Páginas

27 de fevereiro de 2005

A PROFISSÃO EXTINTA




O jornalismo acabou. Impera a publicidade, a troca de favores, a corrupção dos conteúdos que tentam seduzir os leitores com superficialidades e sacanagens. Os repórteres estão impedidos de exercer o seu ofício. O que vejo nos jornais são textos com 30 verbos para substituir o clássico dizer. As pessoas estimam, confidenciam, alertam, recordam, garantem, acrescentam, tudo em meia dúzia de linhas, mas jamais dizem simplesmente. Isso é vício de linguagem, falta de orientação ou de talento. Fica penoso cruzar um parágrafo em que triunfa a narrativa tosca do escriba contratado para produzir abobrinhas. Revista de esportes? Colocam mulher pelada na capa. Matéria policial? Tudo a reboque dos B.O.s, jamais há iniciativa, levantamento de assuntos. O que vale é o marketing da notícia: se há algum evento ou pesquisa, então fazem a matéria. É o que chamam de gancho. Para mim, é o jornalismo que tem a carne exposta em ganchos de ferro, atraindo moscas e afugentando leitura.

BALCÃO - Abri um dia o El País espanhol de domingo e lá estava encartada a magnífica revista de reportagens deles, igualzinha à que fazíamos aqui até os anos 60 e que eu lia na infância e juventude com água na boca. Quem abandonou o jornalismo foi o Brasil, graças à longa ditadura, que debocha o povo aumentando salários de parlamentares e tem um presidente que não fecha a boca nunca. Um presidente deveria falar apenas em datas cívicas ou quando houvesse a necessidade de anunciar um projeto importante (construir uma gigantesca e moderna malha ferroviária, por exemplo). Não temos revistas de reportagens, temos caras e bocas. O modelo que venceu foi o de Ibrahim Sued. Todo mundo é colunista social. Adoram dar bola branca e bola preta (hoje é in e out), badalar celebridades, oferecer beldades, falar glamour, apontar ícones. O que tem de ícone na mídia é um espanto. Repórteres maravilhosos estão confinados ou a horários imprestáveis (como o José Hamilton Ribeiro ao cantar do galo na Globo) ou a materinhas descartáveis (como o grande Caco Barcelos cobrindo o casamento do príncipe Charles com a Meméia). Lembro Caco fotografado por um operário de Angra na chamada de capa da Repórter Três, editada pelo Hamilton Almeida Filho. A chamada era (em plena ditadura civil-militar): Invadimos a central nuclear! Caco, ex-motorista de táxi (descoberto por Licínio Azevedo), inscreveu-se para trabalhar de operário na usina e fez a matéria. Para mim, a péssima situação atual tudo é fruto da vaidade: os donos de jornal quiseram virar ícones do jornalismo, os colunistas monopolizam os furos e sobra para o reportariado a ingrata tarefa que cumprir a pauta de frivolidades do balcão de negócios em que se tornou a mídia.

HUNTER - Para que colocar tanta bunda? me disse uma repórter um dia desses. Respondo: porque são uns bundões, acham que as pessoas vão para as bancas atrás de bunda. Por que reservar três quartos da matéria para fazer suíte, ou seja, para contar o que o leitor já sabe, já que saiu tudo em datas anteriores? É porque os manuais mandam repetir até a exaustão, deixar tudo explícito, fazer mapinha para esfregar na nossa cara que o Cudamãequistão fica um pouco acima da Merda Central. Chega de mapinha, de destaques respondendo perguntas do lead americano dos anos 50. O quem que onde quando por quê morreu nos anos 60, mas até hoje é ensinado nas faculdades de jornalismo. Um dos caras que enterrou o lead foi o genial Hunter Thompsom, que deu-se um tiro recentemente aos 67 anos (talvez inconformado com o enterro da própria profissão nesta era Bush). Seu livro Las Vegas na Cabeça é de matar de tão bom. É uma roadie-reportagem, uma viagem louca de Los Angeles a Las Vegas, onde ele vai fazer uma cobertura jornalística. É denúncia e provocação, é jornalismo revolucionário e literatura de primeira água, é linguagem lá no pico. Ele chama seu traficante de drogas de meu advogado. É leitura obrigatória. Parece que empurram goela abaixo da meninada nas faculdades nulidades como Notícias do Planalto, do Mario Sergio Conti, um livro que já teve uma resposta à altura em Castelo de Âmbar, de Mino Carta (onde Conti aparece sob o pseudônimo de Soslaio). Hunter, caçador: chumbo grosso neles.

RETORNO - O caderno Donna, do Diário Catarinense deste domingo, publica meu texto O Vigia do Mar, uma das minhas crônicas favoritas. Tem mistério, assombro e até reportagem. Não digo o nome do Mestre para guardar segredo. Nenhum segredo será revelado. Viver é buscar a chave do enigma, sem jamais encontrá-la. A única regra é não desistir. Andar nos salva. Procurar nos resgata. Dizer será nossa única herança.

25 de fevereiro de 2005

OS PRISIONEIROS DA CRIAÇÃO



Pegue um livro em qualquer página. Lá está descrita uma cena e os personagens estão imobilizados naquela ação, a não ser que você siga a leitura. Você chega no final e tem a história pronta na cabeça, mas cada criatura continua lá, fazendo o mesmo gesto para sempre, preso pela palavra e a posição da narrativa. Assim também no cinema. Os fotogramas são imagens paradas que só se movimentam para criar a ilusão do movimento (sou do tempo do fotograma). Acaba o filme, fecha o livro e a mágica se desfaz. Nosso acervo cultural é um monte de memórias fugitivas que serão lembradas até certo ponto. Depois tudo acaba, como um sopro num castelo de cartas. O que permanece mesmo é um quadro, único na sua exposição permanente, existente mesmo que esteja fora da percepção de todos. A pintura e a escultura estão prontas, são seres concretos, enquanto a literatura e a sétima arte dependem de manipulações externas. Você leva Van Gogh para baixo da cama, mas não adianta ter Godard guardado no armário, ou Conrad na estante. Van Gogh existe, independente de você. Já o pobre do Jean Luc ou o gênio de Joseph são magníficos que inexistem se não houver a mão que folheia, ou a que passa o filme.

AVIADOR - A única maneira de soltar esses prisioneiros da criação é você se transformar neles. Sempre que leio Lord Jim, me vem à cabeça a frase de Marlowe (ele era um dos nossos) ou a tocha acesa que ao se afogar no rio revelou todas as estrelas. Podem me perguntar quem eu sou. Sou aquele tenente do deserto, que acha o caminho mesmo se lhe roubam a bússola. Quero tomar Acaba, by land! Tenho amigos que são os Thibault . Tem outro que continua procurando a sobrinha índia. Já fomos todos Pedrinho, neto de Dona Benta, e quando crescemos viramos o aviador que cruza os Andes. Não se trata de ilusão ou fome de aventura, é incorporação mesmo. Por serem artes que escapam como areia pelos dedos, cinema e literatura precisam de uma paixão maior, pois cada percepção ajuda a destruir o filme ou o livro. Ninguém enxerga da mesma maneira e precisamos nos aferrar à nossa para que ela continue existindo. Os prisioneiros da criação assim dependem de nós. Para onde vai todo o delírio de Glauber Rocha se não virarmos Corisco? Para que serve Jean Seberg se você, amiga, não estiver agora, neste canto do Brasil, vendendo jornal em Paris? Somos nós a praia onde aportam os bilhetes de amor dos grandes criadores. Eles se foram e nos deixaram uma tarefa: devolvam vida ao que expusemos de maneira inanimada. Puxem o cordão, descerrem a placa para que tudo se refaça, e sempre de maneira diversa. Ou descubram que vocês acordaram um dia transformados num gigantesco inseto.

MEL - O menino sobe a prateleira atrás de qualquer coisa, uma revaleção. Descobre então um livro de capa amarela, com um enorme sol como um ovo frito em cima de uma paisagem que só pode ser o pampa, trespassada por uma cerca de arame. No avesso, na contracapa, ee vê esse grande sol/ovo frito transformar-se numa lua que se quebra e solta um monte de estrelas. A criança abre o livro para ver as figuras. Enxerga as cadeiras de palha que Cláudio Levitan transportou da casa onde eu morava com minha mulher e meu primeiro filho, em Ipanema, Portinho, rodeada de coqueiros, a cem metros do Guaíba. O menino então enxerga o que nunca viu: a boca de Levitan soltando um sopro, para dizer como os poemas daquele livro, Outubro, saíam assim de chofre. O vento pega o menino e ele lê alguns versos. O que seria de Outubro não fosse essa descoberta? De que adiantam inúmeras tardes de algumas pessoas em volta de um monte de papel velho, cheio de letras datilografadas, recheadas de rabiscos a canetas e lápis? Nada seríamos se o menino não tivesse subido os degraus da estante e lá, atraído pela luminosidade da capa, e depois embevecido diante dos cenários que o artista descreve, pudesse então mergulhar na poesia, como um anjo descobre o gosto do mel.

