles decoram a cabaninha improvisada no quintal, onde Maria Clara se dedica a alguns afazeres, coisas que não atinamos e que só ela, no seu mundo secreto, sabe do que se trata.

Manhã de baleias e balões: são muitas as atrações desta vida. Depende de cada um perceber onde está o verdadeiro valor de uma miragem, uma surpresa, um presente, prendas de um dia inigualável deste lugar ainda habitável, tanto para gente, quanto para outras manifestações da natureza.


RETORNO - 1. Imagem de hoje: ilustração de Juliana Duclós. 2. Esta crônica foi publicada no dia 28 de agosto de 2007 no caderno Variedades do Diário Catarinense.

29 de agosto de 2007

VEJA MISS POTTER


Ver filmes, para muitos críticos, da grande e da microimprensa, se transformou numa gincana de quem é mais cool, quem gosta mais de filmes de arte, obras transgressoras, espécimes de vanguarda. Quem descobre o grande cineasta de Botswana, Terra do Fogo, Pólo Norte (e agora chegam os indianos). Nesta época multiculturalista e politicamente correta, a moda é, como sempre, fazer pose e cuspir a esmo, para que todos vejam o quanto conseguem se desvencilhar do que realmente são, pobres escravos da indústria que gera bricolagens para manter o império do blockbuster. Parece uma contradição, mas não é.

Como o Mesmo costuma ser flagrado em seus crimes, é preciso jogar um pouco de lantejoulas nos olhos do mercado. Eles te distraem com obras premiadas, mas a realidade é outra. Quem vê esses filmes fantásticos a não ser os críticos e meia dúzia de privilegiados? Estou falando em distribuição, não em preferências. Eu gostaria de ver filmes de arte e de vanguarda todos os dias. Você pode gostar do cinema malaio, mas tem à disposição mesmo os americanos saindo a passo largo enquanto atrás deles explode algo com miríades de fogo e destruição.

Vimos Mel Gibson, Denzel Washington e Antonio Banderas nessa cena que virou griffe da asnice cinematográfica: eles vêm em direção à câmara, de óculos escuros ou olhar sampacu, enquanto às suas costas algo tremendo explode. São truques que se consolidam no cinema imperial que nos sufoca. O importante é inventar que isso agrada a maioria e a minoria que fique caçando talento à toa. Acaba acontecendo: os cineastas de vanguarda se rendem à mesmice e entram na roda.

Não se criam novas soluções cinematográficas na grande indústria, que se apartou dos escritores e cineastas de verdade, com algumas exceções. Numa recente Tela Quente da Globo, num desses filme catástrofe, um grande navio emerge da neve diante dos olhos assombrados de Denis Quaid. Pensei: parece a estátua da Liberdade em O Planeta dos Macacos, que surgia pela metade depois de uma hecatombe. Segundos depois, lá estava ela, a estátua da Liberdade, coberta de gelo, e com meio corpo para fora da neve.

As mesmas histórias também são recorrentes. Vi tempos atrás um filme em que uma gang juvenil seqüestrava o irmão do protagonista para cobrar uma dívida de drogas. O garoto é ferido no final, mas sobrevive. Pois bem. Dias atrás vi outro, Alphadog, de Nick Cassavets (filho de John Cassavets, o vanguardista de Nova York e astro do cinema) com o mesmíssimo tema, “baseado em fatos reais” (tudo é baseado em fatos reais, pois não?), em que o seqüestrado paga o pato de uma vida coletiva dispersiva e violenta da gurizada criada pelos maus modos do imperialismo. Essa promiscuidade, essa falta de idéias, define o perfil do entretenimento de massa, em que o objetivo é implantar o vazio no coração dos povos.

Se você quiser ver um Vittorio Mucino, por exemplo, apenas um dos seus filmes, L´Ultimo Bacio, não consegue. Há, sobrando, o acesso à refilmagem, americana, mas não há mais acesso ao bom cinema europeu, que sempre foi um contraponto à avalanche americana. Pode-se comprar nas melhores locadoras, claro, mas quem agüenta o orçamento? O ideal seria alugar na locadora da esquina, mas essas estão envolvidas com esquemas viciados de sobrevivência e acabam comprando porcarias a maior parte do tempo.

Além do cinema italiano, que em algumas décadas produziu filmes para todo o sempre (jamais deixaremos de ver aquelas obras-primas de tantos gênios), temos o bom cinema inglês, com tantos atores, atrizes e cineastas de gênio, e que volta e meia nos dá um susto. Há ainda o bom cinema americano feito na Inglaterra, como é o caso de Miss Potter, com essa fantástica atriz que é Renée Zellweger. Fiquei chocado que tenha sido um filme que fracassou na bilheteria, tanto nos Estados Unidos, quanto aqui. Preferem então as baixarias do Quentin Tarantino, com a Uma Thurman dando pontapés?

Miss Potter é uma delícia, um filme maravilhoso, uma verdadeira biografia de Beatrix Potter, a mais bem sucedida autora de livros infantis de todos os tempos. Falo verdadeira porque vi uma biografia fake e pretensiosa sobre a fotógrafa americana Diane Airbus, A Pele, com Nicole Kidman. Inventaram uma fase da vida da artista em que ela se entrega a todas as bizarrices, pois, claro, era uma dona de casa infeliz (que prato para os politicamente corretos).

Todas as donas de casa são infelizes, na visão viciada do nosso tempo, e ficam na sacada estuando o peito e tendo tremores de progesterona diante dos vizinhos. Mesmo que esse vizinho seja uma criatura horrenda, interpretada por Robert Downey Jr. (que nos extras faz boca de nojo ao ser referir à vidinha da classe média, que ele execra e faz questão de demonstrar ao ser preso a toda hora por ser o grande revolucionário que pensa ser; é um bom ator, mas muito metido).

Miss Potter era tímida e determinada ao mesmo tempo. Isso se reflete na criação magnífica de Renée, na fala contraída, na boca esforçada por dizer suas verdades. Potter (nome enraizado no imaginário da literatura infantil e não por acaso nome do bruxinho bem sucedido que veio depois) não apenas desenhava e escrevia, definia o formato dos livros (pequenos, para caber nas mãos das crianças), o tipo de letras, tudo. Impunha-se e deu certo. Ficou rica vendendo seus livros para o mundo inteiro.

O filme usa a animação de maneira muito light e sutil, sem comprometer a narrativa. Não se trata de realismo barato com pitadas de sonho, mas de um filme bem imaginado, bem dirigido e magnificamente interpretado. Veja Miss Potter e esqueça as barbaridades que nos colocam nas fuças o tempo todo. Fatalmente o filme foi mal recebido pela crítica porque o diretor é o mesmo de Babe, o porquinho falante. O que uma coisa tem a ver com a outra?

Outro filme que me encantou foi uma produção de 2001, O Escorpião de Jade, de Woody Allen, que eu ainda não tinha visto. Um filme policial e romântico, daqueles que te prendem do começo ao fim, inserido na linhagem de Ernst Lubistch e Billy Wilder. Um anacronismo (a cultura corporativa dos anos 90 em plena década de 40), regado com o melhor da música. Imperdível. Claro que também torceram o nariz para esse filme de Allen. É sempre assim. Basta você gostar para os sabichões se acharem muito inteligentes fazendo pouco. É por isso que temos tanta porcaria disponível. Quando fazem um filme bom, caem em cima matando a pau.


RETORNO - Imagem de hoje: a arte incomparável de Beatrix Potter, desenvolvida desde a infância e que conquistou o mundo. Quem não teve contato na infância com suas histórias e personagens?

28 de agosto de 2007

CHARADAS NOS CLASSIFICADOS


Nei Duclós

Leio sempre os classificados. Procuro pepitas, como Desenvolvedor Pleno, Engenheiro de Aplicação ou Empréstimos para Exército. Tem coisas do arco. Quitamos e refinanciamos seus empréstimos, bolinhas explosivas ou profissionais em marketing multinível, seja isso o que for. É impressionante como funções, cargos, vagas, produtos, ofertas passam por composições de linguagens completamente estranhas para mim. Não entendo mais nada do mundo corporativo.

O que é um consultor comercial, um vendedor der luxo? E um supervisor de relacionamento, o cara que fica olhando o namoro alheio? E um assistente de controladoria, serve cafezinho pra o controlador? Isso deve ser óbvio para quem é do ramo, mas para mim, que sempre exerci uma só função, a de escriba, passo ao largo de tanta novidade. Deveria conhecer essas coisas, já que trabalho em comunicação ("ué, mas tu não é jornalista?" costuma ser a frase lapidar de todas as cobranças). Mas uma redação não serve para nada (adoro dizer esse tipo de coisa). Pelo menos agora, nesta época de gestão de conteúdo, de convergência de mídias e de outras porras esdrúxulas.

