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25 de fevereiro de 2005

OS PRISIONEIROS DA CRIAÇÃO



Pegue um livro em qualquer página. Lá está descrita uma cena e os personagens estão imobilizados naquela ação, a não ser que você siga a leitura. Você chega no final e tem a história pronta na cabeça, mas cada criatura continua lá, fazendo o mesmo gesto para sempre, preso pela palavra e a posição da narrativa. Assim também no cinema. Os fotogramas são imagens paradas que só se movimentam para criar a ilusão do movimento (sou do tempo do fotograma). Acaba o filme, fecha o livro e a mágica se desfaz. Nosso acervo cultural é um monte de memórias fugitivas que serão lembradas até certo ponto. Depois tudo acaba, como um sopro num castelo de cartas. O que permanece mesmo é um quadro, único na sua exposição permanente, existente mesmo que esteja fora da percepção de todos. A pintura e a escultura estão prontas, são seres concretos, enquanto a literatura e a sétima arte dependem de manipulações externas. Você leva Van Gogh para baixo da cama, mas não adianta ter Godard guardado no armário, ou Conrad na estante. Van Gogh existe, independente de você. Já o pobre do Jean Luc ou o gênio de Joseph são magníficos que inexistem se não houver a mão que folheia, ou a que passa o filme.

AVIADOR - A única maneira de soltar esses prisioneiros da criação é você se transformar neles. Sempre que leio Lord Jim, me vem à cabeça a frase de Marlowe (ele era um dos nossos) ou a tocha acesa que ao se afogar no rio revelou todas as estrelas. Podem me perguntar quem eu sou. Sou aquele tenente do deserto, que acha o caminho mesmo se lhe roubam a bússola. Quero tomar Acaba, by land! Tenho amigos que são os Thibault . Tem outro que continua procurando a sobrinha índia. Já fomos todos Pedrinho, neto de Dona Benta, e quando crescemos viramos o aviador que cruza os Andes. Não se trata de ilusão ou fome de aventura, é incorporação mesmo. Por serem artes que escapam como areia pelos dedos, cinema e literatura precisam de uma paixão maior, pois cada percepção ajuda a destruir o filme ou o livro. Ninguém enxerga da mesma maneira e precisamos nos aferrar à nossa para que ela continue existindo. Os prisioneiros da criação assim dependem de nós. Para onde vai todo o delírio de Glauber Rocha se não virarmos Corisco? Para que serve Jean Seberg se você, amiga, não estiver agora, neste canto do Brasil, vendendo jornal em Paris? Somos nós a praia onde aportam os bilhetes de amor dos grandes criadores. Eles se foram e nos deixaram uma tarefa: devolvam vida ao que expusemos de maneira inanimada. Puxem o cordão, descerrem a placa para que tudo se refaça, e sempre de maneira diversa. Ou descubram que vocês acordaram um dia transformados num gigantesco inseto.

MEL - O menino sobe a prateleira atrás de qualquer coisa, uma revaleção. Descobre então um livro de capa amarela, com um enorme sol como um ovo frito em cima de uma paisagem que só pode ser o pampa, trespassada por uma cerca de arame. No avesso, na contracapa, ee vê esse grande sol/ovo frito transformar-se numa lua que se quebra e solta um monte de estrelas. A criança abre o livro para ver as figuras. Enxerga as cadeiras de palha que Cláudio Levitan transportou da casa onde eu morava com minha mulher e meu primeiro filho, em Ipanema, Portinho, rodeada de coqueiros, a cem metros do Guaíba. O menino então enxerga o que nunca viu: a boca de Levitan soltando um sopro, para dizer como os poemas daquele livro, Outubro, saíam assim de chofre. O vento pega o menino e ele lê alguns versos. O que seria de Outubro não fosse essa descoberta? De que adiantam inúmeras tardes de algumas pessoas em volta de um monte de papel velho, cheio de letras datilografadas, recheadas de rabiscos a canetas e lápis? Nada seríamos se o menino não tivesse subido os degraus da estante e lá, atraído pela luminosidade da capa, e depois embevecido diante dos cenários que o artista descreve, pudesse então mergulhar na poesia, como um anjo descobre o gosto do mel.

PIOROU - A linguagem em ruínas é fruto da sucata capitaneada pelos falsos professores, que ganham dinheiro difundido generalidades. Serve à ditadura no poder em todos os estamentos sociais (o Pará é só uma vitrine, todo o país está assim). A televisão cuida desse rebento com o maior desvelo. Vejam como todos dizem sem parar coisas seguidas pela expressão ...e muito. Melhorou, e muito. Pois para mim piorou. Ou ficou pelhor, como diz o povo. Num noticiário matinal, cinco casos de violência doméstica repetiram sempre a fórmula consagrada dele, dela no lugar de seu, sua. Esse vício começou com o Millor Fernandes, que no Pasquim colocava sempre sua(dele), seguido da frase que língua a nossa! Pois virou lei. Não se diz mais seu ou sua. Uma crítica à aparente pobreza da língua acabou empobrecendo-a ainda mais. O presidente Lula também faz parte da linguagem em ruínas, já que não governa, apenas fala pelos cotovelos. Exibiu-se dizendo que mandou uma autoridade monetária fechar a boca porque ela tinha denunciado corrupção no Banco Central. Prevaricou, disse o deputado Alberto Goldman. Teve conhecimento de um crime e não falou para ninguém. Quanto custará este cala-te boca? O Severino Cavalcanti, que já é chamado de presidente, comete o clássico poblema. Para ele, ser demagogo é insurgir-se contra o aumento salarial dos deputados. Não ser demagogo é abraçar a nova remuneração com festa. Acho a situação insustentável. E muito.

RETORNO - O Leonardo de Caprio não tem biotipo para ser o Howard Hughes. Nem talento. Sempre que vejo o loirinho, tenho vontade de lhe dar uns cascudos. Não serviria nem para alcançar café no set para o Bogart. Entre as atrizes, vejo as candidatas ao Oscar todas com cara e jeito de meninos. Quem viu Marilyn Monroe e Jane Russel descendo as escadas no filme Os homens preferem as louras, ou John Wayne virando-se bruscamente para trás, sabe do que estou falando. Falo do Mundo Perdido. Um pouco desse mundo está em Clint Eastwood. É só ele dependurar as chuteiras e ficaremos à mercê dos atores alimentados com maizena. Como o Pierce Brosman, que em Crown, a arte do crime, é apenas um pálido clone do grande Steve McQueen no filme original (Crown, o magnífico). Pierce se acha. Merece também us cascudos.

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