PIOROU - A linguagem em ruínas é fruto da sucata capitaneada pelos falsos professores, que ganham dinheiro difundido generalidades. Serve à ditadura no poder em todos os estamentos sociais (o Pará é só uma vitrine, todo o país está assim). A televisão cuida desse rebento com o maior desvelo. Vejam como todos dizem sem parar coisas seguidas pela expressão ...e muito. Melhorou, e muito. Pois para mim piorou. Ou ficou pelhor, como diz o povo. Num noticiário matinal, cinco casos de violência doméstica repetiram sempre a fórmula consagrada dele, dela no lugar de seu, sua. Esse vício começou com o Millor Fernandes, que no Pasquim colocava sempre sua(dele), seguido da frase que língua a nossa! Pois virou lei. Não se diz mais seu ou sua. Uma crítica à aparente pobreza da língua acabou empobrecendo-a ainda mais. O presidente Lula também faz parte da linguagem em ruínas, já que não governa, apenas fala pelos cotovelos. Exibiu-se dizendo que mandou uma autoridade monetária fechar a boca porque ela tinha denunciado corrupção no Banco Central. Prevaricou, disse o deputado Alberto Goldman. Teve conhecimento de um crime e não falou para ninguém. Quanto custará este cala-te boca? O Severino Cavalcanti, que já é chamado de presidente, comete o clássico poblema. Para ele, ser demagogo é insurgir-se contra o aumento salarial dos deputados. Não ser demagogo é abraçar a nova remuneração com festa. Acho a situação insustentável. E muito.

RETORNO - O Leonardo de Caprio não tem biotipo para ser o Howard Hughes. Nem talento. Sempre que vejo o loirinho, tenho vontade de lhe dar uns cascudos. Não serviria nem para alcançar café no set para o Bogart. Entre as atrizes, vejo as candidatas ao Oscar todas com cara e jeito de meninos. Quem viu Marilyn Monroe e Jane Russel descendo as escadas no filme Os homens preferem as louras, ou John Wayne virando-se bruscamente para trás, sabe do que estou falando. Falo do Mundo Perdido. Um pouco desse mundo está em Clint Eastwood. É só ele dependurar as chuteiras e ficaremos à mercê dos atores alimentados com maizena. Como o Pierce Brosman, que em Crown, a arte do crime, é apenas um pálido clone do grande Steve McQueen no filme original (Crown, o magnífico). Pierce se acha. Merece também us cascudos.

24 de fevereiro de 2005

AINDA SUJA



AINDA SUJA



Nei Duclós




Lá no coração escuro

da alma endurecida pelo estupro

Guardada em denso toque de loucura

muito abaixo do chão da lua, onde

escondeu-se a luz da infância

que perdi junto com a vida.

Lá onde ninguém vai, nem a mais

dolorosa sombra, onde a represa

do amor afunda, por esquecer

a voz que batizou seus anos.

Lá, irremediavelmente nua

Presa ao colar do desengano

dorme a chama infinita do poema

Palavra despertada e ainda suja

23 de fevereiro de 2005

SOSSEGO PÚBLICO E HONESTIDADE

O trabalho honesto depende do sossego público. Quem trabalha e jamais rouba sabe o quanto é necessário colocar a cabeça em ordem quando chega em casa. Viver à custa do próprio esforço sem destruir vidas humanas é pura encrenca, fonte permanente de conflito, que suga todas as energias e te deixa um caco no final do expediente. A barulhada infernal que tomou conta do Brasil impede que pessoas honestas possam passar algumas horas diante da própria identidade, longe do ralador que é tirar leite de pedra. Do outro lado, todo transtorno da paz das pessoas honestas está diretamente ligado à contravenção: o inferninho sem alvará, o carro envenenado cheio de drogas, a atividade empresarial predatória em região residencial. Agüentem, aqui não é uma ilha deserta, dizem os contraventores justificando a violência auditiva. Pois é exatamente o contrário: numa ilha deserta, você bota o som no volume que quiser.Onde há povoamento, você respeita a população. Há lei contra isso. Mas há omissão, quando não conivência.

MORAL - O caradurismo da direita que empalmou o poder na Câmara Federal, graças à incompetência dos dito progressistas (no fundo fazem todos parte da mesma corja) expôs um perigo que ameaça o Brasil: o de que a moral é deixada de lado pela esquerda para que a direita tome conta. Moralista é o pior xingamento que pode existir numa roda de pessoas esclarecidas. No Brasil, o esclarecimento está a serviço do obscurantismo: não tem nenhuma, tudo pode. Meninas passam conversando animadamente e repetindo a cada frase a palavra caralho. Nada contra, diria Seinfeld, o sitcom que ridicularizou o pensamento politicamente correto. Parada gay cevada a centenas de milhares de reais do dinheiro público (como aconteceu na época em que a Marta Suplicy era prefeita em Sampa) é exatamente o oposto das velhas paradas da juventude. Antes, era a meninada que saía à rua para mostrar o que o país tinha de melhor. Hoje, a bizarrice toma conta de maneira explícita e não reclame, ou vai ser moralista? Não seja reacionário, te dizem os reacionários, os mesmos que está no poder há quarenta anos. Agora viraram todos democratas e aumentam seus salários com uma alegria ímpar.

DOROTHY - Ninguém sabe quem são os madeireiros e os grileiros de terras públicas do Pará? Ou onde estão? E os pistoleiros somem no ar assim no más, enquanto os jurados de morte apontam todos os dias a ameaça que ronda as suas casas? Tem lei neste país! diz o presidente que deixou que matassem a missionária Dorothy. Tem nada, Lula. Aqui é a lei da selva. Desmatam, matam, poluem e depois vem a voz embargada de emoção dos apresentadores de TV a fazer reconstituição do crime. Atiraram na pobre mulher com uma Bíblia na mão, num território onde cabe a humanidade inteira e sobra espaço. É simples: é o Mal no poder de fato, enquanto a ditadura posa de democracia no mais sinistro tempo das nossas vidas. Nem se pode mais matar em paz, disse uma vez um matador. Dorothy procurava algo além do arco-íris e encontrou balas na nuca. Foi para o meio do nada com sua determinação e espírito público. Foi tratada como criminosa, já que não deixava matarem em paz. Andava pelo ermo total agarrada à sua Bíblia. É o tipo de pessoa que não pode ficar viva no Brasil.

GANDAIA - Caia na gandaia, como ensina o ministro da Cultura. Vá atrás do trio elétrico depois de comprar por um milhão de dólares o seu abadá. Destrua os tímpanos das pessoas para ganhar os tubos e sacuda as carnes até comprar todos os aviões a jato do mundo para seu usufruto particular. Ao mesmo tempo, extorca todas as empresas com impostos escorchantes, todos os trabalhadores com remunerações abaixo da crítica e depois vá para a televisão comprada fazer média, digo, fazer mídia. Mate a missionária no meio da mata, aquela que lembra a justiça onde só existe choro e ranger de dentes. Veja o gordalhão latifundiário reclamando da irmã Dorothy. Veja como eles têm nomes esdrúxulos, como mostram suas caras de facínoras, como arengam sem parar suas necessidades em público. Vejam essa canalha que toma conta do país com suas presenças rotundas, com seus poderes federais, com suas surras a jornalistas independentes, como se fôssemos todos um bando de inúteis.

RETORNO - Vai acabando o verão, as visitas voltam, mais intensas do que nunca. No seu terceiro ano de vida, o Diário da Fonte (que produziu como nunca nesta época de praia) firma-se como leitura diária. Trabalho honesto, silencioso, não remunerado. Marginal, portanto, ao horror oficial do país entregue aos bandidos (vejam Genoino e Severino brigando: não são fofos? O que mais encanta em Genoino é quando ele franze o nariz para mostrar que é fera, tigre da luta libertária. É um paspalhão, assim como seu opositor assumidamente fisiológico).

22 de fevereiro de 2005

O SOPRO IMORTAL




O texto é uma criatura que precisa ter fôlego para sobreviver ao criador. O barro das palavras não é suficiente. É preciso soprar nele uma alma imortal. Feito o verbo do Criador, que a partir do mundo concreto, as consoantes, animou pelas vogais o próprio desdobramento, à sua imagem e semelhança. A divindade entrou no perigoso jogo da invenção porque gostou do que tinha feito. Sua extrema bondade decidiu dar a luz a quem estava fora dele. Assim também a literatura. Não basta reproduzir o próprio poder numa infinidade de linhas. É preciso que em cada uma delas alguma coisa viva se mexa, e é essa animação que mantém acesa a chama que permanece. Escreva para o momento em que você não estiver mais sobre a terra e usufrua desse milagre que salta diante dos olhos como uma alegoria. Não há amor maior do que descobrir no que você escreve o rastro de uma estrela em formação.

ARTHUR - A crônica sofre do mal da nossa época, que é insistir no presente, ou melhor, nas ilusões do tempo. Os autores procuram o supérfluo, determinados a não cansar os leitores com o brilho misterioso no alto da montanha. Perda de tempo. Na hora em que você termina o artigo, ele já se torna antigo, e quando vai para a publicação, chega morto ao público. Como tudo já foi escrito, ninguém mais se abala com a mínima provocação, a não ser que você encarne um espírito maior e vista a túnica de Merlin. Lá estão os adolescentes tentando tirar a espada da pedra. Um deles será o escolhido. Quando Arthur consegue repetir três vezes o gesto impossível, Merlin sabe que chegou a hora. Fique de tocaia na hidra que se mexe no fundo da gruta. Ela tem mil cabeças e um milhão de olhos. Mas sobre isso que parece um monstro existe apenas areia. Sua opção pode ser o uso de um pouco de poeira para fazer funcionar a clepsidra. Mas há outro caminho, não isento de sacrifício. Você entona a voz de trovão e fala para os arbustos. O vento debocha das suas intenções. Mas de repente surge a salsa ardente e você vislumbra o eco da passagem dos centauros. Tudo besteira, dirão, não há verbo se a linguagem está em ruínas. Quem é você para contrariar os desígnios do Mal? Mas você tem uma arma secreta: sabe que vai morrer. Por isso joga o cântaro sobre o grão fino do deserto e atira-se ao pequeno monturo que consegue reunir. Quando tudo parece esvair em seus dedos, recite a frase mágica. E, como o Criador, descubra a vogal sem nome, aquele grito dado por Deus quando viu-se cara a cara com o espelho. Lá nascerá a sua fonte. Mas não se atire nela. Dê de beber aos beduínos sedentos. Eles azeitarão as armas em tua defesa.

