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30 de outubro de 2004

LER NO FERIADÃO


O brilhante jornalista Dorva Rezende edita o caderno Cultura, do Diário Catarinense, aos sábados, um trabalho que está fazendo História. Hoje, além de valorizar minha resenha sobre Curtis White, que reproduzo a seguir, coloca em cena ensaios sobre romance de Beatriz Bracher, assinado pelo professor Manoel Ricardo de Lima (texto que é um ataque inspirado contra a mesmice cultural do país), outro do professor Sergio Medeiros sobre T.S.Eliot, mais um sobre o poeta estreante Ricardo Schimidt Carvalho, assinado pelo poeta e crítico literário Ricardo Pedroso Horta e ainda um texto dele mesmo, Dorva, sobre esse talento do Brasil musical resistente que é Victor Ramil. Ler no feriadão: eis nosso ofício nesses dias em que a votação será seguida do Dia de Todos os Santos e da homenagem, no dia 2, às nossas pessoas saudosas e queridas. Agora, o texto estampado em página inteira hoje no DC, em que abordo o livro A Mente Mediana, traduzido pelo incomparável talento de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

A PRISÃO DAS IDÉIAS

Um ensaio é como levar o pensamento encarcerado para tomar um pouco de sol no pátio. É quando ele pode sonhar com a liberdade

Nei Duclós

Um exemplo do conceito de mente mediana, criado pelo autor, é o que se costuma fazer com livros como este: reproduz-se infinitamente, nos espaços da mídia impressa e digital, os resumos que a própria obra traz na orelha e na contracapa. Essa clonagem obrigatória perpassa toda a divulgação de livros disponível, com algumas exceções (resenhas assinadas, originais). Nesse vasto espaço de difusão de uma obra, não há perigo de existir manifestações de criatividade. A imaginação não interage com o conteúdo e os responsáveis se limitam a exibir os contornos de um trabalho que guarda uma série de provocações, mas que praticamente nada sugere entre a maioria dos que divulgam, primeiro, e entre os que se convencem da necessidade de consumi-lo, depois. É tudo o que Curtis White denuncia no livro A Mente Mediana (tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves, W11/Francis, 224 págs., R$ 36), que se originou da repercussão a um artigo seu publicado na imprensa americana. Professor de Inglês na Universidade Estadual de Illinois, White denuncia a mente mediana como uma política cultural que abre caminho e cresce enquanto gente consagrada ligada à cultura, à direita e à esquerda, se envolve numa luta de vida ou morte (como a polêmica sobre o cânone literário, por exemplo, provocada por Harold Bloom).

DITADURA - Trata-se de um conceito complexo que merece atenção e costuma gerar equívocos quando a divulgação é apressada. A mente mediana não é uma mentalidade, como escreveu um desses resenhistas anônimos. Mas uma política, que serve à atual ditadura global das finanças monopolizadas e do estado de terror implantado pelo complexo militar e político americano a partir de 11/9 de 2001. A explicação dos motivos que erradicaram a capacidade de pensar dos cidadãos é dada dialeticamente: porque isso interessa ao poder estabelecido, já que o exercício da imaginação criadora serve só para arranjar encrenca, como aconteceu nos anos 60 (uma das referências do autor, junto com o Iluminismo e a obra do filósofo Derrida). É por isso que a imaginação está soterrada pela necessidade de padronizar tudo, de tratar as manifestações culturais de maneira indiferenciada, fazendo tábula rasa de obras e autores e distorcendo a visão adequada desse gigantesco trabalho humano, hoje confinado numa penitenciária administrada pela mediocridade armada.