Gosto dos classificados porque estão em cadernos à parte, não se metem no meio dos textos jornalísticos, como os anúncios. Um classificado tem a dignidade da sua identidade própria, tradição e utilidade. Um tijolinho pode salvar vidas. Bem dizia Mario Quintana que um poeta não lê poesia, lê os classificados (ele adorava dizer esse tipo de coisa).

Uma das coisas assombrosas dos classificados é a avalanche de veículos para vender. Como tanta gente pode querer se desfazer de algo que pertence às famílias? Não se vende um carro, é como entregar o caçula num matagal. Talvez o descenso do sentimento gregário pautado pelos gens e o relacionamento afetivo tenha atingido até mesmo a essência de um lar, que é o pé de borracha de estimação.

Outro alarme chama-se ponto. Vende-se o ponto, o negócio. Que história é essa? Você compra o ninho esquentado pelo sujeito que montou um mercadinho, uma cafeteria, mas tem ainda que pagar o aluguel? Uma birosca de 25 mil reais, por exemplo. Você vai lá e o cara te oferece meia dúzia de revistas velhas, uma geladeira antiga, um freezer fora de mão e pronto, é o negócio. Você compra dele e ainda vai falar com o dono do prédio onde o ponto foi feito, para acertar quanto vai morrer por mês para ocupar o espaço que, mesmo pago por você, não lhe pertence?

Vender o ponto é uma charada e tanto. O cara que está louco para se desfazer da enrascada diz que só sai de lá se lhe pagarem pela freguesia que fez. Como se fosse possível colocar uma etiqueta na probabilidade de vir ainda gente freqüentar aquele balcão. Comprar o ponto, vírgula. Deixa que eu mesmo invento a freguesia. É melhor deixar esse tipo de apelo para lá.

Nos textos minúsculos estão as jóias da coroa. Vendo um aparelho neurodyn de corrente tens/fes, por exemplo. Ou o dinâmico mercado de cartuchos. Esse negócio de tinta para impressora é uma coisa. Custa uma nota. Várias vezes me vi sem poder imprimir porque tinha que depositar um milhão de dólares para levar um cartucho usado, meio cheio, com tinta vencida. É pior do que gasolina.

Sempre me imagino em postos que jamais ocuparei. Como operador de carregadeira, técnico em edificações ou analista implementador. Já pensou? Eu, um analista implementando seja lá o que for, operando uma carregadeira em algum lugar da grande nação ou edificando coisas como técnico com capacete de plástico e tudo, desses que os políticos usam para acompanhar o gesto de apontar para o alto e para longe.

Assim vou viajando nos classificados, que são os cadernos que sobrevivem na grande vassourada do tempo. Guardamos porque são úteis. Lá tem um monte de informação substancial. Mas passada uma semana, tendo se acumulado pilhas desses tijolos de letras, jogamos também no lixo. E lá se vão os classificados mundo afora, com suas miudezas, promessas, esperanças, tentações, a atulhar sarjetas, lixões ou simplesmente servir de forro para alguma encomenda.

O bom é que a toda hora chega um, novinho em folha. Hummm..., o que será que temos hoje? Ôpa! Vaga para técnico de futebol do interior, em time que disputa a Série Z. Interessante, sempre quis dirigir um time de futebol. Caseiro: basta ficar no sítio, paga-se bem. Quer ser documentarista de natureza? Essa é fria. Estão vendendo um curso. Não vale. Um curso vai contra o espírito dos classificados, pois contém armadilhas para quem procura ouro. A não ser que seja treinamento para procurar pirâmides improváveis no interior do Brasil.

Está aí uma coisa que eu gostaria de achar: uma pirâmide inédita, fazendo pose egípcia no miolo do sertão. Mas isso seria demais. Existem charadas tão misteriosas que nem os classificados poderiam suportar.


26 de agosto de 2007

URUGUAI




Nei Duclós

Aquele rio de nome estrangeiro
não nos pertence
Se é também nosso
é porque é deles

Ficamos com a terra
mas perdemos o rio
Como cortar a água com a faca?
Como inscrever uma cerca
na correnteza?
Como contentar-se
com uma só margem?

Aquele rio, de nosso
tem apenas a paisagem
O rio mesmo, suas águas,
o barro no fundo,
os peixes e também
os fantasmas são de outro país

Aquele rio estrangeiro
entretanto é a minha pátria
Porque nele minha infância
molhou os pés sob os olhos
vigilantes da mãe
que não permitia a água chegar à cintura
Porque nele, adolescente,
pesquei piavas ligeiras
que assobiavam na superfície

Porque tornou-se meu com o tempo
deixou de ser estrangeiro?
Quando estou do outro lado da ponte
onde fica o rio que é meu?

Aquele rio permaneceu
com seus arroios onde imperou meu pai
que hoje me abraçam sem jamais revelar
a que nação de verdade pertenço

Talvez faça parte da pátria
comum da poesia
Mas um pescador precisa de peixes
não de poemas
precisa de anzóis,
não de canções

Estendo toda noite o espinhel
das minhas perguntas
naquele rio dividido
entre o país do meu pai
e a nação que inventei durante a vida

RETORNO - 1. Este poema faz parte do livro ainda inédito "Partimos de Manhã". 2. Imagem de hoje: uma foto clássica de Anderson Petroceli. Foi bater o olho na foto e lembrar do poema sobre o rio da minha vida.


24 de agosto de 2007

A LIBERDADE EM DEDÉ FERLAUTO


A LIBERDADE EM DEDÉ FERLAUTO

“Peço demissão do cargo de habitante do planeta” (trecho de uma carta de Dedé endereçada a mim, datada de 27/abril/1977)

Foi-se, nesta madrugada de 24 de agosto de 2007, o poeta Dedé Ferlauto, partindo o coração de todos os seus amigos e de uma família brilhante, de um músico (Leo), um arquiteto (Cláudio), um engenheiro (Felipe), mais a família que ajudou também a inventar, mulher, filhos, netos, enfim, todas as pessoas que conviveram com ele nesta curta/longa vida. Palavras não servem de consolo, ainda mais partindo de mim, que há muito tempo não conversava com ele. Soube recentemente que ele estava morando no sul da ilha. Mas, como disse em meu livro Outubro, que Dedé gostava demais: a linguagem é a única arma que eu disponho.

Fui amigo de Dedé, mais intensamente por um tempo, do final dos 60 até o final dos anos 70, quando então nos correspondíamos por carta, eu em São Paulo iniciando uma vida dura na megalópole, ele, mais lúcido, refugiado em Sapiranga, interior do Rio Grande do Sul. De lá me enviou confidências e poemas. Um deles, Furto Qualificado, diz assim: “Por todas as frestas/ de todas as paredes/ desta casa/ muitos olhos espreitam/ consultam/ memorizam/ e sons são sugados,/ magnetizados/ por todos os poros/ da casa/ do corpo/ das palavras(...)”

Tomei conhecimento de Dedé Ferlauto quando vi, colados em azulejos, selos/poemas assinados por Zé Liberdade. Era ele. “Me sinto por fora desta coisas que andam acontecendo entre as pessoas que escrevem, revistas, editoras, livros e outros.”, me escreveu ele anos mais tarde. “Os caras andam muito chatos com essa mania de querer fazer História. Acho um saco. Caí fora. Me sinto sem norte, sozinho e não me assusto”. Via-se como um anarquista. Vejo-o como um outsider sincero, que viveu integralmente sua literatura, a que fisga pela vocação e carrega a criatura escolhida por toda a vida.

Suas palavras, como de todo poeta, são proféticas. Veja o que disse no final dos anos 70: “Ando contrariado com minha vida profissional” (e quem não anda, Dedé? acrescento agora eu). “O que é um jornalista hoje em dia, salvo exceções? Não estou mais aí pra andar informado da merda mundial.” Ele estava em outra: “Enquanto isso vou procurando caminhar com minhas próprias pernas e levando minhas palavras por aí afora, como quem não quer nada. Quer nada? Como quem? Como? Quem? Quer? Nada?”

Numa carta coletiva/manifesto, deixou claro sua ação poética em trechos selecionados de grande lucidez: “É compreendendo a angústia que se resolvem problemas, e concomitantemente é compreendendo-a que ela se dissipa numa grande e violenta atividade de criação. É olhar para dentro, para mim, é tentar compreender as linguagens que nos cercam (como as abelhas, como as plantas, como a biodinâmica, como o ciclo de vida nas plantas, hortaliças etc.) e pelas linguagens que utilizamos para a nossa criação (abaixo a arquitetura, viva a agricultura!). É dentro da angústia, da indecisão, que é possível localizar o desconhecido, o novo. “

Dedé não quis compactuar com políticas, grupos, panelas. Preferiu a solidão poética, a verdadeira, a que jamais consola, pelo sofrimento que provoca, mas a única que garante a liberdade. Ele escolheu a liberdade numa época em que tudo foi datado, classificado, organizado, definido. Por isso Dedé Ferlauto é uma prova viva de que podemos ser criaturas livres, mesmo que isso nos custe uma vida difícil, mas jamais apartada da grandeza.