GILBERTO - Li Saint-Exupery numa época parecida ao que ele escreveu, não tão intensa, mas com o mesmo ambiente da certeza da morte em vida. O escritor procurava um sentido nos territórios onde não existia a guerra. O céu sem fim, o deserto, o gelo mortal, levavam à paz, refúgio para a a perdição e o desespero. Ele encontrou nas palavras algo que ficou para sempre. Li topos os seus livros rodeado pelo troar da ditadura, aquela que matou pouco, segundo um dos seus defensores. Vi amigos sumindo para lugares sem nome. No dia em que vi Gilberto Gick pela última vez, sua imagem estava espalhada por toda a cidade. Ele tinha posado para um out-door e lá estava sua cara loira, seu sorriso forçado (pelo excesso de lucidez), com as mãos postas para a frente. Passeamos pela última vez no seu carro. Ele me disse que estava partindo para outra. Iria embora de Porto Alegre, retirava-se da juventude. Nunca mais o vi. Levou dois tiros num evento muito mal explicado e foi-se para sempre. Era um especialista em conquistas. Todas as portas se abriam para ele e nossas famílias, amigas, se confidenciavam que toda criança setemesinha tinha esse dom. Talvez a pressa em vir ao mundo revelasse um poder de sedução maior. Olhava-se no espelho várias vezes antes de sair. Por um tempo, fomos inseparáveis. Íamos indo pela rua e um menino muito pequeno estava de roupinha limpa, cabelinho molhado, muito compenetrado. Gilberto não teve dúvida e lascou sua pergunta lapidar: Tomou baiinho, tomou? Até hoje uso essa tirada. Estávamos estudando para o vestibular (de Engenharia!) num apartamento dos parentes dele e o ambiente ficou insuportável. Não lavávamos nada e as coisas começaram a se amontoar. Lembro que derramamos um balde de água suja na cozinha, um acidente no momento de fazer um lanche. Gilberto olhou para aquela inundação, naquele verão impossível e proferiu mais uma: Não tem problema, isso evapora. Éramos assim na juventude, quando realmente fomos imortais e o mundo partiu-se diante de nós como um deus que ri da própria piada.

SAUDADE - Gilberto adorava Exupéry, entre muitos outros autores. Qualquer obsessão que captava em algum conhecido, debochava, invocando o grande escritor: São os rituais, são os rituais! O que fica dele é a nossa enorme saudade. Por isso não podemos perder tempo quando estamos diante de um texto que se revela na nossa frente. É nossa única passagem sobre a terra. A alma tem pressa de partir para o Outro Lado. Toque na sua vida como se estivesse palmilhando terreno sagrado. Irrompe do solo em chamas a glória de sermos assim, criaturas datadas, mas tombadas pelo projeto inadiável da eternidade.

20 de fevereiro de 2005

A DESPEDIDA EM CASABLANCA


Nei Duclós


A última cena de Casablanca não é um desfile de chapéus de um melodrama barato, como querem as imitações, as clonagens e as homenagens feitas depois que o filme tornou-se um clássico. A intensidade da cena vem da surpresa de Ingrid Bergman diante da decisão de Humphrey Bogart de despachá-la de avião junto com o marido. O cinema daquele tempo não era um jogo de cartas marcadas, como o de hoje, em que as celebridades exibem a falta de talento a serviço do megamarketing. Era um ofício duro, em que era preciso morrer em cena.

Hoje, tempo do eterno presente, todos se sentem imortais, mas Bogart e Bergman sabiam que iam morrer naquele momento definitivo das suas vidas. É essa certeza que faz do desenlace um momento supremo do cinema. Ricky renuncia ao amor, que está em desvantagem devido ao tempo transcorrido, à situação adversa e aos hábitos adquiridos na longa solidão. Ingrid vê desabar seu sonho de retomar o que tinha perdido para sempre.

Era tarde demais: ela tinha selado seu destino anos antes, ao abandonar seu amor numa plataforma chuvosa, por meio das palavras de um bilhete que se desmancham na tormenta. São destinos que se revelam por meio de um acordo no aeroporto noturno, em que a única luz vem do olhar duro do homem que quebra o encanto, e a única sombra é a que pousa no rosto da mulher derrubada pelo adeus. Essa confluência torna Casablanca a obra-prima de um cinema focado no sentimento que perdeu o trem da História, mas que, pela sua determinação trágica, conserva a força que move os protagonistas em direção à eternidade.

SEDUÇÃO - A canção inesquecível, As times goes bye, é o fruto proibido do paraíso criado por Ricky. Enquanto a terra entrega-se à barbárie ( a Criação sem subterfúgios, puro assombro e indiferença) o reduto do seu bar sobrevive por ser um território neutro na guerra. Tudo é permitido: o jogo de pôquer entre inimigos, o contrabando de passaportes, a prostituição, o alcoolismo. A única lei é não permitir que se toque essa melodia.

A mulher, a estranha nesse paraíso inventado pela masculinidade, transgride a regra por meio da sedução (toque, Sam). Seu objetivo é resgatar o amor perdido, o sentimento que se escoou pelo ralo. Mas a conseqüência do seu gesto é a surpresa do homem entocado, recolhido ao exílio depois de ter sofrido a traição. A canção leva o olhar de Ricky para a presença da mulher, que desmascara assim aquele antro do ressentimento. O que desperta não é o amor insepulto, mas a vingança. Vingar-se é a obsessão do heroismo avesso aos bons sentimentos.

Ricky no fundo despreza o patriotismo, fonte da guerra, porque nenhum amor à bandeira chega aos pés do amor por uma mulher. Mas evitar o Falso Bem (as patriotadas, os missionários salvadores) não significa furtar-se ao engajamento. Todo o tempo o herói precisa agir contra a tirania sem revelar suas intenções, porque sua carcaça é definitiva e jamais poderá ser flagrado pela sua extrema fragilidade, que é o amor traído. Humphrey Bogart, em Casablanca, é a segunda chance de Adão: ele já conhece as artimanhas de Eva e faz de conta que cai novamente na armadilha da sedução. Obedece a mensageira da serpente (que quer salvar o marido e não retomar o amor) e a atrai para o abismo.

Sua cartada é que, nessa troca de blefes, Eva acaba cedendo ao que tentava evitar e enche-se de esperança. Adão se vinga ao renunciar ao amor jogando com o mesmo par de ases com que foi excluído: ele também tinha uma missão a cumprir, como ela, ao abandoná-lo. Ela tinha desistido em favor de uma tarefa vestida de nobreza, mas nua de sentimento. Ele faz o mesmo, mas ninguém precisa saber disso.

PARIS - A dupla renúncia, primeiro dela, depois dele, coloca o amor em Casablanca num espaço mítico. O amor não pertence a eles, mas ao tempo, que joga as cartas definitivas. É o tempo que promove o encontro e também o desenlace. Por pertencer ao tempo, o amor só pode ser vivido pela memória. Teremos sempre Paris, diz Ricky, numa das mais belas frases finais da história do cinema.

Teremos sempre Casablanca, o filme que ousou dizer o nome desse amor sem limite, que nos arrebata quando nasce, que nos destrói quando torna-se impossível, que nos surpreende por ser eterno, e que guarda uma esperança: já que teremos sempre Paris, é porque teremos sempre conosco a verdade. E a verdade identificada com o amor (e não com as bandeiras perecíveis) é a arma que nos defende do aniquilamento. Houve amor um dia na guerra que matou 150 milhões de pessoas. Todos tem direito a retomar o que um dia brilhou em Paris: o amor sem identidade, fruto de Cupido, o deus criança que usa flecha num tempo de canhões.

19 de fevereiro de 2005

CASABLANCA E OUTROS POEMAS DE AMOR




Toque, Sam, toque a canção que nos transporta, pela memória, ao amor sem identidade, que rompeu-se numa estação de trem na véspera da guerra. Resgate o que nos foi negado neste bar dividido, que é o retrato do limbo, que acena com o céu, mas tem um pé no inferno. Atraia a virilidade ferida de morte, diante do esplendor da mulher que amou por destino, e hoje se recolhe à missão vestida de nobreza, mas nua de sentimento. Toque a barra do vestido desse filme inesquecível, que o artesão Michael Curtiz nos legou guiado por Cupido, esse deus criança que usa flecha num tempo de canhões. Revele o rosto destruído de Humphrey Bogart, o último homem sobre a terra, inconformado diante de Ingrid Bergman, o mais impressionante e luminoso rosto das filhas de Eva. Traga-nos o poema em forma de soneto para que possamos, como Rick, reencontrar o que nos foi negado e, como ele, renunciar à felicidade neste vale de lágrimas. Apresente-se, Casablanca, como o filme que jamais deixaremos de ver, porque lá enfim sabemos o que nos falta sempre, nesta passagem sem sentido pela terra, a não ser que conheçamos a glória do amor, esse dom que nos transtorna, por ser o único alimento a que não podemos renunciar. Libere mais poemas de amor, esse ofício sem futuro, para que Casablanca fique cercado do mistério que é sentir-se vivo num universo em ruínas.

