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31 de maio de 2007

AS VERDADES DEFINITIVAS


Guardamos como tralha no quarto de despejo nossas verdades definitivas. Exauridas de tantas certezas, elas guardam um remorso, uma indignação, uma incompreensão que só a nós pertence. De vez em quando as retiramos do baú para expor nossa escassez teórica, brandida como algo irreversível. Ninguém dá bola para o que acreditamos. O que dizemos por um tempo nos parece original e profundo, mas depois vemos nossa obra disseminada e distorcida em inúmeras manifestações. Ficamos então nos perguntando: o que viemos fazer nesta passagem pela terra? Qual nossa contribuição? Nem deveríamos ter vindo, tanta é a indiferença e tantas são as provas desta precariedade.

Na literatura a dúvida nos ronda como um cão. Ele vem rosnar a nossos pés enquanto procuramos o caminho não trilhado. Passamos ao largo, como brigue mal visto em qualquer porto. Por isso, com as velas rebentadas de vento, nos deixamos levar pelas correntezas até o fim do mundo. Não há ilha que nos receba, não há navio que nos recolha, não há Netuno que suba na onda mais alta para nos vislumbrar.

Nos agarramos a um tonel de verdades acumuladas e com ele boiamos até a exaustão final. As sereias cantam para ninguém. Ulisses está olhando o horizonte e some entre os sargaços. Do tonel fazemos um tambor e nossa voz rouca imita o som dos berrantes. Um leão marinho egresso das geleiras está navegando um iceberg e parece que seu desespero é o eco de nossa voz. Desesperados, pedimos socorro. Então novamente as tribos do Mal cercam nosso corpo ferido e tiram mais um pedaço. Levam para seus rituais e incorporam o que era somente nosso à poeira estelar que forma o mundo pelo avesso. É uma longa viagem, meu irmão.

Quem disse que poderíamos imitar os deuses e fazer parte da Criação? Reproduzimos as gerações que povoaram a terra e nenhum rebento iluminado irá resgatar o que tentamos fazer neste ofício sem dono, espalhado como roupas de um varal que se partiu, no campo minado da brutalidade do Tempo. A metáfora é nosso refúgio, mas ela tem um rasgo no teto bem acima da nossa cabeça, e por ele se infiltra a tempestade interminável. Sonhamos em fazer parte do corisco que ilumina a noite e tentamos provar que somos também o trovão que atordoa o espaço. Mas em vão, somos o Silêncio, aquela palavra muda que nos acompanha desde a infância.

Para quê, meu Deus? Curvado pelo peso da idade, arrastamos os pés em corredores infinitos. Levamos embaixo do braço um poema perdido, um conto esdrúxulo, uma crônica datada. Batemos numa das portas envernizadas e ela se abre de maneira sinistra. Não há móveis dentro daquela sala e alguém lidera a tarefa dos carregadores. Eles estão dobrados sob o peso de coisas inexistentes. Estão, no fundo, arrumando nosso quarto de badulaques. Lá depositam algumas frases, alguns versos, trechos mal costurados de romances inacabados.

Fico então só cercado pelo que me restou. São as verdades definitivas que deveriam nortear minha vida. Não consigo abrir a tampa da caixa, arrancar a porta do armário, despencar o que se gruda no teto. Está tudo no seu devido lugar e me deixo ficar no piso de parquê vencido. Os tacos estão carcomidos e se tento caminhar sobre eles acabo arrancando peças do lugar, derrubando cestas cheias de miudezas. As sílabas se entretém se desmanchando sob uma goteira. Eu estava guardando esta peça para minha permanência, mas ela não dura até a próxima guerra.

Será tudo destruído por um míssil perdido. Irei junto, galopando o cometa da minha perdição. Não deixo cartas, deixo esse esforço de ser uma presença no planeta já resolvido antes e depois de mim. Nem mesmo quando visitarem as ruínas dos templos abandonados verão que me escondo sob uma enorme pedra. Lá ficarei, como um fio de cabelo amassado, um fóssil indecifrado, uma célula estéril.

Tanta aventura e nenhuma sinfonia que vibre no chão mortal da eternidade.


RETORNO - 1. Imagem de hoje: vestígios na pedra. O que significam? Foto de Ida Duclós, tirada no lado direito da Praia dos Ingleses, aqui em Floripa. 2. Paulo Nogueira me inclui na sua selecionada lista de informações que distribui para alguns privilegiados. Um dos meus textos estão rodando na caixa postal desses destinatários. Paulo me enviou o seguinte e-mail: Nei, Parabéns pela texto "As verdades definitivas" . Você falou de um modo definitivo sobre algumas verdades que não são definitivas. Não sei por que, lembrei-me de Cortázar ao ler o seu texto. um abração, Paulo.

30 de maio de 2007

O TURISMO DA SENSAÇÃO TÉRMICA


Não entendo essas pessoas que viajam centenas ou milhares de quilômetros só pelo prazer de congelar o pingüim. Como nasci quase no Pólo Sul e sou alérgico a baixas temperaturas, fonte de rinites e seus desdobramentos, fico imaginando a falta do que fazer de gente que precisa ver a neve. E me pergunto o que significa tanta sensação térmica. Esse é um conceito novo, ou pelo menos está sendo divulgado maciçamente há pouco tempo. Lembro de uma senhora que me levantava o dedo numa conversa informal sobre o clima dentro do ônibus. Ela perorava sobre a diferença entre o termômetro e a tal sensação térmica. Para as relações humanas indiferentes diárias, essas modinhas servem para encher o saco: significa que nunca é o que é, é sempre pior, ou maior ou melhor.

Puxa, está frio, estamos a 12 graus. Mas a sensação térmica é de 6 graus! alguém emenda. Assim caminha a humanidade: tudo o que for dito será contestado nos mínimos detalhes. Pois eu acho que os graus centígrados e outras medidas foram feitas exatamente para acabar com o amadorismo das sensações. É doze graus e pronto. Só porque o vento bate no rabicó você se sente mais na Europa? Se o vento lambe a ilharga do sujeito então o termômetro deve marcar a verdadeira temperatura. É um saco ter de regredir ao império dos sentidos, quando hoje dispomos de tanta ciência que resolveu tanta coisa.

Ontem mesmo no Jô Soares (sim, o dvd completou um ano e, como se fosse programado, pifou, o que o tirou da garantia; estamos aguardando conserto ou coisa pior) Drauzio Varella demonstrou sua irritação em relação ao pensamento positivo. Por milênios as pessoas acreditavam que você poderia curar uma doença grave só com a força do pensamento, disse ele, comparando com os exemplos do avião ou do trem, que não se movimentam só com o poder mental e ninguém fica sugerindo gracinhas, é incontestável. Pois nesses milênios as pessoas morriam aos 30 ou 40 anos. Hoje a média ultrapassa os 70, por que será? Antibiótico, ciururgia, intervenção, pesquisa. Precisamos acreditar em micróbios.

O mais irritante é que esse negócio de neve em São Joaquim (haja saco, é todo ano a mesma coisa) faz parte do enquadramento da percepção nacional sobre o Sul. Ontem, no JN (sim, sem dvd) um casal carioca falava sobre os arrepios provocados pelo gelo nos países baixos. Bastava dar um pulo em São Paulo, é tão frio quanto aqui, às vezes mais. Mas é preciso mostrar a montanha gelada, os canos rebentando, as pessoas ligando seus cobertores térmicos (o que acho uma temeridade). Drauzio Varella lembrou que a Amazônia pode ser congelante, basta subir o pico da Neblina.