Foi-se Dedé Ferlauto. Seus agitos continuam. Longa vida à sua obra.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: obra de Ricky Bols, artista da pesada que mora na cidade de todos nós, Porto Alegre. 2. Um perfil completo de Dedé Ferlauto está no blog do jornalista Jorge Correa.

UMA NAÇÃO DE ESTRANGEIROS


Nariz batata na raça pura, moreno escuro na pele do milionário, lábio grosso na socialite, olho de índio no latifundiário, olho azul no favelado: há sempre uma contradição étnica no brasileiro de todas as cores, gêneros e classes. A mistureba desmoraliza a eugenia, que revida, mentindo. Todos os males são fruto da lambança racial. Todas as virtudes, da pureza. É costume hoje encher a boca com as palavras italiano, alemão, japonês, francês, russo ou americano. Falar português é considerado um atraso. Só consegue bolsa, emprego, colocação, se souber inglês. Normal.

Somos uma nação de estrangeiros. Os brasileiros sumiram. Viraram pó, junto com velhos livros do colégio, quando sabíamos dos três troncos humanos da nossa formação: o branco, o índio e negro, que redundou no Zé Ninguém, nós mesmos. Saiu do vocabulário o cafuso, o mulato, o mestiço. Somos afro-descendentes, hispânicos, asiáticos. O Brasil existe graças às migrações européias, claro. Índio não tem vez na fase atual da auto-percepção do país. Ter ensinado português a sobreviver na selva, a substituir a eficiente flecha à pólvora que molhava no rio, tudo isso virou sucata.

O que vale é a horta que o migrante plantou na serra, o restaurante que abriu no Brás, a fabriqueta que implantou em Sum Poulo. Não importa o milho, a farinha, a mandioca. O que vale é a cana, a soja e o biodesel. A roça dançou, não temos mais lavradores, apenas retirantes. É proibido plantar, a não ser produtos eugênicos, modificados geneticamente, apelidados de commoditties. Por isso comemos imitação transgênica de carne, frango com antibiótico, alface mal lavada em cubículos de empresinhas jamais fiscalizadas, enquanto exportamos alcatra para os eslavos.

E não adianta insistir, nem contrariar. Mudaram a História do país à força do enterro de autores clássicos e com a avalanche de superficialidades desviadas da micro-história. Como se fôssemos fruto de mentalidades, ongs, gêneros, números ou graus, e não da guerra, do suor, do sangue de multidões que enterraram na pátria o corpo batido dessa gana de viver aqui. Nossas batalhas foram desmoralizadas. O que pega é o navio cheio de sangue puro que veio para cá catequizar o gentio e levar as glórias da construção de um país feito no muque e que perdeu seu rumo.

Volto a essa abordagem, recorrente aqui no Diário da Fonte, porque eles não dão trégua. Cabelos engomados de faces cruas esqueléticas (de tantas dietas) proferem verdades incontestes, vomitam dia e noite na televisão e jornais que isto aqui foi feito pelos europeus, quando sabemos que o gentio bruto é que formatou a nação, mas não levou o crédito. Ficou a versão dos donos do poder. Mas quem se importa? O negócio é desvirtuar tudo, para se apropriar de tantos patrimônios. Qual a origem do seu sobrenome? Ah, é francês? Que coisa. Somos todos italianos.

Mas basta eles se distraírem, e lá aparece o povo brasileiro, com sua cara identificável, seus gestos, sua maneira de falar, sua inocência escaldada, sua grandeza oculta, sua sabedoria tratada como indigência mental. Como sacodem a cabeça compreensivos os luminares das raças hegemônicas. Essa gente, não tem jeito mesmo. São tão fofos. Servem para materinhas humanas. Para arrancar grana da culpa de politicamente corretos do Exterior. Como são fascinantes e exóticas as favelas. Que cores, que criatividade. Como é incrível um país que jogou seu povo no lixo.

Mas nem tudo está perdido. Basta dar uns litros de leite para essa gente que logo eles vão ganhando medalhas. E como choram na hora em que câmara pousa em seus rostos sacrificados. Os observadores, do Olimpo de suas certezas, olham a planície dos desesperados com suspiros de dever cumprido. Eles ensinam como a coisa funciona. E lamentam muito quando levam um tranco no meio das fuças. Tsk tsk tsk. Existem elementos dessa gente que não se comportam como raça inferior. Por isso precisamos não apenas catequizar, mas amontoá-los em cadeias pôdres, atropelá-los em nossos rallys, demiti-los, persegui-los quando montam uma birosca ou uma banquinha na praça.

Eles precisam ensinar a essa gente que o Brasil foi feito para ser tungado, por mais que existam vestígios da luta patriótica pelo território e pela nação enfim enxovalhada. Por isso hoje rezamos pelo nosso presidente do Brasil Soberano, Getúlio Vargas, que imolou-se em praça pública pelo povo que um dia não será mais escravo de ninguém. Neste 24 de agosto, 53 anos sem Vargas, é preciso dizer, como um grito ou uma oração: Pátria saudosa, presente. Te queremos de volta.

RETORNO - Imagem de hoje: Vargas, rodeado pela minha geração.

23 de agosto de 2007

PORNOGRAFIA POPULAR

Duas prostitutas quase nuas na piscina fingindo tesão uma pela outra, sob as vistas cheias de sopros para dentro de um quase cinquentão, foi a cena que iniciou uma série de novas baixarias na novela das nove da Globo e que culminou com um escândalo envolvendo noivo algemado em dia de casório.

O Ibope anuncia que a audiência atingiu seu pico, não importa o que signifique esse tipo de pornografia explícita em horário nobre, aquele em que todo mundo senta compulsoriamente diante da TV, já que não existe lugar para onde ir, devido à poluição, o caos urbano, à violência e aos altos preços do lazer .

Não se trata de contrapor à pornografia popular a falsa virtude de um programa religioso, como acontece na Band e que é um desastre absoluto. Mas de se perguntar o que acontece com as pessoas expostas a esse tipo de crime comercial e apelativo? Logo depois do noticiário da tarde, no programa Vídeo Show, as atrizes que fazem papel de putas comentam alegremente mais esse passo importante para as suas “carrãiras”.

Atenção: vai ao ar de tarde. Não há limites para a insânia. Uma pessoa que cresce vendo prostituição guindada a entretenimento maior só pode encontrar caminhos fora de certos princípios. Vão achar que se prostituir é bacana, legal, todo mundo apóia e dá força. Será que também vai virar obrigatória?

Há milhões de assuntos a serem abordados na televisão. Internet, por exemplo, só aparece sob completa demonização. Só quando prendem quadrilhas que tungam contas por meia do roubo digital é que a Internet é matéria. Ou então no único canal existente na rede, exatamente o do monopólio televisivo. Internet, tecnologia, literatura, viagens, negócios: por que deixar bons assuntos de lado e apostar na espetacularização da baixaria, da miséria, da brutalidade, do vazio?

Claro que é para, nos intervalos comerciais, vender virtudes. É a educação via Ong, a contribuição para a infância via megapromoção, os cuidados com a saúde por meio de remédios variados etc.

Fazem isso com cultura e arte. Tiram do ar todo tipo de manifestação de qualidade, entupindo o público de sertanojos e outros quetais. Nos intervalos comerciais, uma bossa-nova, um jazz, um trecho de sonata. Vendem caro a qualidade, ministrada em conta-gostas. “Em que espelho ficou perdida a minha face?”, perguntou um dia a poeta Cecília Meirelles.

21 de agosto de 2007

VAIDADES EXPLÍCITAS (*)




A vaidade se manifesta por inúmeros gestos. Um deles é um certo esgar no rosto, quando o vaidoso força um dos cantos da boca (com leve interferência na base do nariz), contraindo a bochecha. É só lembrar da expressão característica de Elvis Presley, que uma vez debochou da insistência de Hollywood em explorar esse detalhe do seu acervo, tão cheio de inovações.

O ar blasé sugerido juntou-se a coisas não menos prosaicas, mas de grande impacto, como o rebolado para homem e a coreografia dos ombros ritmada pelas torcidas bruscas de pescoço.

Talvez o esgar de Elvis não tenha sido expressão de suas vaidades, já que fora forçado a transformar em hábito um trunfo circunstancial, inventado diante do espelho para fisgar garotas. Mas a imitação dessa pequena orgia facial, que se multiplicou até chegar aos ídolos de barro de hoje, pode ser colocada na galeria dos gestos que a sociedade do espetáculo consagrou para faturar em cima do individualismo trabalhado como endemia.

O farfalhar dos cabelos é outra contribuição da vaidade para a cultura cosmética de massas. Não se trata apenas de comercial de xampu, que são sempre os mesmos há décadas, com suas erupções capilares rigorosamente enquadradas num modelo sintético de beleza e limpeza. Mas de entrevistas de celebridades que costumam jogar para todos os lados os cabelos que sobram em brilho depois de um tratamento que deve durar horas.