CASABLANCA

Nei Duclós

Só amor resgata tua essência
dispersa no exílio deste bar.
Só um rosto é capaz da violência
de mudar teus hábitos, e despertar

Paris invadida pelo som de um anjo.
No piano, o passaporte para o dia
submerso no ódio e a morte lenta.
Ela voltou para devolver a vida.

Os tiros não importam: a gabardine
é sempre intacta sob a chuva
Mas recompor-se é uma dor marítima

que afoga também a última chance.
O blefe final é tua vingança
da vida que o amor torna impossível


NA MADRUGADA

No primeiro vento
o tempo cobriu
o espelho

O raio comeu
a cama do som
noturno

O mistério calou
teu corpo ainda
úmido

O amor gelou
a parte mais funda
do forro

Ouvimos um baque
no escuro. Uma estrela
pediu socorro

TRÉGUA

Quem fala em amor numa noite dessas
quando nem o tempo se encoraja
de surgir no horizonte amordaçado?

Quem falou em amor que te apedreje
porque a pedra afagou antes da mágoa
e isso já te basta

Qualquer migalha de amor serve de alimento
qualquer frase de amor, qualquer fermento
faz crescer o pão inaugurando a trégua

HUBBLE

Sou um desses planetas soltos
sem sistema
Longe do abraço circular
da grave estrela

Acompanhado apenas pelo olhar
oblíquo Hubble
A desandar errante como cauda
de cometa

A me arrastar em velocidade
extrema
no cosmo sujo sem jamais
olhar para trás

A única chance de parar é você
levantar-se
desse banco de jardim e dar-me
um beijo

RETORNO - Todos esses poemas fazem parte do meu novo livro Partimos de Manhã, que espera o fim do bocejo das editoras, que não sei o que esperam para publicar. Cada livro meu que permanecer inédito em vida será, no Outro Lado, um puxão no pé de quem deixou para lá e perdeu, de propósito, essa oportunidade.

17 de fevereiro de 2005

AMOR AOS POUCOS

AMOR AOS POUCOS

Nei Duclós


Poucas pessoas conheço

com amor no endereço

Poucas pessoas se lembram

do amor dobrado no lenço


Poucas pessoas confessam

o amor que já fez estrago


Poucas pessoas receitam

aquele amor sem remédio


Poucas pessoas agüentam

quando o amor estremece


Poucas pessoas enxergam

o amor de quebra no espelho


Poucas pessoas conservam

O beijo do amor ardente


Poucas pessoas entendem

a carta que o amor deixa


Poucas pessoas conseguem

Nenhuma delas esqueço


RETORNO - A poesia está sempre de tocaia. Às vezes volta, e nos lembra. O problema é a postagem me obedecer. Quando não interfere com códigos indecifráveis no meio dos versos, insiste em juntar as duas primeiras estrofes. Cada estrofe tem dois versos, mas as duas primeiras insistem em ficar juntas. Mistérios do microworld!

15 de fevereiro de 2005

O CHANTILLY DA LINGUAGEM


Jamais poderia imaginar, dizem os jornalistas da mídia impressa em todas as edições, como se ninguém tivesse a capacidade de imaginar coisa alguma. A não ser, claro, Ronaldo Fenômeno, que imaginou, ainda na infância, casar um dia num castelo, sonho típico de menina. Escolheu Paris, lugar onde amarelou numa decisão de Copa do Mundo, no meio de um namoro mal resolvido com uma alpinista. Para Jorge Kajuru, que volta à TV via SBT, disse que nunca se apaixonara antes, o que deixa um rastro de ressentimento nos filhos que teve com a mulher que foi (ou é), no papel, sua esposa.. O casamento de araque no castelo francês mostra um idiota deslumbrado, fruto da concentração de renda feita à força pelo sistemão, ao qual serve para poder se dar ao luxo de dirigir uma Ferrari numa cidade podre, como fez uns dois anos atrás. E mostra também o nível das ruínas da linguagem, já que, ao alugar 60 limousines e contratar um esquema milionário de segurança, o noivo e sua consorte foram retratados como pessoas discretas por um jornal impresso (porque fingiram se esconder da mídia). Ainda queriam que o Papa comparecesse. Haja. Não há limites para a idiotia.

TALENTO - Ronaldo não é um fenômeno, é fruto do Brasil soberano, ao qual trai com sua postura. Não rolou na favela, tinha uma família e um clube, o São Cristóvão, que o acolheu. Chegou lá criado. Sempre teve talento, por isso se destacou e foi para o Cruzeiro, onde fez História no Mineirão e em outros estádios do país agora pentacampeão. Foi comprado depois que o Brasil o criou e seu talento também não pode ser comparado a fruto do acaso. O dom natural teve ambiente para desabrochar e se consolidar, porque a cultura popular, incentivada décadas atrás por políticas públicas da educação e do esporte, conseguiu florescer como opção de vida. Portanto chamar o Pelé de ET ou o Ronaldo de Fenômeno é negar que o Brasil tenha condições de ser uma nação, capaz de gerar seus próprios craques porque possui uma estrutura de futebol,desde a várzea até o Maracanã. O Brasil não possui craques como possui pedras preciosas, que basta colher, como faz agora a máfia russa.Seus craques vieram de longe, do tempo em que havia educação, higiene e saúde no país que foi sucateado em 1964. O que temos hoje é sobrevivência daquela época, e como a nossa linguagem, está em ruínas. Assim mesmo, é só colocar meia dúzia de garotos brasileiros em campo e todos se deslumbram. Não possuem mais a garra anterior, pois estiolou-se a confiança no país que os gerou. Hoje é moda negar o Brasil, para poder reafirmá-lo na publicidade oficial e privada, meio de faturar em cima do que é apenas lembranca. Toda vez que vejo nossos estadistas, que nem mais de estádios são, levantarem o dedinho para falar neste país, tenho urticária.

PLATAFORMA - O professor Mangabeira Unger gosta de pensar sobre o país e propor soluções. Seu erro é tentar adaptar sua radicalidade aos ventos da ocasião. Foi assim que escolheu essa nulidade que é o Ciro Gomes como alternativa do poder nas últimas eleições presidenciais. Como o professor, todos possuem uma plataforma para o país. A minha é simples. No primeiro dia de mandato, é preciso decretar o fim de todos os impostos, com exceção de um, o imposto de renda sobre a produção e o consumo, na base de 2% no máximo. Desonerar portanto o trabalho, a exportação, a propriedade móvel ou imóvel. Iniciar imediatamente a construção de extensa, gigantesca e tentacular malha ferroviária, a mais moderna do mundo, que pegue todo o país, da metrópole ao ermo. Para isso, será preciso estatizar quase tudo: as empreiteiras (que enriquecerem com o dinheiro do erário), os sistemas de telefonia e energia, a siderurgia. Usar toda a madeira apreendida para a construção de uma frota de navios e barcos para a nossa bacia hidrográfica e os oito mil quilômetros de costa. Construir um estaleiro em cada região, no mínimo. Equipar a maior e mais eficiente guarda ambiental do mundo. Fechar o Incra e o Ibama. Intervir no sistema carcerário, substituindo todos os elementos envolvidos na segurança, e isso serve para a carceragem nas delegacias. Proibir a expansão da criação de gado e áreas não adequadas e eliminar as fazendas existentes nessas áreas. Negociar a moratória e deixar os gringos secos pelos dólares que eles querem de volta. Proibir a plantação de soja transgênica e limitar ao máximo a soja existente. Substituir as áreas cultiváveis que se dedicam à monocultura da soja para a produção de alimentos orgânicos, com destaque para os grãos, especialmente o trigo. Implantar a mais completa e eficiente rede de saneamento básico do mundo, em todo o país, na marra. Contratar todos os técnicos para isso e contar com o trabalho remunerado do Brasil e do estrangeiro.

CONVOCAÇÃO - Para essa tarefa gigantesca, toda a população será convocada. A distribuição de renda será feita pelo sistema bancário estatizado ( deixar apenas uns 20% para bancos estrangeiros), por cartão magnético referente a contas pessoais. Toda a piopulação terá direito a uma cota mínima para a subsistência e o salário então será o plus para o crescimento familiar, jamais para o gasto em primeiras necessidades. Demolir todos os estádios existentes (com umas duas ou três exceções) e reconstruí-los. Trancafiar a folga generalizada da prostituição consentida, do tráfico de drogas e da corrupção. Impedir, À força, os atentados ao sossego público. Destruir fisicamente todos os pedágios e romper os contratos com as empresas que levaram de graça a rede rodoviária mais importante. Recapear, com asfalto e tecnologias alemãs, toda essa rede. Como fazer isso? Pelo uso da força, legitimada pelo voto. E a política? Nada de negociar ministérios (estes, serão tocados pelos técnicos, pelos funcionários de carreira). Nem de negociar votos. Agora já sabem: quando me virem babando na rua, estou aprimorando minha plataforma. Agora diga a sua.