SOLDADO RYAN - Um dos pontos altos desse ensaio é a leitura livre de obras aparentemente inocentes e que no fundo preparam a percepção coletiva para as tragédias aprontadas pelo Estado. É o que ele faz ao desmontar as verdadeiras intenções de Spielberg no filme O Resgate do Soldado Ryan (que, para White, justifica o assassinato de prisioneiros de guerra e prepara o país para a futura invasão do Iraque), e quando denuncia o papel da ficção científica como a porta-voz dos donos do poder na ciência (que por dever de ofício e estratégia gostam de ficar mudos). Não escapam do fio da sua navalha a revolução digital que se acoplou aos jargões do futurismo para justificar mais concentração de renda. A maneira como usa suas ferramentas podem ser adotadas como vingança pelos brasileiros que estão sob o tacão das linguagens corporativas (o pesadelo dos anos 90, assimilado no escravagismo brasileiro como reiteração de papéis sociais fundados na opressão e na divisão radical de classes antagônicas). Ou que procuram falsas saídas nos livros, cursos e palestras da auto-ajuda espiritual (a indústria do entretenimento elevado à categoria de religião pragmática, mas que no fundo é uma adaptação de paradigmas à máquina de moer carne da competitividade criminosa). Justificar a má distribuição de renda, o aumento do fosso entre ricos e pobres por meio de ações pretensamente corretas e de práticas falsamente espirituais (que só servem para compensar o grande fosso de culpa acumulado nos processos produtivos injustos) é uma armadilha que Curtis White desmonta sem piedade. Ou usando do seu conceito favorito, desconstrói de maneira radical, usando não apenas a ironia, mas a fúria.

CUBÍCULOS - White faz parte dessa linhagem poderosa do ensaísmo americano que cruza manifestações da modernidade com parâmetros sólidos no pensamento clássico das ciências humanas. Não se trata de justificar profundidades falsas em sitcoms da moda, como se costuma fazer na América, mas de realmente pegar as idéias que estão encarceradas em cubículos sem ventilação, na penitenciária dominada pela mediocridade em armas, e levá-las para passear por algumas horas, para que possam desencarquilhar os ossos fossilizados em décadas de clausura. Uma resenha pode ser comparada a uma visita eventual permitida pela guarda, desde que não abra o portão para que o pensamento fuja em direção ao público. Este, precisa estar bem convencido de que esse é o papel das idéias que contam, o de estarem perdidas em porões da ditadura e que qualquer esforço para trazê-las à luz será condenado como algo obsoleto, talvez do tempo em que a palavra intelectual não era considerada nome feio.

EXEMPLO - O Brasil se ressente desse tipo de ousadia, tanto nos ensaios em revistas culturais (raras entre nós) quanto nas resenhas nas seções existentes na imprensa. Há, nestes dois ofícios, a carga perniciosa da cultura brasileira formatada na desigualdade, pois abordar um tema ou um livro em espaços nobres da grande imprensa é, com honrosas exceções, um sorteio de cartas marcadas. Há uma insistência em determinado número de autores e um consenso entre idéias que não provocam nenhuma repercussão, pois esse é o objetivo da mente mediana entre nós, muito mais avassaladora do que a apontada no livro. Pois se Curtis White desmonta a farsa de programas que se dizem culturais e são apenas arapucas cheias de más intenções e apelações de audiência, nós nos ressentimos até mesmo desse tipo de contrafação, pois nada possuímos ao que se assemelha a um programa cultural na nossa televisão, por exemplo. Nosso buraco é muito mais embaixo e é nele que devemos trafegar. É preciso construir uma reputação sólida para a crítica aprofundada sobre o que se produz na televisão, no rádio e na mídia impressa.

FALAS - Não se trata de seguir os passos do ensaísmo americano, mas arrostar a responsabilidade de atacar frontalmente o que é impingido à força na nação: uma seqüência de falas contaminadas pelo poder, reproduzidas em rede pela mídia, e que não provoca o mínimo esboço de reação negativa. Nesse pesadelo, produções da imaginação como o discurso político, tanto nas eleições quanto no exercício dos mandatos, trafegam pelos interesses de um mando desgovernado, enquanto a cidadania padece de mudez doentia. Cada pequeno canto disponível deve ser ocupado pela imaginação criadora de que nos fala Curtis White, para que possamos desencadear a superação de nossas endemias culturais, fonte de nossos terrores sociais.