Esse fru-fru possui ambição. Ele se pretende uma reiteração da falsa originalidade repetida até a exaustão. Costuma tomar conta da percepção dos espectadores, hipnotizados, sem saber, pelo resultado de um gesto vazio que funciona, em tese, como uma espécie de status. Parece que dá certo, já que os cabelos, a todo momento, são atirados para o alto, para o lado, ou agarrados como se fossem pedras de um jogo de Cinco Marias, que depois se desatam no ar. Esse lance acompanha frases de efeito, que exigem aplausos no ponto final.

Mas existem outros gestos mais restritos aos sabichões de verdade, os especialistas convocados para decifrar nossas tragédias diárias. O sacudir afirmativo veemente da cabeça depois de uma declaração que se quer bombástica é uma delas. Significa: "estou aguardando você, interlocutor, chegar às minhas alturas". É no fundo uma concessão de quem detém o conhecimento e precisa ter paciência para que a platéia o acompanhe.

Como é notória a incapacidade de se produzir pensamento que preste hoje no Brasil, o sacudir afirmativo fica sendo a marca registrada de um capital simbólico que perdeu valor de tanto ser contrariado pela realidade.

Há ainda expedientes menos perceptíveis, mas tão significativos quanto os óculos espelhados. Como o de entrelaçar as mãos para apontar a inadequação do pensamento alheio num debate. Já vimos esse filme. O especialista fica escandindo as sílabas para que a imbecilidade reinante possa entender o que ele está proferindo. Mas isso não basta. É preciso que as frases sejam acompanhadas pelas mãos cruzadas em todos os dedos, com as palmas viradas para cima, quando são sacudidas compassadamente.

Forçar o destaque tendo o cuidado de não dar bola para ninguém é o objetivo das criaturas descartáveis desta época sombria.

RETORNO - 1. (*) Este texto foi publicado nesta terça-feira, dia 21, no caderno Variedades do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: belíssima foto de Regina Agrella, que tem tudo a ver com arte, e não com a vaidade destacada na crônica.

20 de agosto de 2007

O VENDEDOR DE CERCAS





Nei Duclós

Preciso contar a história de Lê, o vendedor de cercas. Quem me lembrou dele foi a mulher que reencontrei e que estava brigada comigo. Ela, ou eu, tinha aprontado algo que não consigo identificar, já que tudo isso me foi soprado num sonho (o que não significa que seja invenção minha). Brigamos depois de nos dizer algumas coisas. Era um assunto relacionado, talvez, ao comportamento profissional em determinada situação, que não me agradara.

Possivelmente uma reportagem mal costurada, um atraso na entrega da matéria. Desavenças comuns neste ofício complicado. Quantas vezes levei duras de chefes de qualquer gênero? Mas, insisto, era tudo um sonho, e nada tinha a ver com meus ruídos reais (pelo menos eu acreditava nisso). Parece que ela aceitou, relutante, as críticas, e foi-se embora, não sem antes virar para mim e me falar de Lê, o vendedor de cercas.

“Ele era muito seu amigo”, me disse, quase num tom de censura por eu não recordar de ninguém que tivesse um nome parecido ou estivesse envolvido com tão estranha ocupação. Ela se referira a Lê na primeira vez em que nos falamos nesse reencontro desastroso. Mas eu não prestei atenção. Só depois, quando pronunciou a palavra amigo, me veio subitamente a visão de alguém que estava confinado numa profissão que não lhe dizia respeito. Uma pessoa interessada em literatura e que lera alguns clássicos que eu ignorava.

Meu desconhecimento em relação a autores obrigatórios fez com que Lê gastasse seu latim por um bom tempo em bares perdidos de periferias ocupadas por essas gigantescas empresas de comunicação, que se recolhem longe dos bairros habitáveis para economizar e fazer sofrer seus jornalistas.

Talvez Lê fosse uma daquelas pessoas que puxaram conversa comigo quando eu tomava uns rebites em pleno fechamento. Uma cachacinha nordestina, uma cerveja gelada, tudo para esquecer a obrigação de fazer títulos, ler textos alheios, aturar chefes, cumprir prazos. Lê viu que eu não estava satisfeito e veio me falar de coisas que a princípio me pareceram interessantes, ou seja, estavam fora do meu circuito medíocre de jornalismo metido a besta.

Ele me falava de grandes alambrados, cercas gigantescas que precisavam ser levantadas para cercar latifúndios ou então pequenas propriedades prósperas assustadas com o avanço da miséria e da violência. Isso começou a acontecer, acredito, nos anos 80, há muito tempo, portanto. Era o início da avalanche que tomou conta do país e Lê era o cara certo no momento certo. Costumava ser convocado em todos os cantos. Paulista da Mooca, adquiriu vários sotaques para se adaptar às exigências dos compradores e poder assim repassar alguma credibilidade.

Quem compra precisa acreditar no vendedor. Se Lê falasse um bom gauchês avançado, tornava-se irresistível, principalmente nas novas fronteiras, onde proprietários de terra subsidiados passavam do acampamento para a roça bem fornida. O vendedor de cercas assim fazia a mala, mas algo faltava dentro de si. Faltava gente com quem conversar sobre sua secreta paixão, a literatura.

Eu estava aberto a confidências, já que sempre vivi isolado, apesar de morar numa profissão dedicada ao evento, ao bafafá, à vitrine. Eu me recolhia como no primeiro ano do Jardim da Infância, que chamaram depois de pré-primário. Quieto, longe dos colegas, voltado para a parede, eu vivia no mundo ao qual me acostumara dentro de casa. Fiquei assim a vida toda, apesar de me violentar escolhendo uma profissão exatamente contrária a mim.

Foi por isso talvez que fugi tanto de empregos e cidades. Queria ficar longe, no pátio, onde levantávamos um CTG de madeira velha, de caixote e lá fazíamos os churrascos dominicais. Mas essa solidão e recolhimento tinham um preço. Precisava compartilhar, falar sobre o que via e lia. Poderia ser Lê ou qualquer outra pessoa. Eu queria mesmo era conversar com gente de verdade, longe de redações atulhadas de inúteis iguais a mim.

Fiz assim uma amizade profunda em algumas biroscas que eu e Lê dividíamos. Ele confessava que jamais poderia largar seu bem remunerado emprego, que lhe proporcionava condições de comprar livros antigos, aqueles grandes, de letras redondas e margens infinitas. Lamentava não saber russo para ler Tolstoi e Tchecov no original. Prefiria as traduções antigas, de escritores brasileiros, do que estas mais recentes, a cargo de tecnocratas da linguagem. Preferia que os russos passassem antes pela suavidade do francês e só daí para a nossa língua, como acontecia antigamente. Havia também o encanto de edições dos anos 40, 50 ou 60 a exibirem aquele ranço lusitano que o Pasquim, a partir de 1969, demoliu.

Lê, o vendedor de cercas, era muito meu amigo. Mas como sou um ingrato e deixo pessoas como deixo cidades, tinha me esquecido completamente dele. Foi preciso que num sonho, alguém que eu desconhecia completamente e que me contrariara em alguma coisa, me avivasse a memória. Qual seria a ligação entre a mulher do sonho e Lê, o vendedor de cercas? Teriam filhos? Por que, em vez de brigar, não fiz perguntas, como qualquer criatura humana faria? Lê estaria no Exterior, em países remotos, da África ou Ásia, levantando alambrados? Ela o estaria esperando em algum porto? Lê aprendera, enfim, o russo? Estivera naquela parada onde Tolstoi sentou-se fugido da família, com mais de 80 anos de idade? Teria Lê escrito algum livro?

Cada personagem é um mistério. Esse me escapou, por eu ser tão distraído. Mesmo que eu volte àqueles bares da periferia, não poderia reencontrá-lo. Lê deve estar aposentado, conversando com escritores fugidos, na Jamaica ou em Bornéu. Ou estaria na vala comum de nosso amplo território, flagrado por um tiro de tocaia, por um inconformado proprietário que não gostou do serviço, ou de um vizinho que reclamava das medidas, das balizas, do material usado? Jamais saberemos. Só mesmo um sonho para trazê-lo de volta. Assim mesmo por um instante só, como quem lê um título.

RETORNO - Imagem de hoje: foto magnífica de Anderson Petroceli, fotógrafo maior da fronteira do Brasil Soberano.

19 de agosto de 2007

AGOSTO ATÍPICO

Nei Duclós

Por que acusar agosto de crimes que em todos os meses se cometem? Por que sentir saudade de janeiro, quando sabemos que é tempo de inundações e tempestades? (Crônica publicada neste domingo no caderno Donna DC, do Diário Catarinense).