RETORNO - Nasceu minha neta, lanço uma plataforma à presidência, mergulho no chão de Vidas Secas e o retorno é zero. O blog perdeu sua interatividade? É difícil sustentar um monólogo. Quero a volta do diálogo.

12 de fevereiro de 2005

VIDAS SECAS, O HUMANO COMO ÚLTIMA GOTA




Nei Duclós

Não há país em Vidas Secas, há o inferno. O clima e a geografia aliam-se à opressão econômica para expulsar a família que busca a sobrevivência na fuga. O último degrau a que desce o grupo humano é representado pelo sacrifício dos animais domésticos ? o gado, primeiro, depois Baleia, a cadela vítima de um tiro de misericórdia, e finalmente o papagaio, transformado em refeição. Nada mais existe abaixo das pessoas. Elas são a última gota do deserto que não leva a nada. Nesse território varrido pela tragédia, só resta o sol, que engessa o movimento, e o chão calcinado, que tortura tanto o espaço doméstico quanto a estrada sem futuro. Metáfora da perdição dos que buscam a sobrevivência no país que não existe, a narrativa nada oferece a não ser a presença de um homem, uma mulher e uma criança, condenados por um destino que se expressa por um clarão sem tréguas.

SOPRO - Nem a noite vem ao socorro dos brasileiros perdidos na exclusão absoluta. A luz, a mais intensa que alguém pode suportar, serve então para definir o contorno de uma caminhada que não salva os protagonistas, mas produz a revelação de quem assiste. Não é um processo químico da imagem que surge de um negativo invisível, mas a inoportuna claridade que se introduz bruscamente na sala escura e queima o filme com as chamas da perdição. Vidas Secas nos escapa como um segredo que se mantém intacto, porque nos expusemos demais à Verdade, e o que ela produziu não foi assombro nem desesperança, mas a evidência de que somos feitos daquela terra que recusa o barro e, portanto, se nega a estruturar a vida para que nela encontre pouso qualquer sopro de alma imortal. O milagre é que as pessoas que são oprimidas até a redução absoluta do gesto imóvel animam a consciência como uma transfiguração. Vemos do que é capaz o que se conhece por gente, quando nada lhes assiste, nem a mais miserável das misericórdias. Eles insistem no andar, como se fossem tangidos pelo que encontraram depois que a morte lhes tolheu o passo. No cruzar desse umbral, eles chegam até nós com reservas de suor, com palavras obsessivas, com as caras retorcidas por algo que pode se confundir com determinação, mas que é apenas a coragem de quem sabe que nada possui, a não ser a vida ressecada pela vastidão da injustiça. Não se trata de um libelo ou de uma denúncia, mas da queda rumo a uma possibilidade maior do que qualquer ilusão. Nelson Pereira dos Santos queima o filme para sempre quando transforma sua saga num encontro entre o conforto do espectador e a violência do que é exposto. Isso é o que somos, nos diz o Mestre, e iremos ainda mais fundo na negação. Não há volta que nos redima, não há final de sessão que nos aliene, não há memória que se apague. Quando as imagens de Vidas Secas nos perseguem, sabemos que é lá que continuamos a existir, a desafiar o destino com nossa teimosia.

TRASTE - O filme é o olhar que não se esconde. Vidas Secas é o filme que nos recusamos a ver de frente, não porque a luz nos cegue, mas porque a luz nos flagra. Somos trespassados pelo mistério da nossa imobilidade e só o filme fala, como um eremita iluminado pela dor. Descobrimos nesse instante que nenhuma palavra irá apagar a revelação e nem mesmo se inundarmos o deserto com todas as águas que dispomos poderemos fugir do presente indissolúvel desse filme magistral: a jóia indestrutível de uma porta que se abre como um dilúvio sem água nem sangue. É quando vemos o humano reduzido à sua essência: o abandono num universo hostil, a esperança evaporada como a miragem que vira areia, o transtorno da falta de saídas, a loucura de estar vivo, mesmo que tudo conspire para o sumiço do que chamamos vida. Adeus, inocência perdida. Vidas Secas veio para ficar. Somos Baleia diante do fuzil, somos o delírio embaixo do arbusto de espinhos, somos o caminhar em direção ao nada. Nada nos livra dessa herança, a não ser a vontade de ver o que o filme nos entrega: o real como uma fantasmagoria, o pesadelo como um passeio no caos, a responsabilidade deixada para trás como um traste na poeira de um caminho sem volta. Somos a última gota, na paisagem que nos nega.

RETORNO - Nasceu ontem, dia 11, Maria Clara, minha neta, filha de Juliana e Marcos. À equipe do grande obstetra Marcos Leite dos Santos, do Hospital Universitário (HU), aqui de Floripa, a família agradece. O HU é parte indissolúvel do Brasil soberano e honra a medicina do país.

10 de fevereiro de 2005

A INJUSTA VIRADA DO FAVORITO


São Paulo venceu São Caetano por 4 a 3 num jogo de vida ou morte, que nem precisava ser tão disputado, já que se trata de campeonato estadual, numa quarta-feira de cinzas, num dia que teve goleada da seleção brasileira em Hong Kong (o time adversário, doído de tão ruim, não contou com nenhuma proteção do dragão, o deus dos chineses). Mas duas expulsões do Azulão e mais do seu técnico Zetti colocaram fogo na partida. Situações recorrentes se impuseram no emocionante match. Uma delas foram as fulminantes escapadas (que batizaram de contra-ataques) do São Caetano e a outra a pressão irracional e, por quase todo o tempo, ineficiente, do São Paulo sobre o gol guarnecido por Silvio Luís. A eficiência do contra-golpe e a barreira na defesa foram as armas do perdedor; a falta de concentração do time que tinha apenas superioridade numérica (11 contra nove) desenhou o perfil do vencedor. Quem ganhou? O torcedor e aqueles caras que, como eu, ficam de zap na mão procurando o que ver no deserto da televisão brasileira.

LUISÃO - Teve também a volta de Luisão no segundo tempo, jogando no ataque do São Paulo. Dos seus pés saiu um dos gols que ajudaram a definir o jogo. Simpatizo com o grande craque, fulminado pela falta de sorte, e que honrou a camisa corintiana durante alguns anos. Luisão é um sujeito das antigas, ou seja, do cara que se identifica com o time e poderia fazer parte de um país que não se esbagaçasse a cada rodada nem vendesse seus jogadores para a perigosa máfia russa. Quando fazia gols para o Corinthians, batia no peito, na altura do medalhão do clube, e isso significava o espírito de um time que agora está nas mãos de alguma coisa sem raízes, oculta como um mistério oriental. Luisão poderia, até hoje, ser um símbolo do patrimônio do clube que adotou, mas parece que houve problemas nas transações onde se enfiou. Gosto desses jogadores que não convencem inteiramente. O horrível técnico Leão, a arrogância obscurantista a serviço da crueldade e da burrice, o ex-Miss Pernas, disse que Luisão iria gostar de ficar no banco, que é um lugar acolhedor. Isso não se diz para ninguém. Gostei também da volta de Alex para a seleção brasileira. O maior jogador do Brasil, o estrategista supremo, o visionário dos espaços inexistentes no rolo compressor de uma decisão, merece ser titular do time penta-campeão. Fiquei também impressionado com Anailson, do São Caetano, que, de longe, deu um toque inesquecível na bola e cobriu Rogério, o irregular goleiro sãopaulino, que deveria jogar no ataque, já que gosta tanto de chutar a gol (tanto é que no início da partida deu um pontapé na coitada, que se vingou, entregou-se ao adversário e voltou quicando contra a cidadela tricolor). A colocada de Anailson foi tão perfeita que os comentaristas disseram que ele usou as mãos, maneira de definir a facilidade e a doçura com que a bola entrou para as redes. Mas a mão não faz isso. O que faz esse tipo de jogada é a complexidade e a força do pé, que encerra possibilidades infinitas nas suas inumeráveis curvas. O importante é destacar a presença de espírito de Anailson, que ao chutar parece que mirou a linha de fundo, mas sua confiança na estrutura do pé (e o impulso que ele regulou com precisão no momento do chute) levou-o à glória, porque a bola fez as curva mortal e desceu vagarosamente beijando o véu da noiva.

CRIATURA - Por que a virada de 3 a 1 para 4 a 3 foi injusta? Porque o São Caetano tinha merecido a vitória com o gol de Zé Luis, que saiu sozinho do meio do campo e surpreendeu Rogério com um bico dado no meio a uma multidão sãopaulina. Ali tinha se definido o jogo. Mas parece que existe o convencimento interno dos jogadores que se preparam para perder. Havia pressão, mas do outro lado havia sorte, proteção divina. E competência, talento. Mas estava escrito em algum lugar: o favorito vinha para cima com tudo e ninguém impediria aquele desfecho. Há uma espécie de destino nos jogos de futebol. Não deveria. Acredito que haja um espírito de grupo formado pela sintonia entre os jogadores, que se manifesta na vitória e na derrota. Trabalhar essa entidade, forjada na representação do conflito, deveria ser uma preocupação dos dirigentes. Há uma criatura invisível que se forma com o suor da peleja. Se soubéssemos lidar com ela, jamais perderíamos para a Argentina, por exemplo. Os argentinos sabem do que se trata. Eles criam o monstro antes do jogo começar. E o monstro diz: perder para o Brasil, jamais, nem que o mundo acabe. É isso que devemos fazer. Só que em vez de monstro, temos, como espírito da seleção, a espada de Palas Atenas, a guerreira.