Uma vez vi na Folha dicas para uma viagem ao tal Sul (o país imaginário inventado pela falsa geografia, onde tudo abaixo do rio Pinheiros é Porto Alegre ou Gramado). Dizia a reportagem que era preciso levar muitos casacos de lã. Só que a edição era em pleno janeiro. Ou seja, parece que vivemos num iglu, quando os termômetros aqui no verão ultrapassam os 40 graus. Nos anos 50, em Uruguaiana, costumávamos torcer pela cidade na sua briga pelo campeonato do calor. Perdíamos para o Rio de Janeiro, mas às vezes vencíamos.

Naquele tempo não existia sensação térmica. Tinha a temperatura de quem se postava embaixo do sol e aquela medida na sombra. Se alguém levantasse a hipótese de contrariar o termômetro levava uns cascudos. E para quem se aventurasse a conhecer o frio só por turismo providenciávamos uma régua bem afiada para partir em dois as orelhas vermelhas dos panacas. Parem com essas frescuras.

Aqui, a madrugada foi fria, mas a manhã está razoável. Tem ventinho gelado, que nos sugere enfiar o conceito de sensação térmica no rabicó do falso metereologismo. E vê se não sobe a serra para fondue, lareira e vinho. Basta uma tainha de dez reais, grandiosa ao forno, e um vinho chileno honesto, como aconteceu ontem à noite por estas bandas, para que o rosto exiba aquele brilho intenso de noite gelada bem resolvida.


RETORNO - 1. Imagem de hoje: Pássaro, foto de Miguel Duclós, tirada no bairro onde moramos. Parabéns ao Miguel, que ontem, dia 29, completou 29 anos. 2. Quer ouvir o canto dos pássaros brasileiros? Paulo Nogueira me envia link para magnífico site da Eletronorte. Neste link, faça a busca dos seus favoritos.

29 de maio de 2007

RODÍZIO DO BUTIM


É como corrida de revezamento: o cara pega o butim, corre e repassa para o parceiro. O objetivo é atingir a meta de 100 por cento de roubo do dinheiro público. O sistema é circular e infinito. O que faz o Renan Calheiros no topo do Senado, ele que esteve em destaque na época do Collor? Por que o Sarney, o fundador da ditadura civil, fica perorando contra a falta de liberdade na Venezuela, quando ele próprio é um monumento a toda espécie de ditadura (principalmente a ideal, a atual, a que posa de democracia). Por que o presidente do Senado precisa fazer a nação ouvir que ele pede perdão à esposa por ter um rebento fora do casamento? E por que o trem bala, que ligará são Paulo ao Rio, está sendo discutido na Itália pela ministra Dilma com investidores coreanos?

O Brasil parece não fazer sentido, a não ser que encaremos os fatos. Não se trata de ficar atento ao noticiário, mas entender onde estamos metidos. Se as raposas cuidam do galinheiro, e se o butim é farto, mas limitado pelo excesso de abutres, então é claro que as mesmas figuras vão se revezar nas cpis da vida. Os peixes grandes caem na rede por uma questão de disputa do butim. O sistema precisa de reacomodamento da propinagem, é nessa arena, o de quem pega mais e onde, que a ditadura se manifesta e funciona. Se há suspeitas de que alguns governadores são os chefes das quadrilhas, então temos o quadro perfeito: toda a estrutura política estaria voltada para a sangria da nação. Para isso serve uma nação sem soberania.

O que chamam de desenvolvimento, crescimento ou equilíbrio fiscal ou distribuição de renda não passa de estatística manipulada. Se queres um monumento olhe em torno, como se costumava dizer. A overdose da palavra democracia ou da expressão estado de direito é sinal de que nada temos dessas conquistas. Roberto Carlos tira sua biografia do mercado e jura que não vai queimar os livros, apenas, talvez, reciclá-los. Qual a diferença? E usa o Fantástico para se justificar. Se tivesse certeza de que está com a razão, nem se manifestaria. A liberdade de expressão serve para canalizar as desculpas e ataques de quem detém o poder. O resto recebe bala de verdade na cara e ainda vão ficar um tempo verificando porque não eram balas de festim. Não eram de festim porque é preciso demonstrar força, entende? Está cheio de bandidinho na platéia. Arre.

Hugo Chaves tira a TV do ar e coloca outra no seu lugar. É um idiota. Bastaria não veicular propaganda paga do governo ou equilibrar a rede de transmissão. Pois a liderança na TV só se consegue com essas duas coisas. Uma, é a grana preta da publicidade pública. Outra, é o sinal forte garantido pela infraestrutura de transmissão. Você pega uma tampa de panela, liga num fio e põe na TV de 14 polegadas de 1960 e a rede Globo pega, esplendorosa. Isso é o que faz a audiência. O resto das redes são apenas fantasmas, a não ser que você faça parte dos 3 por cento da TV paga ou estiver em áreas dita nobres das capitais. O resto do grotão, do ermo, que é o Brasil, só pega mesmo a Globo e em mais de um canal.

O certo é se debruçar sobre os livros, para desasnar e entender melhor o que se passa. A livraiada desce de São Paulo direto para a minha sala. Entre inúmeras preciosidades, o livro “Sobre a História”, de Eric Hobsbawm. Num dos capítulos, ele fala sobre o marxismo vulgar e a luta que o próprio Marx assumiu contra a diluição e a manipulação das suas idéias. Esse socialismo de araque de Chaves, todo ele contaminado pelo marxismo vulgar, ainda vai colocar fogo no continente. Vejam a cara do sujeito: parece um idiota, tem cara de idiota, fala como um idiota. É, claro, um idiota.

RETORNO - Imagem de hoje: fotaça de Regina Agrella.

28 de maio de 2007

BANQUETE EM CANNES

Reproduzo o banquete cinematográfico dos resultados do Festival de Cannes, divulgado pela da France Presse, e publicadado na Folha Online. Num país em que 90 por cento dos cinemas exibem o Homem Aranha 3, e que a TV aberta nos massacra com velhos filmes repetidos de Sylvester Stallone, é bom saber que existe vida inteligente na Sétima Arte contemporânea. Até quando suportaremos a ditadura cultural? Walter Salles (foto) já tinha denunciado essa situação. Qual a saída?

"O filme "4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias" ("4 Luni, 3 Saptamini si 2 Zile"), do romeno Cristian Mungiu, 39, conquistou neste domingo a Palma de Ouro do 60º Festival de Cannes. O filme, um relato direto de um aborto ilegal na Romênia nos anos 80, é o primeiro capítulo da série "Contos da Idade de Ouro", que Mungiu pretende realizar a partir de suas experiências da juventude.

A cineasta japonesa Naomi Kawase levou o grande prêmio do júri com "O Bosque de Mogari" ("Nogari no Mori"), uma parábola sobre duelo. O filme narra o encontro de dois personagens marcados pela morte, encerrados em sua própria dor. A diretora japonesa foi premiada por uma obra sublime, um momento de pura linguagem cinematográfica, sem recursos supérfluos nem artifícios narrativos.

O russo Konstantin Lavronenko recebeu o prêmio de melhor ator por "Izganie", de Andreï Zviaguintsev. O ator de 46 anos ficou conhecido com "O Retorno", primeiro longa de Zvyagintsev, premiado com o Leão de Ouro no Festival de Veneza em 2003. O prêmio de melhor atriz foi para a sul-coreana Jeon Do-yeon, por sua atuação em "Secret Sunshine", de seu compatriota Lee Chang-dong. A atriz interpreta uma viúva cujo filho é assassinado por um homem que o seqüestrou. O filme narra o calvário dessa mulher, que não consegue superar a perda do filho.

"As Medusas" ("Les Méduses"), do israelense Etgar Keret, 40, obteve a Câmera de Ouro, que recompensa uma obra-prima apresentada em uma das diferentes seções oficiais ou paralelas do festival. Keret, um dos escritores israelenses mais populares de sua geração, traz em seu filme um registro do absurdo, com histórias paralelas de homens e mulheres da Tel Aviv atual.