RETORNO - Meu artigo Eclipse na grande área, sobre a morte do zagueiro Serginho, já está no Em Pauta, do Comunique-se e com destaque no La Insignia (links ao lado).

28 de outubro de 2004

ECLIPSE NA GRANDE ÁREA



A bola branca rolava por trás dos morros quando voltei ontem para casa. Era uma dama que se olhava no espelho pálido do entardecer. Depois, tornou-se um balão de gás subindo na noite limpa. O evento começaria aí pela hora do jogo. Sempre espero que a sombra comece a desenhar as imagens dos jornais e revistas, a lógica padrão da terra projetada que vai engolindo elegantemente a luz da lua cheia. Mas o que eu vi foi um borrão de sangue. Bem no zênite, o sol das 22 horas maquiava-se de marrom e ocre para a visita da Ceifeira. A luz do estádio nem toca a túnica da Visitadora. Ela olha para o céu, e espera que o Destino dê o alarme apagando o jorro iluminado que vem de cima. Então, um minuto depois, vibra a Foice e colhe o zagueiro na grande área. Ele se debruça sobre os joelhos e cai. O futebol despenca, ferido de morte.

RODADA - Como um saco de pedras que se descostura, como a estrela que cai em si para formar um buraco negro, como cascata de um rio de chuva ácida, o jogo perde a força da sua representação. Deixa de ser um acordo de ferimentos leves e entusiasmos descartáveis. Foge do corpo dos jogadores que então se vêem a sós, vestidos de sua própria humanidade, que tinha ficado no vestiário para que o espetáculo como rotina se confirmasse mais uma vez. Eles cercam o fruto tombado. Os anjos da medicina descem a rua da fatalidade com suas respirações boca a boca, suas massagens, num lance extremo de remediar o que tinha sido esgarçado para sempre. Ninguém mais joga a armação das mentiras em volta da lua branca que deveria ir para as redes. Não há mais bola, foi esquecida. Na beira do estádio desce o som inaudível do eclipse mortal. Paulo Sérgio de Oliveira Silva, o Serginho do São Caetano, aos 30 anos é carregado para seu último quarto de hora.

Ainda havia esperança, uma ambulância fechada, um aparelho desligado, um socorro supremo, um esforço de driblar aquela que não treina e quando joga, é definitiva. Quem estava diante da televisão viu que a rodada tinha se transformado numa fogueira de horror. Mas se aquele jogo terminou, os outros continuaram. Vi como o amigo que chorava demais com a camisa do Corinthians fez um gesto de que iria continuar. Mas os pés tinham vestido chumbo. Não houve mais gols. A lua sumia no céu impassível, para retornar mais tarde, na madrugada, quando se retirou para trás dos morros novamente.

PÂNICO - Amanheço com o vermelhão do dia anunciado. Antes que seus dardos finquem a parede da casa, um jato começa a cruzar em diagonal o céu sem nenhuma nuvem, neste final de outubro que enfim pára de ventar. A dupla fumaça que sai das turbinas vem lentamente riscando a minha atenção. Vejo essa manifestação desde tempos sem memória, naquele lugar perdido de onde um dia saí. Esses aviões vão para Montevidéu, me diziam. Eles saem de São Paulo e em poucas horas estão já no Prata. Hoje parece o mesmo tipo de jato, como se o tempo estivesse passando por um daqueles nós da espiral do tempo, em que tudo se repete.

Lembro Serginho, o que foi ferido de morte, jogador que eu desconhecia, eventual telespectador de futebol que sou. O zagueiro tinha levantado um braço pedindo tiro de meta, gesto típico de quem defende o gol, seu patrimônio. Depois deu alguns passos. O adversário ainda tropeça nele e arruma a meia que saiu do lugar com a queda do outro que começa a embarcar para a travessia. Andando de costas, atrás de Serginho, o árbitro se interpunha numa briga de pernas entre dois adversários. De repente, tudo muda. As pessoas assumem seu verdadeiro pânico, o de estar vivo sem poder representar nada a não ser o próprio desespero.