É arriscado dizer que agosto parece humano depois da sordidez dos meses anteriores, em que mergulhamos no mais tenebroso Inverno. Vai que o tempo vira de novo, ou que, Deus nos livre, algum outro gênio morra. Houve até a morte providencial de Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni um pouco antes da chegada do mês fatídico (ou teria sido seu prenúncio?).

Talvez este agosto tenha traído sua natureza e resolveu provar que a implicância contra ele não deveria existir. Há perda em qualquer época do ano. Por que acusar agosto de crimes que em todos os meses se cometem? Por que sentir saudade de janeiro, quando sabemos que é tempo de inundações e tempestades? Por que celebrar fevereiro se o país pára e as estradas ficam coalhadas de acidentes?

E julho, mês de férias, com seus apagões aéreos? Por que ansiar por setembro, se sabemos que a tragédia não escolhe data nem o amor exibe algum capricho sazonal? O que dizer de novembro, então, com suas torres despencando em milhões de pedaços? Por que culpar agosto quando existem tantos candidatos à condenação?

Identificar os meses selecionando eventos que tracem seu perfil, gerando assim definições impostas, baseadas em evidências aleatórias, é mais uma herança da astrologia popular do que da realidade. O álibi é que qualquer defesa feita poderia escorregar em algum grande terremoto.

Ter perdido tanta gente brilhante em agosto não significa nada quando sabemos que Charles Chaplin se foi no Natal. Para quem teve uma experiência dolorosa num mês qualquer, a passagem por agosto pode até ser um alívio, por não lhe trazer nenhuma lembrança pesada. Talvez fosse o caso de fazer com que agosto assuma outra vestimenta. Poderíamos inverter a má fama escolhendo agosto como o mês do balanço, já que o ano custa tanto a começar.

Depois das festas da virada do ano, do Carnaval e da Páscoa, dos recessos parlamentares e das leis adiadas, depois que se esgotam as desculpas dos governantes, das dietas e das mudanças que nunca são levadas a sério, chegaria uma época, exatamente este mês tão pouco considerado, em que mergulharíamos coletivamente numa reflexão sobre o que estamos fazendo com nossas vidas.

Seria a chance de provar que o acaso não é determinante dos destinos, que nossos rumos poderiam sofrer a influência do que matutamos, debatemos, definimos. Poderíamos escolher agosto como o mês em que as palavras voltam ao seu leito normal e nomeiem as coisas e os eventos sem o brilhareco das ilusões ou das falsidades. Agosto seria então aquele vale, não de lágrimas, que delas nos servimos em qualquer tempo, mas de um olhar mais atento ao que somos.

Seria o ambiente ideal para decisões mais profundas, que nos atinjam em cheio. Pois vamos o tempo todo empurrando para frente o que sabemos ser fundamental para nós. Um dia, quem sabe, costumamos dizer, mentindo por dentro. Pois se escolhermos agosto para a tomada de posição, quem sabe esta seria uma época aguardada com alegria, ano após ano, em que poderíamos somar vitórias no lugar de temer represálias do destino? Teríamos assim motivos de sobra para celebrar agosto.

Esperaríamos sua chegada como o momento decisivo em que não teríamos mais motivos para deixar as coisas para mais tarde. Seria o rito de passagem não para o final preguiçoso do ano, mas para o nível ao qual sempre aspiramos. Esse nível nada tem a ver com status ou glórias, mas com o que queremos fazer, gostamos de fazer e sabemos que isso é o que nos tornará completos.

Podemos até torcer que uma idéia assim, jogada a esmo como semente em território incerto, não fique para trás, como costuma acontecer. Pois qualquer proposta passa antes pelo corredor polonês das críticas e desconfianças. "Ora, mas isso não vai dar certo. Já pensaram antes e o que aconteceu?" Dúvidas assim seriam a primeira prova. Os outros meses agradeceriam. Principalmente dezembro, que ficaria assim livre apenas para as festas. Certamente haveria menos choro no Natal e Ano Novo, já que as grandes decisões foram tomadas em agosto.

Haveriam brindes de verdade, sem o peso amargurado dos balanços de fim de ano. Pois agosto, como um mensageiro que traz a boa nova, teria dado conta do serviço.


RETORNO - Saiu a segunda edição do livro "A espada na pedra", primeiro dos cinco volumes da saga arturiana de T.W. White, Once and future king. A tradução dos livros é de Maria José Silveira, mas o título da coletânea foi traduzida por mim: O único e eterno rei, quando fui editor executivo da W11, agora Francis. A orelha não está assinada, mas também é minha. Na época decidi não assinar, pois estava assinando orelha demais na editora. Diz meu texto: "Seria inconcebível o sucesso extraordinário de histórias como O Senhor dos anéis e Harry Potter sem que, antes delas, existisse a seminal e insuperável obra de T.H. White, O único e eterno rei, da qual A espada na pedra é o primeiro dos cinco volumes. Esta versão definitiva da lenda arturiana, lida e amada por todas as gerações e fonte generosa de inúmeras outras obras no cinema, no teatro e na literatura, é uma influência cultural decisiva do nosso tempo. Este primeiro volume apresenta a educação do jovem Arthur, aqui apelidado Wart, sob o teto de seu tutor, sir Ector, e introduz a figura de seu grande guia da vida inteira, o mago Merlin. Dos cinco volumes que compõem a saga, este é o de maior apelo entre jovens. Ao inaugurar a história, A espada na pedra toca na mais explícita manifestação da permanência da vida humana, a predestinação, que é a garantia da justiça, patrocinada por um poder maior, a divindade". O texto continua. Daqui a pouco digito o resto.

18 de agosto de 2007

TERREMOTO NA PIRATARIA


Os sanguessugas conseguiram: especularam em cima de créditos imobiliários pôdres e desencadearam um efeito dominó no sistema financeiro globalizado. Os Estados Unidos aplacaram momentaneamente o fluxo que levará à quebradeira geral ao abrir mão de juros. Aqui é o contrário: estuda-se um aperto fiscal e financeiro. Com isso, a CPMF (aquela tunga em que te raspam os trocos) não será erradicada. Ao contrário, são capazes de criar a CPMF linha ou 2.

É tocante ver o ministro Mantega (egresso da universidade direto para a gestão da ciranda financeira no Brasil) dizer, primeiro, que a economia brasileira é tão sólida que jamais a crise iria nos atingir, para depois dizer que estamos de olho no furacão e finalmente anunciar mais arrocho. É a cretinice no seu mais alto grau. Fazem isso porque contam com a manipulação da mídia, aparentemente tão contra o governo, o que é uma asneira sem tamanho.

No jornal da Globo, aparecem as manifestações pelo mês de luto desde o acidente da TAM. Como termina a matéria? Com o Nelson Jobim assistindo a missa, o que é uma falácia, como se o ministro participasse do luto. Jobim encomendou aquela missa que aparece no noticiário, enquanto as missas dos parentes, sem a presença de Jobim, aconteceram em outros lugares. Mas o noticiário garantiu que aquele era o evento para fechar a matéria.

Lula promete ajuda ao Peru, como se não tivéssemos aqui nossas grandes tragédias. O Estamento, os donos do poder, vive num mundo à parte. Inclui-se no mundo rico, dando a mão para quem precisa, fora das nossas fronteiras. Por aqui, arrocham a população com uma política econômica vampira enquanto distribuem esmolas para algumas parcelas dos votantes.

SIRIGAITA - A Globo vai ter que dar um nó em pingo d´água para evitar um desastre em seu próprio território, a indústria audiovisual. Ao tentar erradicar e perseguir a dança do siri, invenção do programa Pânico, da concorrente Rede TV!, está dando um tiro no pé, pois admite que pode ser contestada visualmente, espaço onde possui domínio quase abolsuto. A dança do siri virou guerrilha quando o pessoal do Pânico prometeu premiar quem conseguisse fazê-la diante das câmaras da Globo.

A única saída é colocar todo o elenco da Globo, jornalistas inclusive, a fazer a dança do siri. Isso iria esvaziar o concorrente. Tão simples assim. Não seria uma capitulação, mas mais um lance de antropofagia cultura, tão ao gosto do império global. Deveriam todos dançar a dança do siri e contar a verdade para a população sobre a crise financeira e as grandes tragédias como a do Peru: quando o bicho pega, não há salvação.

Não me venham dizer que existe ajuda internacional. O troço tremeu dois minutos e o país, que não foi feito para esse tipo de contratempo, ruiu. Imaginem isso por aqui. Já vivemos num estado permanente de ruínas. Mas está havendo reação. O luto pelo acidente da TAM está movimentando a insurreição. Pânico fatura como nunca. Pena que o boxixo contra a CPMF não foi adiante, deveria ir.

RETORNO - Imagem de hoje: cachorro espera o dono, no aeroporto de Congonhas. Foto de Helcio Toth.