O cineasta americano Gus Van Sant foi reconhecido com o prêmio especial do 60º Aniversário do Festival de Cannes, concedido pelo juri para "coroar toda uma carreira, mas também por um belo filme Paranoid Park". Como em "Elephant", inspirado no massacre de Columbine (Palma de Ouro em 2003), Van Sant explora em "Paranoid Park" a angústia de viver de adolescentes que não se comunicam bem com os adultos.

O mexicano Carlos Reygadas e a iraniana Marjane Satrapi receberam o prêmio do júri por "Luz Silenciosa" e "Persépolis", respectivamente. "Luz Silenciosa", terceiro longa de Reygadas (após "Japón" e "Batalla en el Cielo"), se passa em uma virtuosa comunidade menonita do México e era neste ano o único filme latino-americano presente na competição oficial de Cannes. "Persépolis" conta a infância e a adolescência de Satrapi no Irã da Revolução Islâmica.

O americano Julian Schnabel foi premiado pela melhor direção, por seu filme "Le Scaphandre et le Papillon", realizado na França. O filme é uma adaptação do livro do jornalista Jean-Dominique Bauby, ditado após ficar tetraplégico. A diretora mexicana Elisa Miller, com "Ver Llover", levou a Palma de Ouro de curta-metragem. Em 13 minutos, Miller conta a história de um casal de adolescentes em dúvida sobre se deve ou não abandonar seu povoado no México."

26 de maio de 2007

A CIDADE SEM ROSTO

Nei Duclós

Revisitei a grande mancha urbana sobre o país e o planeta. Criaturas sem rosto, ocultas sob camadas de vidros escuros, disputavam a última fronteira, o exíguo espaço disponível das ruas e avenidas. Há um esforço para diminuir o massacre visual promovido pela fúria dos mercados, mas permanece intacta a brutal indiferença de quem se acostumou à barbárie. Relembro a visita que fiz ao poeta Mario Chamie, o poeta de “Lavra, Lavra”, então secretário da Cultura da Metrópolis. Ele me explicou que a cidade de Mario de Andrade é uma pequena parte da megalópole, que agora se estende ao infinito, especialmente para os que chegam de fora e se assombram com o que vêem.

Minha memória chega até um pedacinho minúsculo da Mata Atlântica, onde se refugia Lina Bo Bardi, a arquiteta italiana que veio primeiro para Salvador, onde plantou a semente da vanguarda baiana junto com um grupo de pensadores e artistas. Ela toma um licor em minúsculo copo e me conta como convenceu o governador Ademar de Barros que ela era a pessoa indicada para projetar o prédio do Museu de Arte de São Paulo, a inverossímel estrutura mais leve do que o ar implantada na Avenida Paulista. Lina fala sobre o antigo Trianon, lugar de encontros da capital do Modernismo, onde fez furor com um vestido que era pura performance.

Palmilho na lembrança a espessa nuvem de fuligem que eu atravessava diariamente para chegar à redação da Folha de S. Paulo, onde trabalhava. Por muitos meses me perdi naquelas ruas do centro, tomada então pela falta de identidade imposta, o barulho em meio a prédios antigos e arrojados. Caminhava acompanhado por jornalistas e escritores, todos teóricos da cidade que nos envolvia como um monstro sem nome. Alguns celebravam o horror, outros se despejavam sobre o rio Tietê. Só quando vi o Tamanduateí pela primeira vez descobri de verdade o crime cometido contra a bacia hidrográfica que sepultou fontes e rios. O poderoso rio, em tempos de enchente, vibrava suas águas tormentosas sobre o trânsito em pânico. Era um pedido de socorro, que se perdia em meio ao rugir de motores.

Admireava os moradores mais antigos, que viam lógica no labirinto de concreto. Como poderiam se orientar em pleno caos? Vindo de uma cidade em linha reta, uma espécie de resposta ao pampa ondulado, e de outra cidade-ilha em curvas, resposta ao horizonte do mar que a cerca, não conseguia atinar no conceito que fazia de São Paulo um enigma, e mais tarde um pesadelo.

Mas lá, no coração urbano disforme, encontrei a força adormecida que me guiou para um convívio com mentes privilegiadas. Cercado por pessoas que faziam parte de um sonho maior, o do país que precisa transcender suas origens, descobri que não se pode brincar de viver, nem adiar a luta que enfim nos alcança, em qualquer quadra ou idade.

Quando chegou o tempo de abandonar tudo, para reencontrar o que perdi nesse esforço, vi o quanto tinha me transformado e o quanto precisava remar de novo em direção ao que me formara. O país, em sua grandeza, oferece todas as situações para que a cidadania se consuma e o espanto de permanecer na terra alce vôo.

Revisitei a ocupação desordenada que não tem mais remédio. Vislumbrei as relações humanas endurecidas, mas conservo em mim as amizades sólidas que foram construídas em décadas de determinação. Quando alguém muito moço diz que vai migrar para lá, torço por ele. Quero que cumpra seu destino passando pela Meca do país exagerado, a nação que nos marca de maneira definitiva. Em qualquer país por onde passarmos, seremos identificados pelo andar, pela voz, pelo olhar. Somos uma raça de sobreviventes. Viemos do Brasil profundo, temperados pela vivência da cidade que não nos dá trégua.

Já não fazemos parte do jogo bruto da cidade esmagadora. Talvez nunca tenhamos vivido realmente lá. De tudo o que São Paulo oferece, selecionamos apenas uma porção, a mais próxima possível do que estamos acostumados desde o início dos tempos. Foi assim comigo. Minha São Paulo ia do Butantã a Cerqueira César, o bairro inventado pelo pai de Oswald de Andrade. Com a fortuna arrecada pela família, o poeta radical encontrou tempo para mudar a literatura. Hoje seu espólio se espalha e se perde, enquanto aguardamos a redenção que, parece, não chegará nunca.



RETORNO - 1. Esta crônica foi publicada neste fim-de-semana no caderno Donna DC do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Viaduto do Chá, segundo Marcelo Min.

25 de maio de 2007

DOIS POEMAS DE "NO MEIO DA RUA"






A leitora Sandra de Oliveira, de Santa Cruz do Sul, lembrou estes dois poemas que estão publicados no meu livro No Meio da Rua (L&PM, 1979). É bom revisitá-los.


AUSÊNCIA


Nei Duclós


Te procurei embaixo da cama

Mas só havia sapatos e lama


Atrás das portas um porimeiro encontro

Pairava como nuvem, mas nem chovia

Espaços voei e pó comi nesta procura

Imaginei que estavas no arco-íris

E esperei o inverno seguinte, fiz projetos

E risquei mapas do teu paradeiro incerto


Não te conheci nunca

Mesma assim não desisti

Muito já tinha perdido

Mas não custava ir até o fim da vida


APELAÇÃO


Nei Duclós


Alguém precisa defender a liberdade
antes de culpar o guarda

Alguém precisa ajudar a liberdade
antes de gritar: covarde

Alguém precisa escolher a liberdade
antes que seja tarde

RETORNO - Imagem de hoje: foto de Helcio Toth, o cara.

21 de maio de 2007

A LEITURA AJUDA A COMBATER AS IMPOSIÇÕES CORPORATIVAS






Transcrevo a seguir a entrevista que foi ao ar no sábado, dia 19, na TVBV, no programa Educação e Cidadania, da jornalista e escritora Maria Odete Olsen. Agradeço a Maria Odete, que ajuda assim a divulgar meu trabalho e a colocar na roda questões importantes sobre livros e autores.


