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5 de maio de 2007

O DICIONÁRIO DE EPÍGONOS



Nei Duclós

Nasci depois, mas não me tornei um imitador. Tive um Mestre, Herr Grutes, do qual nada herdei, a não ser a devastadora emoção de vê-lo perdido, nas mãos de um súcia de autores.

A arte de Herr Grutes era tão excêntrica que talvez nunca mais surja alguém como ele. Levou para baixo da terra o que sabia fazer e que o tornou célebre entre uma casta de escritores sem escrúpulos. Não que o alemão que salvou minha vida tenha alguma vez escrito alguma coisa, a não ser a carta que deixou para mim como despedida. Ele fazia algo maior.

Era dono da oficina literária onde me acoitei depois de uma longa fase sem esperança. Meu jeito retaco, prejudicado do olho esquerdo, com a pálpebra caindo e o lábio saliente demais embaixo desse narigão formidável tinha derrubado aos poucos minha vontade de conversar com os outros. O asco que sempre provoquei me afastou definitivamente da civilização. Foi esse mutismo desesperado e minha imobilidade numa esquina que chamou a atenção de Herr Grutes, que caminhava com embaraço, abraçado a uma carga que fazia grande barulho. Era uma pilha enorme de folhas finíssimas de um metal que eu jamais identifiquei e que eram a matéria-prima de seu ofício e de sua arte.

Pediu para ajudá-lo e foi assim que me agreguei ao galpão misterioso que ele escondia no sopé de um morro, atrás de sua casa muito branca e que se misturavam a outras idênticas, num bairro que jurava ser alemão numa cidadezinha no interior do estado. Sua oficina literária trabalhava sob encomenda, que chegava em forma de pedidos por escrito, enviados pelo correio. Jamais vi um computador nos domínios do Mestre, mas isso não quer dizer que não usasse uma tecnologia sofisticada para concretizar o que lhe era solicitado.

Adaptara uma antiga máquina de impressão alemã que trouxera da sua amada Frankfurt. Um software implantado no equipamento clássico fizera com que ele se libertasse de outro tipo de mão-de-obra, mais complicada, como gráficos. Fazia tudo sozinho, pelo menos até eu chegar arfando com sua carga em meu obro, e entregava sempre no prazo. Seu trabalho era fabricar livros de metal, eternos, em edições de um único exemplar, encomendados pelos escritores aos quais me referi, e que precisavam da edição de alguma obra sua que não fosse perecer diante das ameaças de fim do mundo.

Eles tinham medo que o papel usado na época em que faziam sucesso no mercado com seus romances, poemas, contos e crônicas, se desmanchasse em menos de um século e eles assim seriam esquecidos para sempre, já que as luzinhas da internet são ainda mais precárias, basta que haja um apagão de verdade para toda a obra da humanidade ir para o saco. Encomendavam então para Herr Grutes a edição definitiva, a que jamais iria perecer, pois o material usado pelo Mestre era comprovadamente inacessível a traças, vermes, tempos, futuros, terremotos, incêndios ou tempestades. Parecia folha de flandres, pelo que me descreveram desta, já que nunca vi uma ao vivo. Podia ser folheado e isso deixava os escritores encantados. Eles podiam tocar no objeto que cruzaria gerações e até mesmo o espaço, pois era possível que os livros fabricados, com minha ajuda, na oficina literária de Herr Grutes, pudessem sobreviver até mesmo à fornalha das estrelas.

Eu fazia de tudo e me armei de paciência para ocupar o lugar subalterno que me cabia. Carregava as folhas de lá para cá, ligava a máquina quando tudo estava programado, dormia no galpão para evitar furtos e servia chá com biscoitos duros para o alemão que só comia isso o dia todo, todos os dias, semanas, meses. Fiquei um ano lá até que um dia o Mestre recebeu uma encomenda poderosa. Era um Dicionário de Epígonos, de 500 páginas. “Não posso fazer isso, está além das minha forças”, disse, furioso. O mensageiro ameaçou. Iria denunciar Herr Grutes para a polícia, já que trabalhava e ganhava bem sem pagar imposto e talvez estivesse até com a documentação irregular, pois viera nos anos 40 para o Brasil e jamais contou nada sobre seu passado, que fatalmente deveria ter aquelas experiências sinistras que os filmes não cansam de mostrar.

Foi essa encomenda, o Dicionário de Epígonos, que matou Herr Grutes. Ele levou tempo demais caprichando na obra e teve que fazer força para manobrar com tanto material. Os trabalhos anteriores, por sua exigência, não implicavam tanto peso. Eram pequenas antologias, apenas registros de um talento que deveria deixar marcas eternas.

Eu sou uma espécie de urso e fiz o que pude, mas o trabalho era demais. Assim, numa tarde clara, ao lado da sua xícara de chá com biscoito duro, descansando no seu pequeno jardim que ficava atrás da sua cozinha, Herr Grutes se finou. Deixou a carta a qual já me referi, onde dava instruções explícitas para eu terminar o livro maldito, tendo o cuidado de não contar seus segredos, apenas os vários passos de um processo que só ele conhecia a fundo.

Mas eu não queria mais saber daquilo tudo. Decidi abandonar o lugar. Antes, a curiosidade me levou a visitar o conteúdo da obra. Eram sete capítulos, cada um encimado por um nome bem pomposo, de escritor de sucesso. Eram nomes brasileiros, ou apelidos, que se misturavam a sobrenomes estrangeiros, como Gato Vanderblitz, por exemplo. Cada capítulo trazia, em ordem alfabética, os nomes dos pretensos imitadores, os epígonos do título. Os caras (que seriam os prógonos, os que vieram antes) tinham bolado uma forma de denunciar seus colegas, chamando-os de plagiadores, para que no futuro não restasse dúvida que eles sim eram os originais e o resto, lixo.

Os verbetes tentavam provar o plágio, citando trechos da obra do que se proclamava original e as frases dos outros, sempre toscas e mal ajambradas. Fiquei com nojo daquilo. Queria colocar tudo fora, mas o peso era enorme. Quinhentas páginas de mentiras pesavam demais no meu ombro caído. Por isso fechei a casa e fui embora, sem dar satisfações a ninguém. Deu vontade de virar serial killer. Até tinha pensado em confessar essa vontade no início desta narrativa. Mas iriam confundir com apelação e isso eu não admito.

Escrevo para ninguém e não me importo se alguém escreveu algo assim antes. Eu não li nada nesta vida miserável. Só me deu vontade de escrever quando vi tanta nulidade querer definir o futuro e para concretizar suas fantasias levaram à morte a única pessoa que realmente se importou comigo.

Não encaro o fato de ter nascido depois como má sorte. Acho que nasci no tempo certo. E se fiquei feio pela falta de esperança, resolvi mudar na hora em que coloquei no papel minha primeira linha e que dizia o seguinte: “Me chamem de Ismael”. Será que vocês já leram isso antes?

RETORNO - Imagem de hoje: Ermírio de Moraes (que nada tem a ver com a história) por Marcelo Min.

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