17 de agosto de 2007

A TRAPAÇA DO TEMPO


Nei Duclós

É uma trapaça do tempo: tudo cicatriza e nos distancia. O que era fogo vira lembrança. Há uma superfície lisa na memória, como lago morto. Queremos que seja domingo e um barco deslize sob a sombra aprovadora das árvores da margem. Mas é gelo e uma dança coletiva e tonta nos invade.

Mergulho novamente naquela viagem, quando cruzei o pampa em direção à capital, e de lá pela primeira vez ao mar. Era trem e havia fuligem, um ar grosso de abandono em bancos duros, uma travessia interminável e, muitas vezes, amarga. Minha esperança de conhecer o mundo se esvaiu quando nada vi de excepcional na grande cidade que acenava do fim da linha. Preferia voltar, mas era tarde. Eu tinha sido convocado para encarar meu destino de criatura mortal.

Fomos então para o litoral, na enorme e única praia que mostra a cara do mar sem nenhum véu, nem máscara, nem recortes de baías ou mansidão de morros. Éramos jogados de frente à fúria líquida que surgia por trás de imensas dunas. Lá vi a cara do terror de uma paisagem que era pura traição. Enfrentei o enigma dando soco nas ondas e permaneci assombrado no mais longo verão da minha vida.

Acostumado ao rio, que era possível tragar, por uns dias insisti em engolir o sal que explodia em espumas a meus pés. Fui puxado para covas rasas inventadas pela maré. Dormi em catres de lona, longe do conforto da minha casa de esquina. Queria de novo ser rodeado pela paisagem como regaço, não como revolta. Ver de novo o pampa, ondulado e rígido como estátua, onde perdizes batem asas de matraca e um tiro certeiro ecoa através das janelas de vidro.

Sonhava em reviver nossas caçadas, quando ficávamos na carreteira, à espreita. Armados com pesados cartuchos, explodíamos o ar com o aprendizado de tiros que costumavam bater na coxilha, ou no aramado, ou até mesmo na estrada, lá adiante. Às vezes um de nós acertava e era uma festa na caça dominada pelos adultos.

Queria sair de perto do mar, que ameaçava. Ver de novo a praça esplêndida em noites cheias de gente, o quiosque regado a refrigerante gelado, o footing das meninas que moravam em nossos sonhos. Queria de volta as tardes de domingo, quando via desatar-se do estádio municipal a multidão engravatada, que via o jogo como se assistia a uma ópera, com seus chapéus de feltro, sua compenetração de povo às vésperas do primeiro campeonato mundial.

Ainda não sabíamos que país nos habitava e só agora sabemos, quando todas as feridas cicatrizaram, e não podemos mais dizer o quanto perdemos, e não foi apenas a infância. Perdemos o orgulho que nunca foi vaidade, a grandeza longe das patriotadas, a gana de quem pertencia a algo maior, que extrapolava bandeiras e tremulava no céu como um aviso. Éramos o povo da nação soberana antes do exílio a que nos condenaram.

Foi quando voltei enfim para minha cidade e fui recebido em silêncio pela escrivaninha onde depositava meus cadernos, canetas, réguas. O cheiro de livro novo prometia março, quando voltaríamos às aulas. Havia possibilidade de vento, que se desataria na próxima invasão festiva do colégio, por enquanto silencioso, quebrado apenas pelo ângelus de batinas arrastadas em pisos devotos.

Morávamos em frente ao lugar onde me formei para a vida, que tardava. A biblioteca, o campo de futebol, os uniformes, as bicicletas amontoadas, tudo fazia parte do acervo que eu abandonara quando me levaram para ver o mar. Eu deveria estar contente na minha volta da temporada, mas algo faltava. Existia agora um buraco na alma do menino da fronteira fechada. Foi quando me debrucei para escrever o primeiro poema. Estava fisgado para sempre.

Continuava à cata daquele primeiro vôo que me revelara o sopro das mudanças. Aguardava a insurreição do pampa, que se transformaria nas águas em fúria que experimentei no primeiro dia da praia. A paisagem, entretanto, continuava ao meu lado como um cão absorto. O tempo aprontara sua armadilha. Nela me enredei, sem possibilidade de trégua.

Quieto, coração, que já provaste a eternidade.

15 de agosto de 2007

A IRMÃ GÊMEA DA LIBERDADE


Veio-me a metáfora perfeita para o trabalhismo brasileiro. É como nossos trens. Encaramos a ferrovia como algo obsoleto, de uma outra época, que só serve como curiosidade, saudade ou transporte de carga. No caso, de eleitores encerrados em vagões rumo ao holocausto das urnas, quando o voto trabalhista ajuda a eleger coisas como o Lula. Mas se formos ver direito, não existe nada mais moderno em transporte do que a ferrovia.

Trens do Japão e da Europa, soberbos e vistosos em segurança, conforto e alta tecnologia, nos deslumbram toda vez que aparecem. Mas essas maravilhas não mudaram na essência, pois os trilhos continuam em vigor, não é mesmo? Assim também o trabalhismo: solução ideal para o equilíbrio do país, não muda na essência e pode se transformar na modernidade que perseguimos. Os conservadores agora sabem o quanto perderam quando decidiram matar o trabalhismo. O poder migrou primeiro para a extrema direita e depois para o banditismo puro e simples. Nunca mais a civilização do capital e do trabalho. Agora temos a barbárie da especulação financeira e as ruínas que provocam ao redor.

PROFECIA - O ex-guerrilheiro Alfredo Sirkis faz um perfil de Brizola chamando-o de populista e irredutível, ou seja, defasado e turrão, centralizador e ignorante, já que não teria lido livro algum. Mas o texto todo tem um tom de pseudo elogio, como se Brizola tivesse tido o privilégio de encontrar a ele e a outros ex-guerrilheiros na época pré-anistia. Depois de chamá-lo de intuitivo e ágrafo, Sirkis se deslumbra com a capacidade de Brizola prever o futuro, pois em 1978 cantou a bola da queda do muro de Berlim, da globalização e dos prejuízos que o Brasil teria nesse processo.

Sirkis deve se orgulhar de suas leituras, pois se tornou marxista, depois verde, sempre sendo o cara lúcido e perfeito que acha ser. Mas escreve toscamente, enquanto o texto de Brizola é firme, claro, transparente, legível, profundo. Os chamados tijolões, em que Brizola faz sua catequese do trabalhismo à luz dos acontecimentos como o governo FHC, rede Globo, privatizações, entrega da soberania, são exemplares e deveriam estar reunidos em livros.

De grande formação humanista e técnica, o engenheiro e governador Brizola foi um exemplo de intelectual de verdade, que não traiu o país que o gerou nem o povo ao qual pertence. Enquanto isso, vimos o que podem os ex-guerrilheiros no poder, como José Genoíno ou José Dirceu. Na véspera da anistia, Brizola tentou se unir a eles, mas a arrogância, a ambição, a prepotência dos que fizeram da luta armada o álibi perfeito para a ditadura durar mais e finalmente se consolidar, achavam que tinham um destino maior do que aquele “populista”, palavra que enche a boca miserável deles.

Brizola também caiu na tentação do radicalismo e quase no da guerrilha, mas jamais deu golpe de estado nem matou ou mandou matar ninguém. Fez autocrítica quando voltou e tentou todas as alianças possíveis. Perdeu, mesmo tendo vencido mais de uma eleição, pois, sabedores do perigo que representava, seus inimigos o cercaram de todos os lados, com o apoio da alcatéia dos falsos intelectuais, que transformaram o trabalhismo no alvo principal de seus deboches. Para quê, sabemos desde os escândalos das cuecas e dos mensalões.

LIDERANÇA - Leio texto traduzido da imprensa estrangeira que Chavez e Lula “disputam a liderança” do continente. É de chorar. Dois imbecis metidos (com sucesso) a bestas não lideram nada, são fantoches. Venezuela quer dizer, literalmente Venezinha, pequena Veneza. Que liderança quer aspirar? Esse negócio de liderar o continente é coisa dos gringos. “Para onde for o Brasil, irá a América Latina” dizem os gringos, que acham que somos latinos ou hispânicos. Pesquisando sobre o Tamba Trio, o conjunto genial que marcou para sempre nossa música, vejo que é enquadrado como brazilian jazz ou latin music.

“A bossa nova não existe, o que existe é o samba”, disse uma vez João Gilberto. É o que eles jamais vão entender. Acham que somos parte do Império deles. Somos João Pernambuco, o eterno compositor da melodia do Luar do Sertão, com letra de Catulo da Paixão Cearense. Na sua homenagem ao luar do Brasil, compôs um Hino à Poesia, que diz assim por meio de Catulo: “A gente fria desta terra, sem poesia,/Não se importa com esta lua, nem faz caso do luar!/ Enquanto a onça, lá na verde capoeira, /Leva uma hora inteira vendo a lua, a meditar!”

Cante em qualquer lugar do Brasil essa estrofe para despencar em cima de você o estribilho do Brasil soberano: “Não há, ó gente, oh não,/Luar como esse do sertão.” O povo não esquece, esteja certo, do que somos e qual nosso papel aqui na terra. Fatalmente não é o de subjugar qualquer nação nem o de ser subjugado por quem quer que seja. Nosso destino é a soberania, irmã gêmea da liberdade.

