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19 de fevereiro de 2005
CASABLANCA E OUTROS POEMAS DE AMOR
Toque, Sam, toque a canção que nos transporta, pela memória, ao amor sem identidade, que rompeu-se numa estação de trem na véspera da guerra. Resgate o que nos foi negado neste bar dividido, que é o retrato do limbo, que acena com o céu, mas tem um pé no inferno. Atraia a virilidade ferida de morte, diante do esplendor da mulher que amou por destino, e hoje se recolhe à missão vestida de nobreza, mas nua de sentimento. Toque a barra do vestido desse filme inesquecível, que o artesão Michael Curtiz nos legou guiado por Cupido, esse deus criança que usa flecha num tempo de canhões. Revele o rosto destruído de Humphrey Bogart, o último homem sobre a terra, inconformado diante de Ingrid Bergman, o mais impressionante e luminoso rosto das filhas de Eva. Traga-nos o poema em forma de soneto para que possamos, como Rick, reencontrar o que nos foi negado e, como ele, renunciar à felicidade neste vale de lágrimas. Apresente-se, Casablanca, como o filme que jamais deixaremos de ver, porque lá enfim sabemos o que nos falta sempre, nesta passagem sem sentido pela terra, a não ser que conheçamos a glória do amor, esse dom que nos transtorna, por ser o único alimento a que não podemos renunciar. Libere mais poemas de amor, esse ofício sem futuro, para que Casablanca fique cercado do mistério que é sentir-se vivo num universo em ruínas.
CASABLANCA
Nei Duclós
Só amor resgata tua essência
dispersa no exílio deste bar.
Só um rosto é capaz da violência
de mudar teus hábitos, e despertar
Paris invadida pelo som de um anjo.
No piano, o passaporte para o dia
submerso no ódio e a morte lenta.
Ela voltou para devolver a vida.
Os tiros não importam: a gabardine
é sempre intacta sob a chuva
Mas recompor-se é uma dor marítima
que afoga também a última chance.
O blefe final é tua vingança
da vida que o amor torna impossível
NA MADRUGADA
No primeiro vento
o tempo cobriu
o espelho
O raio comeu
a cama do som
noturno
O mistério calou
teu corpo ainda
úmido
O amor gelou
a parte mais funda
do forro
Ouvimos um baque
no escuro. Uma estrela
pediu socorro
TRÉGUA
Quem fala em amor numa noite dessas
quando nem o tempo se encoraja
de surgir no horizonte amordaçado?
Quem falou em amor que te apedreje
porque a pedra afagou antes da mágoa
e isso já te basta
Qualquer migalha de amor serve de alimento
qualquer frase de amor, qualquer fermento
faz crescer o pão inaugurando a trégua
HUBBLE
Sou um desses planetas soltos
sem sistema
Longe do abraço circular
da grave estrela
Acompanhado apenas pelo olhar
oblíquo Hubble
A desandar errante como cauda
de cometa
A me arrastar em velocidade
extrema
no cosmo sujo sem jamais
olhar para trás
A única chance de parar é você
levantar-se
desse banco de jardim e dar-me
um beijo
RETORNO - Todos esses poemas fazem parte do meu novo livro Partimos de Manhã, que espera o fim do bocejo das editoras, que não sei o que esperam para publicar. Cada livro meu que permanecer inédito em vida será, no Outro Lado, um puxão no pé de quem deixou para lá e perdeu, de propósito, essa oportunidade.
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