9 de fevereiro de 2005

QUAL SEU BICHO NO HORÓSCOPO CHINÊS?


Nenhum, você não é chinês. Quem ganhou o carnaval de São Paulo? Ninguém, não há carnaval em São Paulo. Morei 30 anos lá e nunca vi carnaval. O que há é dinheiro público aplicado em gangs rivais, que colocam na rua um arremedo de escola de samba ao som de uma bateria com cadência quase militar. As gangs disputam o butim a socos, berros e ameaças. Possuem a linguagem e a estampa dos bandidos. Por que a Velha Guarda da Portela foi impedida de desfilar? Porque o tempo disponível foi gasto com as bucetas de ouro, que representam a deformação (o silicone) de uma festa manipulada pelo patrocínio falsamente privado. Ou seja, quem paga a exclusão é o dinheiro dos impostos disfarçado em dinheiro vindo das empresas (via isenção privilegiada sob a capa do que chamam de cultura). Não há dinheiro privado no Brasil, terra da derrama. Todo dinheiro vem do povo e em seu nome é desviado.

ENREDO - Qual o melhor enredo? Não há enredo, há interesses. Empresas de combustível e energia elétrica patrocinaram a Mangueira, que versou na passarela sobre o que essas empresas vendem. Quando o carnaval de Salvador acaba? Quando a mídia e as grandes marcas de cerveja quiserem. Por que o paranaense que tentou entrar com grossa pesagem de cocaína em pranchas de surf na Indonésia é chamado de surfista e não de traficante pela mídia? Porque o rapaz pertence ao chamado grupo da tigrada, aqui intocável. É justo que o governo brasileiro implore perdão para o governo indonésio? Pelo bem da família, é. Pela soberania da nação de rabo levantado para o mundo, não. Vi uma vez na TV dois megatraficantes italianos atrás das grades, às gargalhadas, porque sabiam que iam sair pela porta da frente. Por que os iraquianos em luta contra a invasão americana são chamados de rebeldes e não de iraquianos? Talvez porque o paradigma são os romances de Emilio Salgari, do século 19, que contam as aventuras de navegantes europeus no Oriente. Os nativos em armas são chamados (na tradução para o português) de insurrectos. As idéias são implantadas pelos escritores e pensadores orgânicos (para usar o conceito de Gramsci, tão em voga na pseudo intelectualidade da imprensa) e ficam para sempre, pelo menos no Brasil. São rebeldes porque nossa televisão é mais realista que o rei. Venceu as eleições americanas com Bush e agora exerce o poder planetário (não tem para ninguém no mundo todo).

COOL - Para onde vai o dinheiro da derrama? Para as contas pessoais. Um prefeito colocou na praça todo o maquinário sucateado da prefeitura. Uma obra simples leva 15 anos para ficar pronta. Todas as estradas estão desmoronando. Um pé dágua derruba pontes. A engenharia brasileira está em baixa, talvez não se formem mais engenheiros no país que acabou com a educação. Por que o país oficial (e em conseqüência, parte da população) quer dar tanto para os gringos? Porque odeia a si mesmo e sente vergonha de ser brasileiro. No Diário Catarinense, a foto de um turista idoso americano, de óculos e bengala, sendo esfregado de corpo inteiro por duas mulatas praticamente peladas, fantasiadas para o carnaval, diz tudo sobre o Brasil. Por que ninguém se insurge contra isso? Porque pega mal, reclamar é coisa de pobre. Já que você pertence à aristocracia virtual da chamada tigrada, você está sempre de óculos escuros olhando para frente, dando um sorrisinho de lado tipo Elvis Presley, esticando o pescoço em direção à estrada e os braços bem espichados ao volante, enquanto é observado por gente bonita. O importante é fazer iuhúu a cada segundo, levantar os braços freneticamente e participar das coreografias coletivas que representam a submissão das massas ao massacre real de vidas proporcionado pelos podres poderes. Por que escrevo essas coisas? Certamente porque sou um retardado mental, um ressentido, e em vez de me alegrar pelo fato de sermos o rabo do mundo, fico sonhando com algo impossível, a volta do Brasil soberano.

VIRTUDE - Como ressuscitar o Brasil soberano? Pelo exercício diário da virtude. Pois somos uma nação de escravos não porque a escravidão herdada da Colônia nos corrompeu, mas porque abrimos mão da virtude. Não a virtude do Falso Bem, da repressão milenar, mas a virtude como fruto da coragem. E desistimos da forma mais eficiente possível: negando em nós a grandeza que deveria ser nossa vocação. Escolhemos o caminho oposto: deixamos de lado a responsabilidade de dirigir o país para colocá-la nas mãos da tirania. Tivemos várias chances de reverter essa situação, mas nos recolhemos na exaustão da nossa desesperança e deixamos que a liberdade fosse assumida em sua casca pelos próprios opressores, que se travestiram com o manto da salvação. Tudo fizemos para que esse destino se cumprisse. Não reagimos quando deveríamos lutar (1964), deixamos para lá quando o preposto da ditadura assumiu sem nenhum amparo legal (Sarney), escolhemos o filho dileto do estamento burocrático e político (Collor), depois invocamos a falsa sabedoria oportunista (FHC) e finalmente depositamos toda nossa fé numa flor cevada na estufa da prepotência (Lula), acreditando que ele sozinho iria nos redimir, enquanto voltávamos para a casa cheios de bandeiras e palavras de ordem.

8 de fevereiro de 2005

A BEIJA-FLOR NO ASFALTO




Foi na era Vargas que as escolas de samba começaram, por orientação do governo, a representar temas de História, especialmente as do Brasil. Foi uma idéia tão brilhante que até hoje não foi abandonada. Tornou-se marca registrada do desfile, que na edição de 2005 acabou nesta terça-feira com o tema Civilizadores e civilizados, encenado pela Beija-Flor de Nilópolis. Em plena manhã de Carnaval, as modernas Antropologia e História são espezinhadas pela ignorância explícita, pelo império dos lugares comuns e pela ingenuidade intelectual a serviço do anti-Brasil. Samba do crioulo doido, dirão, samba-enredo não é para ser levado a sério, deixe para lá. Não devemos deixar nada para lá. Carnaval não é inocência, é reiteração de hábitos e idéias num país que orgulha-se de movimentar R$ 10 bilhões em turismo sexual gay, como foi alardeado pela imprensa, de ser a Meca da tesão mundial e de se consolidar como o rabo do mundo. Mas nosso tema é a Beija-Flor, que se apresentou por último na chamada Marquês de Sapucaí, nome que substitui o Sambódromo, obra de Leonel Brizola.

PASPALHÃO - Ferreira Gullar revela-se um paspalhão nas suas crônicas dominicais na Folha. Aquele que é um dos principais poetas do Brasil e já foi um teórico da cultura ( coisa que da qual ele abdicou num dos seus textinhos) referiu-se ao Sambódromo como se fosse uma obra do acaso, como se alguém anônimo tivesse criado essa solução definitiva para os desfile das escolas de samba. Ele cita apenas o Oscar Niemeyer ( o estalinismo como loja de brinquedos ) e deixa de citar, de propósito, Darcy Ribeiro e Brizola. É assim mesmo, eles jamais vão desistir de enterrar qualquer clarão do Brasil soberano. O que a Beija-Flor fez com a História não está no gibi. Berrou na passarela que os jesuítas vieram aqui civilizar os índios, o que é de uma grosseria sem fim, contrariando tudo o que exaustivamente se escreveu nos últimos anos sobre a especificidade das culturas, sobre a barbárie que foi a destruição genocida dos povos que habitavam estas terras antes da chegada dos europeus. Houve a substituição de uma cultura pela outra e não uma ação civilizadora. A letrinha do samba (gritam civilizaaar metendo o baixo ventre para a frente e para trás, no gesto típico de hoje, em que a baixaria explícita comanda) também tira um toco do Tratado de Madri, que justificou a destruição dos Sete Povos das Missões. A obra jesuítica dos espanhóis foi um trabalho feito com as sobras dos povos aniquilados. Os Sete Povos, no entender de Portugal, ajudavam a implantar em solo americano a hegemonia da Espanha. Foram trocados pela colônia portuguesa do Sacramento, estrategicamente mais importante, pois dividia o Prata. Os portugueses abriram mão daquele enorme estuário (o verdadeiro grande rio do sul) e tocaram os espanhóis para o outro lado do rio Uruguai. É uma história complicada, que não pode ser tratada com a irresponsabilidade de uma mega-representação que, no fundo, serve para interesses nem tão ocultos assim. Quais são esses interesses? O maior deles é a partilha do Brasil.

PUREZA - Vejam a continuidade do samba-enredo. Os imigrantes europeus são colocados como gestores da fartura, enquanto os escravos pretos são representados só pelo cativeiro (ou pela sua existência na África), e jamais pelo sua real contribuição ao país, que foi o trabalho. Assim, os imigrantes europeus (que estão há centenas de anos no Brasil, mas ainda se sentem, com muito orgulho, estrangeiros) estão relacionados com o trabalho produtivo e feliz, enquanto o negro com a escuridão do cativeiro e à preguiça. A História mostra o inverso. Quem fez o Brasil foram os negros africanos, que aqui se aculturaram, ou sejam, perderam sua identidade original e formaram, junto com outras raças, um outro povo, a meta-raça de que nos fala Gilberto Freyre, algo que está relacionado com a cultura e o comportamento não com o sangue. Os imigrantes foram chamados para branquear a nação (fizeram o mesmo na Argentina, lá funcionou, os pretos sumiram milagrosamente de um momento para outro; quem resolverá esse enigma?). Sou alemã cem por cento pura, me disse uma comerciária esses dias. Repliquei que cem por cento puro só cavalo árabe e chamei a atenção para o nariz de batata dos falsos alemães brasileiros, presença genética notória de índio e negro.