"O escritor Nei Duclós é jornalista desde 1970, trabalhou na Folha de São Paulo e nas revistas Isto É e Senhor. Publicou textos sobre literatura em alguns dos principais veículos de comunicação do País, a partir de 1976, quando estreou como resenhista de livros da Veja. É formado em história pela USP (1998), trabalha atualmente na Editora Empreendedor, e é cronista do Diário Catarinense e do Portal Comunique-se. Nei Duclós foi entrevistado no Programa Educação e Cidadania pela jornalista Maria Odete Olsen.

Maria Odete- A leitura Nei, está tão abandonada assim?

Nei Duclós- Não, não está. Ela está um pouco fora de mão em alguns aspectos, principalmente no Brasil.

Maria Odete - Por que?

Nei Duclós– Existem muitos equívocos na formação do leitor. Existe um sistema impositivo de leitura que acaba afastando o leitor precoce.

Maria Odete – Então vamos por partes. Num primeiro momento, você acredita que as questões sociais brasileiras interferem nessa área. Ou seja, entre comprar um litro de leite ou um livro, a primeira opção é a que se torna necessária?

Nei Duclós – Sim, existe uma massa de leitores muito pequena em relação a população que temos, devido aos problemas sociais.

Maria Odete – E nessa questão da imposição, vejo muita reclamação de jovens em relação aos livros impostos na lista para o vestibular.

Nei Duclós – Essa lista é importante, mas o espectro devia ser mais aberto, deveriam ter mais opções de leitura, para que o estudante seja um agente e possa escolher também, porque senão ele fica muito passivo e se rebela.

Maria Odete – Como é que se cria o hábito da leitura, já que observo muitos pais se debatendo com o “drama” de querer que o livro leia mais e ele na verdade só quer ficar no play station.

Nei Duclós – O hábito da leitura acontece na alfabetização, uma alfabetização sólida. Ela tem que ser muito bem fundada, fundamentada. Eu tive sorte, a minha geração, participou de uma formação sólida de leitura.

Maria Odete – Você acredita que filhos que não leiam vêm de pais e professores que não lêem?

Nei Duclós – Existe as vezes um ambiente social bastante avesso a leitura. A biblioteca familiar é fundamental, mas não é definitiva. As vezes não existe uma biblioteca em casa e se formam leitores. Isso não é uma lei.

Maria Odete – Bem, o entrevistado de hoje no Educação e Cidadania, além de jornalista, é um escritor com 5 livros publicados: O Refúgio do Príncipe, 2006/Universo Baldio, Francis, 2004/ No Mar. Veremos, Globo, 2001/No Meio da Rua, L&PM, 1980 e Outubro, IEL-RS –A Nação 1975. Diz aí Nei do que falam estas histórias?

Nei Duclós – Eu sempre exploro dos ambientes muito caros pra mim, um da ilha de Santa Catarina e outro do pampa onde nasci.

Maria Odete – Você nasceu no Rio Grande do Sul...

Nei Duclós – Nasci em Uruguaiana.

Maria Odete – Também do Nei temos “No Mar Veremos”, “Outubro” e “No Meio da Rua” que são livros de poesia.

Nei Duclós – Exato, são livros de poesia. “Outubro” de 1975 é o meu livro de estréia, depois lancei pela LPM com apresentação do Mário Quintana, “No Meio da Rua” e “No Mar Veremos” em 2001. São todos livros de poesia. Depois lancei o romance “Universo Baldio”.

Maria Odete – Quais são os livros que vendem? Hoje para um livro vender, tem de vir ancorada nessa grande máquina de marketing como os Harry Potter da vida e todas estas gigantescas histórias ficcionais?

Nei Duclós – Existem livros de qualidade que vendem, mas nem todo livro que vende tem qualidade. Mas há também a questão da imposição...novamente a palavra.

Maria Odete – Vamos então falar um pouco mais sobre essa questão da imposição.

Nei Duclós – São imposições de linguagem. Nós somos cercados por imposições de linguagem. Nós somos cercados pela imposição da linguagem corporativa, da linguagem política, as vezes da linguagem religiosa...então a leitura o que faz. A leitura ceva, cultiva a liberdade de espírito, quer dizer, você no fim consegue formatar uma linguagem cultural, na maneira como você se expressa, no momento que interage com autores de qualidade.

Maria Odete – E a leitura pode nos levar a outros universos. Você afirmou isso quando o convidei para esta entrevista...

Nei Duclós – Ela te leva para outros planos, mas principalmente você pode interagir positivamente com estas linguagens impositivas e isso é fundamental. Você não fica a reboque da linguagem publicitária e nem da linguagem política. Você consegue entender. Você consegue ler o mundo melhor. Você consegue ler a paisagem urbana e a natural, você consegue entender melhor e você consegue ser um cidadão mais completo no momento que você tem esse hábito de leitura como permanente, fundado numa alfabetização sólida e numa curiosidade e na vontade de aprender e saber coisas.

Maria Odete – Para saber mais do Nei Duclós você pode entrar no blog Outubro ou no site www.consciencia.org/neiduclos . Nei, muito obrigada pela entrevista.

Nei Duclos – Obrigado a você."

RETORNO - 1. Imagem de hoje: Renoir. 2. O enfoque que escolhi sobre imposições de linguagem é um desdobramento da grande sacada de Julio Monteiro Martins, professor de narrativa e editor da genial revista cultural Sagarana (link ao lado). Julio é o mais importante escritor brasileiro em atividade no Exterior. Já transcrevi aqui a entrevista em que ele fala da importância da literatura na luta contra linguagens impositivas.

20 de maio de 2007

SERVIÇOS HEDIONDOS


Duas empresas estão na lista das piores do mundo. Uma delas é a Eletropaulo, que no seu atendimento exibe a crueldade diante dos contribuintes. Um exemplo, entre muitos: alguém mudou o débito automático da conta de luz de um banco para outro. No trâmite, que demorou alguns dias, a companhia apresentou uma fatura que estava descoberta devido à migração bancária do débito automático. Ou seja, bem na hora que a burocracia cuidava da mudança de endereço bancário, uma cobrança entra no vácuo e, claro, não é paga. Reapresentaram a fatura? (cairia nos bits automáticos!). Não. O que fizeram? Tiraram o relógio de luz e desativaram o fio do poste que alimentava a casa em questão.

Pois bem, a fatura, claro, quando descoberto o problema, foi paga. Até esse momento, imaginava-se que bandidos tinham roubado o relógio de luz. Jamais ocorrera aos contribuintes que a própria companhia, aproveitando a ausência dos proprietários (que já moravam em outro endereço, pois colocaram a casa em questão à venda) teria armado o puteiro desativando toda a infra-estrutura que puxava a energia. "A conta foi paga? Então vamos abrir um protocolo. O senhor aguarde dentro da casa, por 24 horas, num expediente das sete da manhã às dez da noite. A qualquer momento a equipe vai realizar a operação".

Passaram-se três dias e nada. Todos os dias, telefonava-se para Eletropaulo, que abria novo protocolo, pois o serviço fora rejeitado. Ou seja, a equipe esteve lá, “não havia ninguém em casa” etc. Tudo mentira. Os caras chegavam, viam o barraco armado da falta de relógio e de fio para ligar no poste, viam que a árvore em frente onde seria feita a ligação tinha uns galhos a mais e diziam: "Precisa podar a árvore! Senão não tem jeito".

Depois de muito implorar, e algumas ameaças numa tal Ouvidoria da empresa, os contribuintes conseguiram que uma equipe de dois sujeitos passassem por lá. Foram cercados pelo desespero das pessoas que faziam plantão na casa desativda e estavam confinadas, sem luz, num frio de rachar. Mas os tiranos avisaram: "O serviço não está conosco, só viemos dar uma olhada". Era mentira. Quase foram embora sem fazer nada, não fosse a insistência da ouvidora. Mas o cara avisava: "Tem que podar a árvore". Seria preciso chamar a prefeitura, isso levaria uns três meses. Mas acabaram cedendo. Não sem antes gritar para o responsável pela casa, que tentava argumentar sobre o absurdo da situação: “Esse problema foi causado por sua dívida, sua dívida!” Mas já está paga e são apenas 22 reais. “Não interessa! O senhor deve , deve!! “ Ou seja: tem um fuzil automático aí?