RETORNO - Imagem de hoje: João Pernambuco, que influenciou Pixinguinha, Baden Powell, entre muitos outros, uma verdadeira escola musical do Brasil soberano, e que fez acontecer, entre outras coisas, a verdadeira música sertaneja no Brasil, entre 1928 e 1935, quando se uniu a Catulo da Paixão Cearense. Sobre seus estudos de violão dizia Heitor Villa-Lobos que Bach assinaria embaixo. Quem lembra que a melodia de Luar do Sertão é dele?

14 de agosto de 2007

PALAVRAS PELO AVESSO


Com esta crônica, inauguro minha coluna semanal no caderno Variedades do Diário Catarinense, que será sempre publicada às terças-feiras.

Nei Duclós

As palavras foram criadas para ordenar o mundo, mas esse poder está sendo esvaziado. A idéia é impedir que elas tomem conta do que interessa, como o livro-caixa. Se fossem obedecidas nos seus significados estritos, não haveria margem para tanta patifaria. A retidão de caráter das palavras não permitiria que ranhura, a ruga concreta das pistas, manhosamente substituísse irresponsabilidade, de natureza aérea e exposta ao clima. Ou que se invocasse a democracia toda vez que alguém é flagrado com a boca na botija, uma expressão arcaica, mas de sabor perene.

Um expediente conhecido é definir as ações humanas por meio do avesso dos significados de uso corrente. Tombar, por exemplo, no lugar de preservar, é bem conhecido. Levou bastante tempo para que as pessoas se acostumassem ao tombo como algo positivo, embora ninguém desconheça as conseqüências de um tombo de verdade.

A imposição de um sentido oposto ao que a palavra sugere, mesmo que faça justiça à erudição da linguagem, deixa um travo amargo difícil de superar. Virou uma fonte eterna de mal-entendidos e piadas de segunda mão, reforçadas pelas promessas de tombamento, quando casarões e matas podem tombar de verdade antes das assinaturas de decretos. Isso faz reverter, tragicamente, a manipulação da palavra. Ela acaba recuperando o que perdeu.

Quando alguém quer expressar respeito, jamais lhe ocorreria protestar contra seu interlocutor. Mas é o que a expressão "protestos da mais alta estima e consideração" faz. É uma solução que costuma invocar gerações. Atualmente deve estar em completo desuso, mas nunca me conformei que as gentilezas fossem expressas por protestos, um plural que lembra bandeiras vermelhas sendo pisoteadas por cavalos.

Existem ainda as frases famosas que usam palavras pelo avesso, parar criar um tipo de charme irresistível. Como "o universo conspira a seu favor", atribuída a Paulo Coelho, ou "O homem está condenado à liberdade", de Jean-Paul Sartre. Há um abismo óbvio entre os dois autores e ninguém seria louco de compará-los. Mas em ambos o fatalismo se expressa da mesma forma, seqüestrando palavras do seu ambiente original. Conspirar é um verbo sinistro que lembra reuniões secretas ao redor de mapas sujos de sangue. E a metáfora da liberdade como uma condenação pode funcionar, mas não livra a frase de sua aparente contradição. Nas intenções, a diferença joga a favor de Sartre, que lançou a frase como confronto às tiranias.

Manipular as palavras é uma espécie de arrogância dos poderes, dos talentos ou dos intelectos. Os privilegiados fazem de conta que não se importam com os lugares comuns do sentido e se esbaldam usando o vocabulário como usam a terra, a razão ou o dinheiro. Fazem isso para se distanciar de quem se apega tanto às palavras. Pessoas despossuídas, condenadas aos significados originais (ou pelo menos cristalizados pelo uso), deixam de lado tudo o que cheira a esperteza de doutores.

O povo prefere render-se ao que é sugerido de verdade. Talvez venha daí o sucesso de uma dramaturgia cada vez mais rasa. Fazem sucesso os personagens desbocados, que por fora sapateiam em cima da linguagem, mas no fundo, por força do deboche, lutam para repor os sentidos no seu devido lugar.




RETORNO - Imagem desta edição: Malabar, obra de Ricky Bols

13 de agosto de 2007

TOLSTOI NO BRASILZÃO CZARISTA


A sociedade radiografada pelo gênio de Tolstoi em A morte de Ivan Ilitch e Senhores e servos é a que mais se parece com a do Brasil velho de guerra. O primeiro conto, ou novela, considerado obra-prima absoluta da literatura universal, aborda a classe média ascendendo por meio da carreira nos órgãos públicos. Esse alpinismo em direção ao Estamento se faz com ambição e mediocridade, com falsidade e tenacidade, com a reprodução, por gerações, dos mesmos papéis sociais passados de pai para filho, pela sociedade de classes onde se insere a casta privilegiada de juízes e promotores. A disputa pelo butim, o arrivismo na troca de governos, a prepotência do mando e das assinaturas diante de uma população desarmada e pobre, tudo está lá, de maneira límpida e absolutamente cruel.

A fase terminal do protagonista abre seus olhos para a indiferença dos contemporâneos, a falta de solidariedade da família (o barulho de fru fru da saia chic da filha em noite de gala no momento em que o pai se esvaía em dor e morte é de arrepiar), a brutalidade nas relações humanas, o vazio e a infelicidade de uma trajetória dedicada ao nada e a coisa nenhuma, sob a capa de uma vida respeitável e honesta. É tudo mentira, claro. Mas só a presença da morte pode deixar explícita toda a trama de horrores de que é feita uma sociedade de classes.

Tolstoi sabia do que estava falando. Abandonou faculdades e empregos, insurgiu-se contra os desmandos no Exército, abandonou bens e família já em avançada idade: ele não queria para si o destino de Ivan Ilitch, o juiz que enxergou tarde demais. Um insight que ele economiza para as gerações que o sucederam, e que assim mesmo não aprenderam a lição, já que reproduzem o mesmo quadro indefinidamente. O que vemos hoje? A falsidade imperante, as carreiras profissionais fundadas no fingimento, na mentira e no marketing pessoal, a violência dos mercados, do trabalho, das pessoas e dos produtos.

Pense, como Ivan Ilicht, nos momentos felizes da vida profissional e adulta. Ivan teve que ir buscar na infância algumas migalhas de felicidade, já que depois não encontrou mais nada. É assim a vida que vivemos. Por mais amizades que tenhamos feito, por mais vitórias acumuladas, um balanço sincero de quem queima os navios para viver uma vida diferente poderá revelar o que fica oculto: o de que estamos submissos a essa gana pela sobrevivência, que nada respeita na sua carruagem de fogo. Radical demais? Tolstoi, com seu talento insuperável e maestria, prova que não.

No segundo conto, são os mandões que enriquecem explorando tudo e todos e colocando a canga em cima das necessidades alheias. O protagonista arrisca a vida e a do seu servo para fechar um negócio inspirado pelo seu medo de perder dinheiro. Ele precisa enfrentar a tempestade para poder passar a perna em quem vai vender e nos seus concorrentes, que querem comprar a mesma floresta. Sua intenção é devastar o lugar para conseguir o máximo de lucro. Quanta coincidência, não?

Esse personagem descobre, quando fica preso no meio da neve e do vento, que é mais importante viver do que conseguir mais riqueza. Mas também é tarde demais. Ele ainda consegue recuperar parte da sua humanidade ao salvar o servo do congelamento, mas sua morte prova que esse gesto foi o único de sua vida estéril. É assim que acontece: vamos adiando a verdade até que não podemos mais abraçá-la, a não ser na hora final. Por que não queimar etapas e hoje mesmo começar a mudar? Por que é difícil, porque significa arriscar a sobrevivência. Precisamos fingir, mentir, para continuarmos vivos, ou não?

Ou tudo não passa de uma armadilha da sociedade de classes, do poder monopolizado de inúmeros czares que definem nossas vidas enquanto gargalham? Pelo menos, ler Tolstoi nos resgata para muitas verdades e para o entusiasmo de mergulhar num texto realmente primoroso e eterno.

11 de agosto de 2007

NA PISTA DE RASTROS DE ÓDIO


Casamentos seriam a espinha dorsal deste filme maior?

Revejo, agora em Dvd, The searchers, a obra-prima de John Ford. O rosto crispado de John Wayne, seu olhar oblíquo de fúria embaixo do chapéu negro, é a imagem mais poderosa do cinema. A cena em que ele levanta Natalie Wood, assustada diante do gigante, trêmula e encantadora, pautada pela frase “Vamos para casa, Debbie”, é incomparável: em nenhum outro momento seremos testemunhas de tanta majestade humana, quando se concentram, num mesmo gesto, o caçador e a presa, o ódio e o perdão, o pecado e a remissão, a espera e o encontro. Mas não é disso que quero falar sobre o filme que arrebatou o mundo desde que foi lançado em 1956. Mas abordar um veio riquíssimo da sua trama: o dos casamentos.