RISOTA - O que tem tudo isso a ver com a partilha do Brasil? O que se confirma, o que se reitera a toda hora e em toda a parte é a inexistência do Brasil soberano. Nosso país seria apenas uma obra de europeus que aqui vieram trabalhar a nosso favor, a nos civilizar, portanto não temos direito nenhum à existência como nação. Lutamos todos os dias para termos o território que hoje dispomos (até quando?), mas o que se diz é contrário, que tudo é obra do acaso, ou dos que vieram para cá. Precisamos nos entregar para os outros para que nos aceitem, para que possamos fazer macaquices e eles possam então levar tudo. Já levaram ouro, metais e pedras preciosas. Já levaram estatais e exploram todos os serviços básicos. Agora vão entrar com tudo na infra-estrutura sucateada de propósito para continuar lucrando. Nossa dívida é impagável e vamos nos endividar até não poder mais. O prazo que nos deram é 2025, quando vencem as letras do tesouro nacional. Se eu tiver sorte, não estarei mais por aqui, mas vou puxar as pernas dos traidores. Uma coisa que me irritou profundamente foi essa Leci Brandão dar uma risotinha quando falou em chimarrão. Os ignorantes da mídia se acham os imperadores da cocada preta. Um detalhe da História que passou ( e não tinha outro jeito, porque aí o desconhecimento é geral) é a existência de outras tribos nos pampas, afora os guaranis. Charruas e minuanos foram aniquilados, mas deixaram descendência. Minha mãe, e portanto eu, era um dos exemplares misturados dessas raças. Era morena, alta, filha de mãe brasileira com nome italiano, e de pai brasileiro com nome português. Mas sua bisavó era uma índia charrua que muito menina foi convocada à força para a procriação. Chega de incensar japonês, italiano, alemão. Chega de vender jogador para a máfia russa. Chega de exportar proteína (carne e frango), de alimentar porco na Europa. Chega de plantar soja, de fabricar pobreza, de roubar tudo o tempo todo. Chega de contrabandear pedras preciosas. Chega de levar ouro, ferro, manganês. Chega de pedágio, de matar gente em estrada, de repetir todos os dias que trem é coisa do passado. Chega de ditadura.

RETORNO - Recapitulando: os negros do Brasil deixaram de ser africanos há séculos, mas reivindicam essas raízes como identidade (não é mais, ou cor da pele conta? ué, isso não é racismo?); os alemães e italianos deixaram de ser europeus há mais de um século, mas acham que ainda são os próprios (não são; queiram ou não, são brasileiros, mas não brasileiros de araque, pró-forma, para fazer gênero, dizer sou brasileiro e continuar achando que são alemães; são brasileiros mesmo, e disso não podem fugir). Brasileiro de copa do mundo não vale. Brasileiro ufanista, reacionário, estamos cheios. Brasileiro para justificar grilagem de terra e exploração de mão-de-obra barata, basta. Quero dizer brasileiro, como quem diz chega de despotismo. Brasileiro como opção libertária. Mas não como pose de libertador das massas. Como opção libertária, ou seja, sem levar nada com isso. Brasileiro como prejuízo, como sonho, com cheiro de terra molhada pela chuva.

6 de fevereiro de 2005

HITCHCOCK, O TERROR DA VIDA NORMAL


Alfred Hitchcock demoliu a idéia de que existe conforto no mundo ordinário. O vizinho que esquarteja a mulher e enterra a cabeça no jardim, a tesoura que serve como arma para um crime hediondo, os pássaros inofensivos que tornam-se assassinos, o pequeno avião que pulveriza lavouras fazendo rasantes na estrada deserta para matar um inocente, todas essas situações inesquecíveis que ele inventou são recorrentes neste autor que, ao ser excluído na sua formação, por ser gordo e desajeitado com as mulheres, usou o cinema como vingança, mas de maneira tão genial que tornou-se um alerta. A partir dela, foi preciso prestar atenção nas arapucas do corriqueiro, armadilhas mortais que denunciam a loura bonita que no fundo era outra, a mãe pranteada que enlouqueceu o filho.

Ver, em Hitchcock, é pesquisar as aparências e descobrir nelas a selvageria oculta. Seu cinema formatou-se no século das grandes guerras, em que a sociedade resultante fez tudo para colocar um verniz em cima da barbárie, mas que não conseguiu esconder desse olhar atento o terror que aflora na sala, no quintal, na pequena cidade do interior.

ARDIL - A normalidade, em Hitchcock, é criminosa. O marido que vai ao clube jogar pôquer armou a lâmina nas costas da esposa e para isso usou de todos os ardis para escapar ileso. Seus filmes são o esforço que heróis solitários fazem para descobrir a verdade, remando contra a corrente das evidências e não se deixando iludir pela armação do cenário. Sua obsessão pelo esclarecimento de situações comuns que escondem um cadáver no fundo do baú chega ao extremo de colocar a narrativa a serviço do olhar ininterrupto.

As cenas não se resolvem, continuam, cada vez mais intrigantes e intensas. O suspense não cede, se aprofunda. A respiração não volta ao normal, se sufoca. O que diz com sua presença ocasional em todos seus filmes é a necessidade de prestar atenção nesse jogo de espelhos, pois quando menos se espera, sua silhueta aparece tomando um ônibus no fundo do plano, carregando um cachorro disfarçado de mero passante. A chave para entender esse seu truque é treinar o olhar do espectador para o que se esconde nas tentações da cena. Uma festa íntima pode ser apenas o álibi para cometer um crime, um passeio noturno é o carregamento de um corpo, um arrulho de pássaro esconde uma revolta animal. O herói que desvela o segredo é uma pessoa comum imersa em seu conforto que é alertado antes dos outros e é obrigado a tomar a iniciativa de encarar o terror de frente.

Seu trabalho é convencer os outros, como faz o fotógrafo James Stewart em Janela Indiscreta. A revelação que torna-se clara para um olhar solitário precisa ser compartilhada para evitar o pior. Enquanto isso não acontece, ele passa por louco, até que o desfecho coloca todo mundo contra a parede. É quando os pássaros rebentam as paredes, o corpo cai, o vizinho vem acertar contas. A maldade de Hitchcock é nos devolver o conforto no final, mas nos assombrar com suas sugestões depois da sessão, quando suas imagens nos perseguem e nos fazem ver que ao nosso redor alguém conspira para nos eliminar.

MISTÉRIO - Você não vive no melhor dos mundos e não é porque você é infeliz, ou frustrado, ou saiba que vai morrer. Você está condenado porque aceita as aparências como se fossem definitivas. Hitchcock escolhe a dedo seus atores, que sintetizam essa normalidade que ele quer denunciar. Não existe nada mais bem comportado do que Stewart, nada mais atraente do que Kim Novack, nada mais simpático do que Cary Grant. Pois eles estão dentro do enredo mortal e se debatem para nos dizer algo.

O mistério está em coisas prosaicas como um cabelo bem produzido, um rosto amigável, uma gaivota empoleirada. Ali, naquele cantinho do Falso Bem, dorme um monstro. Ele suspira de vez em quando e então trememos na cadeira. Lembro que não pude ver nenhum dos seus filmes antes dos 18 anos. Olhava os cartazes, como se dizia, e neles tentava adivinhar, em vão, alguma coisa. Vi depois, quando já não conseguia me assustar ta facilmente e já tinha lido o suficiente para me manter alerta. Assim mesmo, quando o cachorrinho que descia num cestinho de palha começava a farejar algo enterrado e esse algo é a cabeça da mulher assassinada, um calafrio quase me expulsava do cinema.

Hitchcock filmou o terror para pessoas como eu, que fogem desse tipo de tema. Vamos ver a loura, o detetive, o casal, jamais o horror. Então somos colhidos por uma tempestade e não podemos mais sair da sala. Você está frito por fugir do que o assusta, diz Hitchcock. Venha ver o que preparei para você. Sofra de vertigem e suba essas escadas até saber do que se trata, fique imobilizado diante de uma cena macabra, cruze um corredor de aves antropófagas. Venha até o meu olhar insano, nos diz Hitchcok, e descubra o que você deixou de lado como se fosse uma bobagem e nada mais é do que um plano terrível para acabar com tua raça.



RETORNO - 1.Imagem desta edição: o Mestre dirige Rod Taylor numa cena de Os Pássaros. 2. Ricardo Peró Job me envia um conto sobre uma falsa assombração, Virson Holderbaum volta de uma viagem ancestral, Urariano Mota assesta de novo as baterias com seu texto revelador, Jésus Gómez me envia uma das mais belas cartas que já recebi, José Renato Faria me pauta sobre Hitchcock, novos leitores se manifestam no site, e o recesso do Diário da Fonte acaba. Alguns dias de sufoco servem para deixar Outubro em compasso de espera, mas sempre chega o dia de retomar a palavra, como o sol que se anuncia pela barra de luz muito diáfana no leste cheio de promessas.