A Gol é outra empresa que está se revelando extremamente cretina (à primeira vista, parecia boa). Vende a mãe e não entrega. Deixou ontem, sábado, por cinco horas as pessoas esperando sem lhes dar a mínima satisfação sobre se o vôo ia sair mesmo de Congonhas ou de Guarulhos. No aeroporto Hercílio Luz, em Florianópolis, uma senhora batia na mesa do balcão e gritava: “Minha mãe tem noventa anos, noventa! Vocês a deixam esperando por um dia inteiro e não dizem a que horas sai o vôo! “ Favelizaram a aviação brasileira. A Gol ganhou mercado, tornou-se quase um monopólio e hoje faz o que quer, apoiada por uma infra-estrutura sucateada. Há suspeitas de corrupção por todo lado.

Antes, existiam a Vasp, a Varig (hoje agônica), a TransBrasil. Antes ainda, a Panair do Brasil, entre tantas outras. Meu pai vinha de São Paulo ou Buenos Aires, nos anos 50, assobiando de contente. Os vôos jamais atrasavam. As companhias eram brasileiras. Hoje querem privatizar a infra-estrutura da aviação. Os aeroportos que o povo pagou cairá na mãos dos espertalhões de sempre. É por isso que estão levando ao desespero os passageiros. É para angariar apoio na hora em que forem vender tudo. O espaço aéreo deixará de ficar sob nossa responsabilidade. Já tiraram o subsolo, privatizaram os serviços essenciais, estão armando para ganhar todo o território. Só faltava mesmo o ar.

RETORNO - Imagem de hoje: foto de Marcelo Min.

19 de maio de 2007

A FOTO E OS FATOS




Pontificando com seu rosto largo e sorriso aberto, que sempre foi a marca registrada da sua presença, Mario Medaglia puxa o cordão da equipe original do Jornal de Santa Catarina, lançado em 1971 em Blumenau, e hoje conhecido como Santa e de propriedade da RBS. À direita de Medaglia, que era nosso editor de Esportes, está Sergio Becker, repórter da pesada, e pelo que me lembro, editor do noticiário Nacional e Geral. O segundo à direita é o Diretor de Redação Nestor Fedrizzi, jornalista que fez História ao liderar a imortal Última Hora de Porto Alegre. E na ponta, Cynara Ribeiro, responsável pelo Arquivo e esposa de José Antônio Ribeiro, o Gaguinho, editor-chefe, que aparece como primeiro à esquerda de Medaglia. Na extrema esquerda, eu, redator (clicando na foto você pode ter uma visão mais clara das pessoas e da cena).

Atrás de Fedrizzi está o editor de Arte, Renan Ruiz e, quase sem aparecer, atrás de Sérgio Becker está Virson Holderbaum, também redator. Pelo gesto do rosto quase todo encoberto de Virson, é dele a piada que faz todo mundo rir. As outras pessoas, que não identifico o nome, faziam parte do jornal e trabalhavam em outros departamentos, talvez Oficina e Circulação.

Esta é uma das fotos que resgatei no mergulho que fiz nos meus arquivos em São Paulo. É histórica, pois mostra quase toda a equipe (faltou Reinoldo, o chefe de reportagem) de um jornal que, ao completar 30 anos em 2001, não citou nenhum dos integrantes desta equipe original. Sim, são todos gaúchos. Fedrizzi e Gaguinho não estão mais neste Lado da vida. O registro é impressionante pela sua raridade e por expor por inteiro uma equipe que estava confinada numa cidade desconhecida e entusiasmada em criar um jornal. Estávamos em plena ditadura Médici. Ríamos com o riso claro dos aventureiros, que deixaram a vida confortável de Porto Alegre para enfrentar o desconhecido. Ok, era apenas um jornal regional, mas para nós era um embate sério e difícil. Tínhamos diferenças entre nós, mas o humor era prioridade.

No início, morávamos praticamente todos no mesmo casarão, que chamávamos de mansão, situado ao lado da sede do jornal. A casa era uma extensão da redação. O jornalismo era para valer e ficávamos o dia todo no jornal, pois acumulávamos funções e produzíamos, essa meia dúzia de resistentes, o melhor jornal que poderíamos fazer. É costume dizer "bons tempos". Para mim, são tempos em que semeamos alguma coisa no chão pedregoso da Pátria. Saudades? Não. Mas sim um sentimento de pertencer não apenas às gerações que se atiraram naquela luta, mas a um tempo que não nos deu trégua. Éramos uma porção do jornalismo vocacionado e sério numa fronteira do Brasil profundo.

Quando perguntarem como começou certo jornal no Vale do Itajaí, mostrem esta foto. Ela fala por nós.

RETORNO - Hoje, no programa Educação e Cidadania, às 19 horas, na TVBV - Televisão Barriga Verde, que retransmite aqui a programação da Band, a jornalista e escritora Maria Odete Olsen me entrevista sobre a leitura e suas dificuldades e perspectivas. São cinco minutos televisos de uma conversa que gravei na sexta feira. Quem puder ver, será uma honra.

17 de maio de 2007

UMA SEMANA EM SÃO PAULO


Depois de três longos anos ausente, estive em São Paulo por uma semana, como se fosse pela primeira vez. Senti o mesmo impacto quando aportei na grande cidade para trabalhar. O massacre visual, a indiferença e a agressividade nas relações sociais e humanas, o trânsito brutalizador, as obras que transformam a geografia urbana um clone de Metrópolis, de Fritz Lang. Quem vive lá não sente tanto, como já aconteceu comigo.

Morando em Florianópolis, apesar de tantos problemas por aqui, vejo que ainda estou me civilizando, retornando ao que me formou: o espírito comunitário, o reconhecimento do Outro, o prazer de estar no mundo. São Paulo não dá colher de chá. Você precisa entrar no jogo. Não é como aqui, em que você pode se esconder (sei de diversas personalidades vindas das capitais maiores que estão fechadas em vários cantos da ilha).

Negócios pessoais me impediram de rever todos os meus queridos amigos e amigas da cidade que me recebeu e onde fiz minha vida. Peço desculpas, mas foi impossível. Na próxima vez, irei como visitante, não mais como morador. Mas terei de conviver com algumas coisas. Levar horas para chegar a um lugar que não passa de três quilômetros de distância. Ceder diante do comerciário que se ofende com um pedido que fiz e quer mudar a encomenda, porque ele sempre tem razão. Aguardar que o caixa atenda ao celular e olhe para o vazio enquanto você espera o momento de pagar pelo que comprou. Ver como viram a cara mesmo que te conheçam de vista há décadas, como ocorre com a vizinhança.

E suportar a esperteza assassina dos motoristas de todos os tipos, um fenômeno nacional (mas não tão intenso quanto lá) que retrata o quanto estamos no fundo do poço. Ninguém cede um milímetro. Nos serviços públicos privatizados, você implora para religar o fornecimento já pago. É que na ponta do varejo há sempre um tirano que sabe da sua necessidade e se vinga por você não ter cumprido determinando trâmite burocrático. Você chama um encanador e ele olha o defeito e te cobra um milhão de dólares. E ainda ameça subir para dois, se a coisa ficar mais feia ainda.