Podemos balizar a obra pelos casamentos. Em primeiro lugar, a união de Martha e Aaron, o irmão de Ethan (Wayne). A casa no meio do deserto, quente e acolhedora, é a civilização em meio à barbárie. É para lá que Ethan se dirige, depois de três anos vagando pelo mundo, desde o fim da guerra civil, quando tinha lutado pelos confederados, o Sul vencido. Ele tentou ficar longe, mas não conseguiu. Voltou para cobrar a conta. E qual seria esta conta? A do amor perdido, já que Ethan é apaixonado por Martha e vice-versa. Isso fica claro de maneira sutil e ao mesmo tempo firme, quando os dois se encontram, quando se beijam num cumprimento que deveria ser frio, mas é ardente. E fica explícito quando Martha acaricia o casaco de Ethan, detalhe visto pelo Reverendo (a brutalidade da Lei tentando se impor ao caos).

Esse casamento perdido, esse descompasso entre o grande amor do renegado e a mulher protegida pela casa civilizada e o matrimônio, seria a espinha dorsal do filme. Ethan, no fundo, se culpa por ter perdido o seu amor e também se culpa por ter se afastado da casa, o que deu margem ao massacre promovido pela tribo de Scar (Cicatriz), o comanche que acaba seqüestrando Debbie por mais de cinco anos. Ethan quer impedir o casamento, a união renegada, entre Scar e sua vítima, entre o índio e a mulher branca. A mestiçagem é o sinal explícito da derrota para Ethan. É entregar-se ao inimigo e daí vem sua implicância com Marty (Jefrey Hunter), mestiço que ele, Ethan, salvou de outro massacre quando era ainda criança.

Temos então a tragédia dos casamentos: a do irmão com a amada do herói e a do algoz com sua vítima. Há outros dois, ambos envolvendo Marty, que casa por engano com uma índia enquanto deixa a noiva esperando por longos invernos. Estes, estão identificados com a comédia. Tanto a noiva índia que é jogada para fora do leito conjugal aos pontapés, quanto a briga entre pretendentes numa cerimônia hilária, são o contraponto à tensão gerada pela perseguição. Ethan debocha desses dois casamentos cômicos, enquanto procura novas pistas para chegar até Debbie, último vestígio do casamento entre o irmão e a cunhada.

Seria, Deus do céu, esse o motivo que Ethan tinha para acabar com a garota logo que a visse? Sua justificativa é que ela não era mais branca, mas mulher de comanche, e por isso deveria ser eliminada. Permitir esse casamento espúrio seria a derrota final para Ethan. Mas a causa do seu ódio não seria o ressentimento em relação a esse casamento que se interpôs na sua vida, que o deixou de lado de fora da casa e da civilização? Ser um renegado é um destino difícil de mastigar. Ser um herói solitário só é suportável quando não há mais esperança. Ethan tinha vontade de rever e reconquistar seu grande amor, por isso voltou.

Ao primeiro sinal de desavença, ele explode com o irmão, numa das seqüências iniciais. Paga, atirando um saco de dólares, sua estadia. Naquela casa, havia também a vontade de tê-lo sempre por perto, tanto por motivo de segurança (conforme a lembrança de um dos filhos do casal na hora do perigo) quanto pela atração que Martha sente por ele. As mulheres de John Ford, de longos aventais, têm a mesma força dos homens na personalidade e nos atos. Há crueza nestas mulheres, autenticidade, franqueza. São, portanto, inesquecívies, como todo o resto do filme.

Há ainda o casamento longevo, da casa que sobreviveu aos ataques e que recebe Debbie no final (o filme tem 40 anos, posso comentar o final!). Lá naquela casa batida de leve pela brisa do deserto, onde Moses, o Idiota adorável, enfim tem sua cadeira de balanço para descansar os ossos, o velho casal recebe os rastreadores e a garota perdida. Uma nova família se forma. Mas Ethan volta-se para o deserto e sai andando por ele, enquanto ficamos do lado de dentro da casa, olhando pela porta que enfim se fecha. É aqui, na civilização, que nos situamos, enquanto o herói parte, solto como o vento, carregando suas feridas guerra. Solitário, por ter perdido todas suas chances de viver em paz.

9 de agosto de 2007

FAROL DEPOIS DO AZUL




FAROL DEPOIS DO AZUL


Nei Duclós


Parti para sempre:

em direção ao poema.

Encarei a prisão

do governo


Sentei no chão

na hora da mesa.

Expliquei as razões

da febre


O tempo não dava

licença. O mundo

ficou preso. Canhões

por toda a fronteira


A polícia fechou

o cerco. O tempo

de cara feia. Olho

gordo no cabelo


Voltei com sonho

desfeito. Passei

no pampa tenso.

Cheguei só e seco


A capital não veio

ver-me. O azul

partiu-se ao meio.

Verso, farol violento

RETORNO - Poema do livro ainda inédito "Partimos de Manhã".

8 de agosto de 2007

EM BUSCA DO FILME DE ARTE


Os filmes de arte foram abandonados. Os circuitos oficiais dos cinemas, televisões e locadoras se ocupam quase que exclusivamente das produções comerciais. Existem festivais disso e daquilo, algumas obras em dvd ao lado do suspense ou da aventura, mas em geral estamos entregues à sanha assassina do mercado, que desmoralizou o trabalho de autor e entronizou o fogo fátuo das modinhas, das violências, dos horrores. Entrar numa locadora é experimentar a sensação de palmilhar um açougue. Pedaços de corpos, sangue por todo lado e títulos com as palavras mais torpes estão expostos em cartazes e capas de discos. É o que eles pedem, me dizem. Contra-argumento: é o que vocês oferecem. As pessoas levam.

Por um descuido, descobri um filme de Theo Angelopoulos, A eternidade e um dia, que ganhou a Palma de Ouro de Cannes em 1998. É um filme denso, com imagens fortes e uma história de vida terminal e de resgate da memória. É uma obra poética, rara, que merece ser vista. Mas como sou do tempo em que filme de arte sobrava nos cinemas, em que tinha um novo Fellini quase todo ano, em que convivíamos na grande tela com Kubrick, Orson Welles ou Glauber Rocha, em que tínhamos à mão até cineastas menos considerados ou conhecidos como Lindsay Andersen (com seu radical If, filme sobre a insurgência nas escolas ingleses, pai de The Wall, do Pink Floyd). Víamos não apenas os americanos, mas filmes franceses, espanhóis, mexicanos, argentinos (a diversidade, hoje, está circunscrita à boa vontade de alguns donos de locadoras ou da programação dos cineclubes; existe a opção de baixar pela internet, mas dá muito trabalho). Posso, portanto, encarar Angelopoulos com um pouco de distanciamento, mesmo que ele tenha feito uma obra-prima que é Paisagem na Neblina (o rito de passagem de um casal de irmãos em busca da paternidade perdida).

Achei A eternidade e um dia um filme que força a mão em inúmeras passagens. É sempre eficiente, mas cria um passo atrás num espectador implicante como eu. Tudo bem, a metáfora da Albânia sitiada, representada por uma vasta cerca no meio do fog, com pessoas desesperadas e imóveis penduradas nela, enquanto o menino que contracena com o personagrem principal confessa que não pode voltar para lá, é tocante e bem resolvida. Mas um conjunto musical erudito dentro do ônibus, onde desfila também uma cena de teatro de um casal em crise , é armação demais.

Não se trata de reclamar da inverossimilhança, que isso não existe em Angelopoulos. Seu movimento de câmara em que percorre uma época e migra para outra de maneira natural e competente, não pode ser contestada. Mas dois discursos fúnebres, um do garoto diante do corpo do amigo que morreu e outro do homem diante da mãe em coma, são excessivos no seu tratamento. Os discursos só existem na linguagem, claro, pois é impossível que as pessoas gerem essas palavras a não ser na representação dos dramas. Mas a penumbra no discurso do homem e a fogueira no do garoto parecem recursos explícitos do diretor para criar climas “de arte”.

Numa das seqüências finais, ciclistas vestidos de amarelo correm pela chuva. Lembra Fellini no final de Cabiria ou de Oito e Meio. Mas Fellini é gênio, nele a narrativa não tropeça no fake, na armação para o sublime. Parece que Angelopoulos filmou para ganhar festival. Posso estar sendo injusto, mas duvidei de tanta poesia. E também de tanta depressão. Por mais fundo que Fellini vá, ele nos devolve a alegria, ao longo ou no fim dos seus filmes. Não se trata de happy end, mas da certeza de que todo gênio é solar. O que é sombrio se opõe à grandeza da criação, por mais que me digam o contrário.

RETORNO - Imagem de hoje: cena do filme "A eternidade e um dia", de Theo Angelopoulos.