AMANHECER DE CARNAVAL




Queria descrever o fim dos bailes do Clube Caixeral, em Uruguaiana, em que íamos todos os foliões sobreviventes para a rua atrás da banda e depois ficávamos em volta da estátua do Barão do Rio Branco, que num pedestal de mármore vela pela paz na diferença naquela fronteira. A alegria de ver a barra do dia, enquanto nossa roupa imunda de suor pulava por si só, já que nosso corpo exausto não obedecia mais nada nem a ninguém. Toda a bebida se evaporava com aquele pular incessante. Mas há tempos estou exilado do carnaval. Urariano Mota fala sobre esse sentimento na crônica publicada no site La Insignia e que transcrevo abaixo. Ao mesmo tempo, sou convocado por José Renato Faria a escrever sobre Hitchcok. Existe medo das gaivotas em meu romance, Zé. Os pássaros estão chegando, disse eu num poema. Os pássaros estão chegando para explodir o veio escondido da terra.

Carnaval indiscreto

Urariano Mota

Sentado aqui, enquanto os blocos passam na rua, enquanto os filhos saem para a alegria, que, por supuesto, não encontram em casa. O som dos metais, o chamamento à desordem é uma ordem. As fantasias e os mascarados passam como os navios e os trens passam, como o gozo proibido e negado passa. A música do frevo estoura em todo o ar e paisagem e vista como uma perseguição. Sentado aqui, assim sentado, sinto-me como o personagem de Hitchcock, o fotógrafo L. B. Jeffries de Rear Window, título que se transformou em Janela Indiscreta em português.
A vida é irônica, não sei se já perceberam. No fim de 2004, eu disse à mulher e aos filhos, como todos os anos: "O próximo carnaval eu não brinco. Chega! Quero distância desse barulho", e a trincar os dentes, acrescentei, como todos os anos: "eu não suporto mais tamanha agitação. Chega!". Deus me ouviu. À sua maneira me ouviu: aqui estou, longe da folia, conforme o inicial desejo, mas sob estrita recomendação médica, sob incapacidade absoluta de pular, de saltar, tão frágil quanto o homem de vidro, em que se transformou O licenciado Vidraça. Jesús Gómez, esse impenitente otimista, já me havia advertido, "cuidado com o que desejas, amigo - o desejo é uma força, tão grande ou maior que La Insígnia". Mas o que ele não disse é que o desejo dos desastrados se realiza sempre numa tradução, porque vem conforme a natureza dos desastrados, desastradamente. "Este ano eu não brinco", disse, e os deuses me ouviram.
Não sei se os santos são muito sábios, se os demônios são absolutamente infernais, se a astúcia do real é o outro nome do paradoxo. Ouço agora de uma canção na rua, "neste carnaval, quá-quá-quá-quá, meu prazer é gargalhar". Ouço e o paradoxo é: agora que não posso sair, brincar, pular, beber, beber até cair, agora que tenho a paz do recolhimento, agora que ganho o privilégio de ser evitado pelos alegres foliões, justamente agora sinto uma falta extraordinária do carnaval. Neste momento em que posso ficar em casa a ler e a ouvir música suave, ah, como desejo "Olinda, quero cantar", como me acende o desejo de estar na multidão, com os metais a gritar o mais alto frevo, ah, como desejaria receber cotoveladas e empurrões à altura do rim, do ventre, do fígado! Ah, como e quanto desejaria mergulhar de cabeça no álcool, na cachaça, no sol quente, no azul luminoso, mergulhar até virar éter, lança-perfume, porque forte é a consciência do quanto é breve e estúpida a nossa existência.
Chega de lamentos. Brinquem, pequem, bebam por mim, por todos nós, amigos. No próximo carnaval nos encontraremos. E para que os deuses não traduzam errado esse desejo, acrescento: nós nos encontraremos em Olinda e no Recife, vivos e saudáveis. Jesús virá da Espanha, Nei, de Santa Catarina, Michael Kegler da Alemanha, Fabio Germinario da Itália, a turma da infância, do Colégio Alfredo Freyre, a turma do sentimento de 1970, do nosso coração, e todos ficaremos bêbados, saudável, irremediável e orgulhosamente bêbados. Quá, quá, quá, quá, até quarta-feira de cinzas. Sem ironia, seus deuses filhos de uma puta.

1 de fevereiro de 2005

O ENIGMA ROSEBUD


Ninguém decifra o enigma Rosebud em Cidadão Kane. A solução da charada morre junto com o personagem , fechando o círculo onde se encerra uma vida privada, a única com existência real, já que o perfil público do homem que construiu um palácio de Mil e Uma Noites é pura representação, tragédia e deboche. Chamá-lo de cidadão é apenas uma ironia, pois se tratava de um déspota, que usou a riqueza para ludibriar a democracia. Disseram horrores sobre o que significa Rosebud, algumas impublicáveis, como a que se referia ao que a amante de Kane trazia encerrada nas vestes de luxo. Mas a complexidade do enigma é a sua simplicidade: Rosebud é uma palavra, gravada num brinquedo da infância e foi proferida na hora da morte, quando tornou-se uma bolha de vidro que rola pelo chão para ocupar aparentemente a periferia de um drama, quando na verdade é o seu centro oculto e indevassável. Por ser uma palavra que ninguém decifra e não um objeto, Rosebud é a essência de uma impossibilidade: a de o espectador jamais fazer parte do filme que o exclui, mesmo que saia do cinema com a impressão que entendeu do que se tratava. Essa armadilha, a mais genial da história da sétima arte, transformou Orson Welles no mais cultuado cineasta do mundo e fez sua obra-prima ocupar o topo de todas as listas dos melhores filmes de todos os tempos.

TRENÓ - O plano final, em que o trenó da infância queima junto com a sua palavra de batismo, é a ilusão maior desse gênio que dedicou a vida a enganar seus contemporâneos para poder iluminá-los. Ele cercou-se do imaginário das massas, dos discos voadores à riqueza excessiva, para ocupar o papel do mágico que ilude a percepção da platéia e arranca aplausos pelo que é percebido no primeiro olhar, sem nunca revelar que o melhor fica para depois da sessão: a reflexão obsessiva sobre o que foi visto. É por isso que Cidadão Kane não abdica da sua posição de filme maior, porque sempre haverá algo a dizer sobre o que foi concebido no espaço sagrado de uma arte imortal, lá onde os deuses brincam de Criação. Tudo o que é resgatado na biografia de Kane vira lixo e ficamos sós com a sensação que nos foi transmitida: a de que a verdadeira alegria de viver está no deslumbramento primordial do olhar não contaminado pela morte. Rosebud é a palavra que rola junto com o trenó sobre o cenário gelado de um mundo indiferente e só ela tem a chave de uma felicidade para sempre perdida. Não tive a sorte de ver o filme na hora certa, quando eu ia ao cinema por determinação e destino, esse paradoxo que carregou minha geração para a a revelação e o assombro. Feito em 1941, sete anos antes de eu ter nascido, só tive contato com a enigma muito mais tarde, quando fui ver o filme obrigatório que todos citavam. Mas não tinha sido a primeira vez que vira Welles. Antes disso, eu fora sacudido para sempre do meu sono cultural com o maior dos pesadelos já criado no cinema, O Processo, baseado em Kafka.

KAFKA - O que impressiona em O processo é a passagem entre um cenário e outro, numa continuidade sem fim, quando somos arrastados para uma prisão. Não há ruptura entre cenas e somos deslocados à força por lugares gigantescos. Somos massacrados pelo escritório ocupado por mil mesas com máquinas de escrever, em que Anthony Perkins, esse ator do medo e da repressão, caminha para sua maldição. De lá vamos para lugares majestosos cheios de pessoas acusadoras, mas antes passamos por um flagrante doméstico de uma mulher lavando roupa. O que quer nos dizer Orson Welles com essa punhalada mortal em nosso vício de ver? Que estamos presos numa cela muito pequena, vazada por onde entra o riso do Mal, e somos convocados para a destruição em lugares que deveriam ser o da sobrevivência. Queremos acordar para nos salvar, mas se acordarmos, fatalmente descobriremos que nos transformamos num gigantesco inseto. Para mim, Welles chegou antes de Godard e o toda a vanguarda que o cercava, provando que o cinema poderia ser outra coisa. Estávamos imersos no sono da sala escura, achando que mudar significava apenas migrar para um outro tipo de filme, como faz hoje a indústria cultural. Passar do faroeste à aventura e à comédia romântica eram as opções daquela época, limitação que voltou com tudo depois que os grandes cineastas se retiraram de cena. Welles rompeu com essa rede e tremeu tudo o que nos inspirava até então. O Processo me levou à leitura de Kafka, porque a literatura sempre foi a fonte do melhor cinema. Toda uma obra cinematográfica dedicada a apenas uma palavra, Rosebud, é a prova de que a alfabetização é a porta que se abre para o infinito e tudo o mais se rende a ela.

XANADU - O palácio construído por Kane é uma coleção de brinquedos. Ele procurou desesperadamente reproduzir o sentimento perdido, mas em vão. Morreu dentro da sua prisão, amargando a saudade daquilo que o transformava em ser humano, portanto, o salvaria. Tinha virado uma casca de luxo e é esse superfície que é resgatada ao longo do filme. A profundidade daquela vida escapa à obra, que ao se afastar do núcleo vira de cabeça para baixo toda a dramaturgia tradicional, pois o que foge à trama é o seu principal acontecimento.