Mergulhei fundo no meu arquivo e na biblioteca que agora está em trânsito para a ilha. São mais de dois mil livros da melhor qualidade. Voltarei a ler meus clássicos favoritos e assim me "desasnarei", para usar um verbo de Monteiro Lobato, pois apesar de ter lido razoavelmente por aqui, me falta algo maior, que só a biblioteca, acumulada ao longo de 40 anos, poderá resolver. Quero agradecer publicamente a força que meu filho Daniel e sua esposa Carla deram a mim e minha esposa na semana em que fiquei em São Paulo, quando meus músculos ficaram todos doídos de tanto trabalho de mudancista militante.

Mas ficam impressões mais fortes da cidade amada. A solidez de seus equipamentos urbanos, pelo menos na parte onde tenho casa. O saneamento básico, as ofertas de todo tipo de produtos variados e de qualidade, coisas difíceis de achar em outras partes do Brasil. O Sul (aquele país imaginário inventado pelos paulistas, que mistura norte do Paraná com Gramado) tem muita fama, mas São Paulo é imbatível em vários aspectos. A cidade é séria, de uma seriedade que falta à maioria do território nacional.

Esses sentimentos contraditórios conviveram comigo ao longo da minha estadia. Não tenho mais forças para viver em São Paulo. Preciso ficar onde estou, ao lado da montanha e do mar. Aqui a vida financeira é mais escassa, mas há mais clima para escrever e continuar em frente. Torço por todos aqueles que se aventuram em São Paulo, terra de verdadeiras oportunidades, onde é possível criar filhos com relativo conforto e fazer uma carreira profissional gratificante.

Agadeço a paciência dos fiéis leitores do Diário da Fonte, que ficaram sem atualizações por oito dias. Um caso raro no DF, que sempre está presente. É bom lembrar que cheguei junto com o Papa, eu em Congonhas, ele uma hora mais tarde em Guarulhos. Segui sua visita pela imprensa. Só tenho a adiantar o seguinte: você faz o que quer, você sabe da sua vida. A Igreja, por sua vez, tem obrigação de definir parâmetros. Não podemos exigir da Igreja o mesmo pensamento que rege, sabemos, tantos equívocos. Teremos sempre a Igreja como baliza, com sua granítica vontade e seus dogmas. Faz parte da vida, a diversidade do pensamento. E celebro a canonização de Frei Galvão (foto deste post), santo milagreiro e popular.

7 de maio de 2007

O USO DO NOTICIÁRIO


O apresentador chega bem perto da câmara e num tom didático e cheio de advertência explica, escandindo as sílabas, que a vitória conservadora da França significa um Estado mais enxuto e uma condenação, nas urnas, da estrutura sindical que não deixa os trabalhadores ficarem na empresa mais do que 35 horas por semana. O recado é claro, como a regra: os socialistas e a esquerda em geral foram derrotados porque significam o passado, e o conservadorismo venceu porque significa o nosso futuro.

Esteja onde estiver, fale do que falar, a televisão brasileira sabe de que lado está: contra qualquer tentativa de revertermos a atual situação do país, em que até as pedras foram privatizadas, e com um sistema sindical totalmente engajado na destruição das leis trabalhistas. Nem pense em leis de regulamentação do trabalho, nem pense em Estado soberano. Veja o caso da França! Como se a França fosse aqui. Tudo é usado para um único objetivo: não permitir que tudo o que foi sucateado a partir de 1964 volte a assombrar os donos do poder.

Polícia ainda tem dúvidas se o jornalista assassinado no interior de São Paulo sofreu o atentado porque denunciou a sacanagem dos marmanjos que usavam crianças para festas sexuais. O direito de matar está garantido no Brasil. Se você denuncia, prepare-se para morrer. Mais cedo ou mais tarde eles vão conseguir. E o noticiário, que faz um estardalhaço na hora da denúncia, comete o maior olho branco quando vem a resposta do crime. É como se falassem de outro caso. Ficam cheio de dedos, talvez com medo de levar também um tiro. Mate que o sistema garante. Vão ficar perguntando se isso é isso mesmo.

Morreu Enéias, um dos Cacarecos (aquele rinoceronte dos anos 50 que ganhou as eleições para vereador no Rio) usados para anular a possibilidade trabalhista. O noticiário adora lembrar que Enéas venceu Brizola nas eleições presidenciais. Celebram assim o próprio feito: entronizaram o idiota para que o voto trabalhista fosse tungado. Qualquer coisa serviu para impedir que Brizola chegasse à presidência. Funciona assim: a direita cria alguém, ou permite que alguém cresça, que seja o retrato do que a própria direita faz do trabalhismo. Foi o que aconteceu com Jânio Quadros. Eles inventaram o populismo e encarnaram a falcatrua no imbecil da caspa e do sanduíche no bolso. Depois, inventaram Lula, o ágrafo convicto, o entreguista de voz grossa, a esperança da virada que virou apenas um presidente de banqueiros.

Não vejo mais TV aberta. Vejo inúmeros filmes por semana, em dvd. No intervalo de um e outro, o zap escapa por algum canal. É sempre o horror absoluto. A publicidade reina com seus comerciais engraçadinhos, pseudo-criativos, auto-premiantes, reiterante dos papéis sociais de opressão e privilégios. Retiraram há pouco um comercial do carro que vai a 300 km por hora. Depois todo mundo se estatela no trânsito e os publicitários fingem inocência.

O que mais irrita é o perfil das criaturas destacadas tanto no noticiário quanto no intervalo comercial (um é extensão do outro): são aqueles serzinhos consumidores, falsos cidadãos, pretensamente frágeis e cool, a empurrar mentiras goela abaixo do telespectador. Enquanto isso, grossa fuzilaria impera no país. Num bar em São Paulo, dois motoqueiros meteram fogo em 50 pessoas. No interior do estado, outros dois motoqueiros vestidos de preto pararam no bar e um deles, o carona, veio para cima do jornalista que fez a denúncia, e acabou com ele.

Corta para os comerciais. Alguém está dando ou querendo dar (aplausos, aplausos, dar é a virtude suprema). A população não pode ser treinada para virar o destino. Apenas para virar o rabo em direção aos algozes.

RETORNO - Imagem de hoje: Limpando, por Regina Agrella.

5 de maio de 2007

O DICIONÁRIO DE EPÍGONOS



Nei Duclós

Nasci depois, mas não me tornei um imitador. Tive um Mestre, Herr Grutes, do qual nada herdei, a não ser a devastadora emoção de vê-lo perdido, nas mãos de um súcia de autores.

A arte de Herr Grutes era tão excêntrica que talvez nunca mais surja alguém como ele. Levou para baixo da terra o que sabia fazer e que o tornou célebre entre uma casta de escritores sem escrúpulos. Não que o alemão que salvou minha vida tenha alguma vez escrito alguma coisa, a não ser a carta que deixou para mim como despedida. Ele fazia algo maior.

Era dono da oficina literária onde me acoitei depois de uma longa fase sem esperança. Meu jeito retaco, prejudicado do olho esquerdo, com a pálpebra caindo e o lábio saliente demais embaixo desse narigão formidável tinha derrubado aos poucos minha vontade de conversar com os outros. O asco que sempre provoquei me afastou definitivamente da civilização. Foi esse mutismo desesperado e minha imobilidade numa esquina que chamou a atenção de Herr Grutes, que caminhava com embaraço, abraçado a uma carga que fazia grande barulho. Era uma pilha enorme de folhas finíssimas de um metal que eu jamais identifiquei e que eram a matéria-prima de seu ofício e de sua arte.

Pediu para ajudá-lo e foi assim que me agreguei ao galpão misterioso que ele escondia no sopé de um morro, atrás de sua casa muito branca e que se misturavam a outras idênticas, num bairro que jurava ser alemão numa cidadezinha no interior do estado. Sua oficina literária trabalhava sob encomenda, que chegava em forma de pedidos por escrito, enviados pelo correio. Jamais vi um computador nos domínios do Mestre, mas isso não quer dizer que não usasse uma tecnologia sofisticada para concretizar o que lhe era solicitado.

