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20 de fevereiro de 2005

A DESPEDIDA EM CASABLANCA


Nei Duclós


A última cena de Casablanca não é um desfile de chapéus de um melodrama barato, como querem as imitações, as clonagens e as homenagens feitas depois que o filme tornou-se um clássico. A intensidade da cena vem da surpresa de Ingrid Bergman diante da decisão de Humphrey Bogart de despachá-la de avião junto com o marido. O cinema daquele tempo não era um jogo de cartas marcadas, como o de hoje, em que as celebridades exibem a falta de talento a serviço do megamarketing. Era um ofício duro, em que era preciso morrer em cena.

Hoje, tempo do eterno presente, todos se sentem imortais, mas Bogart e Bergman sabiam que iam morrer naquele momento definitivo das suas vidas. É essa certeza que faz do desenlace um momento supremo do cinema. Ricky renuncia ao amor, que está em desvantagem devido ao tempo transcorrido, à situação adversa e aos hábitos adquiridos na longa solidão. Ingrid vê desabar seu sonho de retomar o que tinha perdido para sempre.

Era tarde demais: ela tinha selado seu destino anos antes, ao abandonar seu amor numa plataforma chuvosa, por meio das palavras de um bilhete que se desmancham na tormenta. São destinos que se revelam por meio de um acordo no aeroporto noturno, em que a única luz vem do olhar duro do homem que quebra o encanto, e a única sombra é a que pousa no rosto da mulher derrubada pelo adeus. Essa confluência torna Casablanca a obra-prima de um cinema focado no sentimento que perdeu o trem da História, mas que, pela sua determinação trágica, conserva a força que move os protagonistas em direção à eternidade.

SEDUÇÃO - A canção inesquecível, As times goes bye, é o fruto proibido do paraíso criado por Ricky. Enquanto a terra entrega-se à barbárie ( a Criação sem subterfúgios, puro assombro e indiferença) o reduto do seu bar sobrevive por ser um território neutro na guerra. Tudo é permitido: o jogo de pôquer entre inimigos, o contrabando de passaportes, a prostituição, o alcoolismo. A única lei é não permitir que se toque essa melodia.

A mulher, a estranha nesse paraíso inventado pela masculinidade, transgride a regra por meio da sedução (toque, Sam). Seu objetivo é resgatar o amor perdido, o sentimento que se escoou pelo ralo. Mas a conseqüência do seu gesto é a surpresa do homem entocado, recolhido ao exílio depois de ter sofrido a traição. A canção leva o olhar de Ricky para a presença da mulher, que desmascara assim aquele antro do ressentimento. O que desperta não é o amor insepulto, mas a vingança. Vingar-se é a obsessão do heroismo avesso aos bons sentimentos.

Ricky no fundo despreza o patriotismo, fonte da guerra, porque nenhum amor à bandeira chega aos pés do amor por uma mulher. Mas evitar o Falso Bem (as patriotadas, os missionários salvadores) não significa furtar-se ao engajamento. Todo o tempo o herói precisa agir contra a tirania sem revelar suas intenções, porque sua carcaça é definitiva e jamais poderá ser flagrado pela sua extrema fragilidade, que é o amor traído. Humphrey Bogart, em Casablanca, é a segunda chance de Adão: ele já conhece as artimanhas de Eva e faz de conta que cai novamente na armadilha da sedução. Obedece a mensageira da serpente (que quer salvar o marido e não retomar o amor) e a atrai para o abismo.

Sua cartada é que, nessa troca de blefes, Eva acaba cedendo ao que tentava evitar e enche-se de esperança. Adão se vinga ao renunciar ao amor jogando com o mesmo par de ases com que foi excluído: ele também tinha uma missão a cumprir, como ela, ao abandoná-lo. Ela tinha desistido em favor de uma tarefa vestida de nobreza, mas nua de sentimento. Ele faz o mesmo, mas ninguém precisa saber disso.

PARIS - A dupla renúncia, primeiro dela, depois dele, coloca o amor em Casablanca num espaço mítico. O amor não pertence a eles, mas ao tempo, que joga as cartas definitivas. É o tempo que promove o encontro e também o desenlace. Por pertencer ao tempo, o amor só pode ser vivido pela memória. Teremos sempre Paris, diz Ricky, numa das mais belas frases finais da história do cinema.

Teremos sempre Casablanca, o filme que ousou dizer o nome desse amor sem limite, que nos arrebata quando nasce, que nos destrói quando torna-se impossível, que nos surpreende por ser eterno, e que guarda uma esperança: já que teremos sempre Paris, é porque teremos sempre conosco a verdade. E a verdade identificada com o amor (e não com as bandeiras perecíveis) é a arma que nos defende do aniquilamento. Houve amor um dia na guerra que matou 150 milhões de pessoas. Todos tem direito a retomar o que um dia brilhou em Paris: o amor sem identidade, fruto de Cupido, o deus criança que usa flecha num tempo de canhões.

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