Adaptara uma antiga máquina de impressão alemã que trouxera da sua amada Frankfurt. Um software implantado no equipamento clássico fizera com que ele se libertasse de outro tipo de mão-de-obra, mais complicada, como gráficos. Fazia tudo sozinho, pelo menos até eu chegar arfando com sua carga em meu obro, e entregava sempre no prazo. Seu trabalho era fabricar livros de metal, eternos, em edições de um único exemplar, encomendados pelos escritores aos quais me referi, e que precisavam da edição de alguma obra sua que não fosse perecer diante das ameaças de fim do mundo.

Eles tinham medo que o papel usado na época em que faziam sucesso no mercado com seus romances, poemas, contos e crônicas, se desmanchasse em menos de um século e eles assim seriam esquecidos para sempre, já que as luzinhas da internet são ainda mais precárias, basta que haja um apagão de verdade para toda a obra da humanidade ir para o saco. Encomendavam então para Herr Grutes a edição definitiva, a que jamais iria perecer, pois o material usado pelo Mestre era comprovadamente inacessível a traças, vermes, tempos, futuros, terremotos, incêndios ou tempestades. Parecia folha de flandres, pelo que me descreveram desta, já que nunca vi uma ao vivo. Podia ser folheado e isso deixava os escritores encantados. Eles podiam tocar no objeto que cruzaria gerações e até mesmo o espaço, pois era possível que os livros fabricados, com minha ajuda, na oficina literária de Herr Grutes, pudessem sobreviver até mesmo à fornalha das estrelas.

Eu fazia de tudo e me armei de paciência para ocupar o lugar subalterno que me cabia. Carregava as folhas de lá para cá, ligava a máquina quando tudo estava programado, dormia no galpão para evitar furtos e servia chá com biscoitos duros para o alemão que só comia isso o dia todo, todos os dias, semanas, meses. Fiquei um ano lá até que um dia o Mestre recebeu uma encomenda poderosa. Era um Dicionário de Epígonos, de 500 páginas. “Não posso fazer isso, está além das minha forças”, disse, furioso. O mensageiro ameaçou. Iria denunciar Herr Grutes para a polícia, já que trabalhava e ganhava bem sem pagar imposto e talvez estivesse até com a documentação irregular, pois viera nos anos 40 para o Brasil e jamais contou nada sobre seu passado, que fatalmente deveria ter aquelas experiências sinistras que os filmes não cansam de mostrar.

Foi essa encomenda, o Dicionário de Epígonos, que matou Herr Grutes. Ele levou tempo demais caprichando na obra e teve que fazer força para manobrar com tanto material. Os trabalhos anteriores, por sua exigência, não implicavam tanto peso. Eram pequenas antologias, apenas registros de um talento que deveria deixar marcas eternas.

Eu sou uma espécie de urso e fiz o que pude, mas o trabalho era demais. Assim, numa tarde clara, ao lado da sua xícara de chá com biscoito duro, descansando no seu pequeno jardim que ficava atrás da sua cozinha, Herr Grutes se finou. Deixou a carta a qual já me referi, onde dava instruções explícitas para eu terminar o livro maldito, tendo o cuidado de não contar seus segredos, apenas os vários passos de um processo que só ele conhecia a fundo.

Mas eu não queria mais saber daquilo tudo. Decidi abandonar o lugar. Antes, a curiosidade me levou a visitar o conteúdo da obra. Eram sete capítulos, cada um encimado por um nome bem pomposo, de escritor de sucesso. Eram nomes brasileiros, ou apelidos, que se misturavam a sobrenomes estrangeiros, como Gato Vanderblitz, por exemplo. Cada capítulo trazia, em ordem alfabética, os nomes dos pretensos imitadores, os epígonos do título. Os caras (que seriam os prógonos, os que vieram antes) tinham bolado uma forma de denunciar seus colegas, chamando-os de plagiadores, para que no futuro não restasse dúvida que eles sim eram os originais e o resto, lixo.

Os verbetes tentavam provar o plágio, citando trechos da obra do que se proclamava original e as frases dos outros, sempre toscas e mal ajambradas. Fiquei com nojo daquilo. Queria colocar tudo fora, mas o peso era enorme. Quinhentas páginas de mentiras pesavam demais no meu ombro caído. Por isso fechei a casa e fui embora, sem dar satisfações a ninguém. Deu vontade de virar serial killer. Até tinha pensado em confessar essa vontade no início desta narrativa. Mas iriam confundir com apelação e isso eu não admito.

Escrevo para ninguém e não me importo se alguém escreveu algo assim antes. Eu não li nada nesta vida miserável. Só me deu vontade de escrever quando vi tanta nulidade querer definir o futuro e para concretizar suas fantasias levaram à morte a única pessoa que realmente se importou comigo.

Não encaro o fato de ter nascido depois como má sorte. Acho que nasci no tempo certo. E se fiquei feio pela falta de esperança, resolvi mudar na hora em que coloquei no papel minha primeira linha e que dizia o seguinte: “Me chamem de Ismael”. Será que vocês já leram isso antes?

RETORNO - Imagem de hoje: Ermírio de Moraes (que nada tem a ver com a história) por Marcelo Min.

4 de maio de 2007

LEIS ESTÃO À VENDA


Deu em tudo que é jornal, portanto não vou me estender aqui sobre detalhes. Mas o que mais me impressionou na prisão de 19 figurões aqui de Florianópolis, entre empresários e políticos, acusados de manipularem licenças ambientais para mega-empreendimentos, é que as leis podem ser compradas. Não se trata apenas de manipular a lei, mas de colocá-las à venda. A corrupção, se for comprovada nesse caso, é capaz de gerar decisões jurídicas de longo prazo em favor de seus interesses. Mas isso todo mundo sabia! Mais grave ainda. Todo mundo sabia e todo mundo se calou. Se isso não é ditadura, então não sei o que é.


CÍRCULO DE LEITURA

Tive a honra e o prazer de participar do Círculo de Leitura, evento organizado pela Editora da Ufsc por meio de seu diretor, o poeta Alcides Buss, a quem conheci pessoalmente e ganhei ainda um autógrafo no seu livro Cinza de Fênix. As pessoas presentes levaram os livros que estão lendo, mostraram e comentaram. O Círculo acontece toda primeira quinta-feira do mês e já existe há quatro anos. É uma iniciativa poderosa para a disseminação do hábito de ler, para incentivo aos que se debruçam sobre as obras e pelo encontro proporcionado entre leitores, sempre gratificante.

Eu falei sobre as quatro fases de leitura sistemática que aconteceram comigo. A atual, que começa em 2001, em que leio para escrever sobre o que leio e aprofundo um trabalho de ensaios sobre literatura, dando ênfase a grandes autores antigos ou contemporâneos e também aos escritores poucos conhecidos, inéditos e esnobados pela mídia. A imediatamente anterior, de 1980 a 200, em que mergulhei nos livros de História, especialmente as memórias de ex-combatentes, leitura que me levou à USP. A da juventude, nos anos 60, em que tomei conhecimento de Fernando Pessoa, Garcia Lorca, Mario e Oswald de Andrade, João Cabral de Melo Neto, irmãos Campos, Mario Chamie, entre muitos outros. E a da infância e adolescência, em que li toda a obra infantil de Monteiro Lobato, mais as aventuras escritas por Emilio Salgari, com escapadas proveitosas para “O Continente” de Erico Veríssimo e “O morro dos ventos uivantes”, de Emily Bronté.

Como lembrança do encontro, recebi de presente, autografado por todos os que compareceram no espaço Cruz e Souza (que é a própria livraria), a obra "Leituras do Hipertexto - Viagem ao dicionário Kazar", de Raquel Wandelli, publicação da editora da Ufsc. Disse na ocasião o quanto me honrou o convite e o quanto fiquei feliz com aquela roda de amigos da leitura.


MORAL NO PLURAL

Tom Jobim dizia que Vinícius de “Morales” era uma pessoa moral, daí seu nome. O que dizer de Evo Morales, que na sua insurgência contra o imperialismo e a exploração acaba ferindo de morte, em seu território, os investimentos brasileiros da Petrobrás? Chamá-lo de ladrão não seria elegante, mas podemos sugerir que seja um sujeito “imorales”. O mais grave é que ele foi apoiado pelo governo Lula como símbolo da grande guinada da América Latina para a libertação política e econômica. Você não se liberta ferindo os princípios da moral e da ética. Você dá o exemplo proporciona à sociedade sedenta de Justiça o que a Lei, esse acordo inspirado na sobrevivência espiritual do humano, decide. Não adiantam leis se elas são compradas. Não adianta discurso de libertação se você começa tungando seu vizinho.

Mas isso é ingenuidade, dirão. Naif, o anátema extremo. Babaca, trouxa, looser. Acorde para o mundo, costumam dizer. Um dia acordei. Estava nublado. Então comecei a ciscar nos livros o espanador dos anjos. Eles vieram e tingiram o céu de sol e estrelas. Que besteira, para que serve a poesia? Serve para peitar os plenos poderes. Para isso serve o poema: para ser o soco que a política tem vergonha de dar.


RETORNO - Imagem de hoje: Praia de Ingleses, foto gerada pela visita de Daniel e Carla Duclos, que conosco passaram o feriadão.

3 de maio de 2007

NEI DUCLÓS NO CÍRCULO DE LEITURA


LITERATURA

NEI DUCLÓS NO CÍRCULO DE LEITURA

O Círculo de Leitura, que acontece hoje, às 17h, no Espaço Cruz e Sousa da Editora da Universidade Federal de Santa Catarina (EdUFSC), tem o jornalista e escritor Nei Duclós, autor entre outros, de No Mar Veremos e O Refúgio do Príncipe, como convidado especial da sua 24ª sessão. (Notícia publicada hoje, quinta-feira, dia 3 de maio, no caderno Variedades do Diário Catarinense)


"No Círculo, o convidado especial e os participantes discutem informalmente sobre livros que estejam lendo no momento. Nei Duclós, por exemplo, está mergulhado em uma antologia de contos de Joseph Conrad. Ao mesmo tempo, ocupa-se das leituras de A Sereia do Luminoso, de Ricardo Peró Job; Pesadelo Refrigerado, de Henry Miller; e O Ventre da Baleia, de Javier Cercas.

O autor, que afirma estar muito honrado com o convite, irá abordar a importância da leitura e o porquê as pessoas devem ler.

- A leitura é a imaginação. Nela você está livre para imaginar os personagens, os lugares. É diferente do filme, que reflete a interpretação do diretor, do produtor. A leitura abre as comportas, ela cultiva a liberdade de espírito - afirma Nei Duclós.

No caso da sociedade, ele acredita que a leitura liberta o espírito da imposição das falas corporativas, políticas, econômicas. Recomenda que as pessoas se distanciem das leituras facilitadas, pois ela exige um pouco de dificuldade e esforço.

- É importante ser um leitor assíduo. As pessoas precisam se dedicar a um autor ou literatura que se interesse - diz.

Nei Duclós atuou em alguns dos principais veículos de comunicação do País e é colunista do DC."

RETORNO - Imagem de hoje: dia vento na praia de Ingleses, no primeiro de Maio.

1 de maio de 2007

A CIDADANIA INVIÁVEL


O noticiário passa como paisagem pela janela do trem. Há mais de dois mil foragidos da justiça em Santa Catarina, sendo que quase 900 fugiram das celas, o resto nem foi capturado. Policiais encontram irmã de criminoso e a levam para uma sala de tortura. Colocam um capuz e começam a sessão. A garota estava grávida e teve corrimento. Supermercado que foi incendiado não tinha alvará dos bombeiros nem habite-se. Direção do supermercado disse que ficou surpresa, pois o serviço era terceirizado e garantiram que estava tudo em ordem.

Rapaz tranqüilo que entrou armado com um revólver e ateou fogo na seção de limpeza estava passando, dizem, por séria crise, pessoal e profissional. O ambiente (um sub-emprego numa vida com poucas perspectivas, aliado a um comportamento que exigia um tratamento à altura) encontrou a fagulha: uma desilusão no amor, uma acusação injusta no trabalho, uma remuneração distorcida. O resultado é a explosão num local que não tinha saída para incêndio (ou se tinha estava fechada a cadeado). A escada dos bombeiros não alcançavam dez metros de altura. As pessoas se atiraram, quebrando pé, tornozelo, perna, para não morrer.

Tudo isso perto de casa, na cidade, no estado. A linguagem em ruínas levam ao impasse. Se não há inteligência, investigação, recursos para o trabalho policial, se há descaso no salário, nas condições de emprego, se não há auditoria suficiente, então haverá tortura. É mais fácil extrair de alguém o paradeiro de quem deveria estar na cadeia do que investigar de verdade. A falta de um documento que permitisse o funcionamento do supermercado desaguou na intensificação da tragédia. A leitura dos eventos diários, da sociedade onde vivemos, foi substituída pela barbárie. Adolescente (16 anos) discute com outro e acaba dando três pauladas na nuca do adversário. A vítima morreu e o algoz foi recolhido a uma instituição de menores. Não há o hábito e a capacidade de resolver as diferenças por meio da linguagem, da carne das palavras.

O discurso, que é a decomposição da linguagem, se impõe. Começa pela arenga política, a justificação injustificável, a falta de responsabilidade nas alocuções, nos documentos que contrariam a realidade. Passa pela mídia, especialmente a publicidade, que estimula a violência, o desprezo pelo outro, a velocidade suicida dos automóveis. As novelas reiteram os papéis sociais da escravatura. O noticiário fica discutindo se o álcool deve ser líquido ou viscoso para evitar o pior.

A cidadania torna-se ínviável quando não há interlocução, quando duas pessoas não falam a mesma linguagem. A ruptura é o expediente mais comum, fonte de crimes. Não pode haver diálogo de verdade (substituído pelo monólogo entre surdos ou a clonagem do puxa-saquismo) quando o sistema precisa da corrupção para se manter. O Judiciário, que é a linguagem com força de lei, entra na dança das acusações e escandaliza a nação já escaldada. Não há paciência para a leitura concentrada, diária, conseqüente e sua necessária sintonia com as pessoas ao redor, com as autoridades. Como poderei reivindicar algo se não sei expressar direito o que vejo e sinto? E se sei escrever e dizer com todas as letras, meu texto não será lido pelo destinatário, ou se lido, ignorado. Não há cidadania se não houver uma civilização da linguagem.


As palavras foram distorcidas. Empresário virou publisher. Editor virou gestor de conteúdo. Empregado virou colaborador. Freguês virou cliente. Ditadura virou democracia. É por meio do discurso, a linguagem destruída, que o poder se manifesta e se impõe tanto no imaginário quanto fisicamente. As palavras possuem algemas. Imobilizados, damos aquele grito mudo de Al Pacino no terceiro Godfather. A ópera encontra seu desfecho: o mutismo desesperado.


Só nos resta a poesia, água no incêncio sem limites, fogo no canavial da indiferença. A palavra feito pão, carne, redenção. As palavras nascem no coração, chão de sementes.


RETORNO - Imagem de hoje: foto da série Meninos da República, de Marcelo Min.
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