VIAGEM - O céu está intocável e o jato avança até aquele ponto onde a lua estava ontem. Não se vê nenhum rastro do eclipse. Serginho olha pela janela e talvez pense que está participando de mais uma etapa no exercício do seu ofício. Mas é sua derradeira viagem. Seu braço tinha se erguido pela última vez. A terra atravessou o umbral e tenta pousar a inútil sombra em algum campo perdido do cosmo. A lua cheia escondeu-se. Com que cara voltará hoje, quando novamente a noite cair sobre nossas vidas? Colocaremos os braços na cintura e olharemos firmes para ela.

Lua que fica atrás do espelho, qual o teu mistério? Talvez fique imóvel penteando seus invisíveis cabelos. Afasta de nós esse presságio e traga de volta o verão, que tarda. Mergulhe pelo menos uma vez no mar gelado da nossa presença, para que possamos abraçar o calor que nos conforta, a solidariedade que some. Precisamos nos despedir dessa dor que está na área e ninguém vê, a não ser que um zagueiro anuncie a tragédia, ao tombar na grama indiferente, como um anjo tomba. Ele se foi, sob o fardo da inocência e de um coração que se recusa a repetir o jogo marcado de uma civilização sem rosto.


RETORNO - Imagem desta edição: tirei daqui.

27 de outubro de 2004

NINGUÉM FAZ FALTA


Vidas descartáveis não se empilham apenas nos acidentes do trânsito ou nas estatísticas da violência, ou mesmo na gigantesca exclusão do desemprego. Elas existem por todo o lugar, já que ninguém mais é necessário, todos são auto-suficientes em tudo e o monólogo é a ferramenta básica de uma pseudo-civilização que sabe tudo, desde criancinha. O fato é que todos estão sendo manipulados, desde criancinha, exatamente para terem a ilusão de que tudo sabem e que portanto já nascem consultores da humanidade. O dedinho levantado, os jargões de advertência, o rosto empinado, a voz estridente e às vezes fanha, fazem de nossas comunidades um amontoado de egos insuperáveis. Isso, claro, cria um tremendo vácuo que é preenchido pelos espertalhões de sempre. Os escritores de auto-ajuda, os literatos sem nacionalidade, os poetas sem sentido, os donos do poder. A crítica verdadeira foi erradicada e não há paciência para a convivência, a não ser que ela leve ao lucro. Isso nem mais é capitalismo, é pré-estréia de alguma hecatombe.

PALCO - Como todos nascem para o estrelato, o que vemos são manifestações arteiras, performances, teatro amador perigosíssimo, já que os papéis estão todos demarcados e você, que não faz parte do show, está sob suspeita. É a época dos mal entendidos. O humor foi totalmente erradicado e se refugiou nas tiras do Laerte e Angeli, que nem mais são humoristas, são editorialistas, a última resistência do iluminismo corrompido pela desesperança. Angeli quer sumir do planeta e Laerte cria a genuflexão nos bancos, uma série maravilhosa sobre a situação de uma sociedade sem fundos, em que ninguém tem fundo. Essa sacada foi-me repassada há décadas por Virson Holderbaum, jornalista e memorialista, um observador permanente da precariedade humana e um cético que jamais perdeu a sua magnífica non chalance. Poucas criaturas te escutam e há um cerco inominável de ruídos, que impedem a produção de pensamento. Nesta sociedade fajuta, tudo já foi feito e a novidade é apenas a repetição da novidade de ontem. Jamais diga que deixou de ser novidade, todos se ofenderão. Pessoas se abraçam às próprias piadas, às mesmas dúvidas, às mesmas certezas. Há uma avalanche de dèja vu e por isso estamos abertos ao ataque estrangeiro dos pseudo-pensadores como Jacques Rancière (o paga-pau de FHC) ou Martin Amis, dos repórteres milionários que defecam sobre nosso país, dessa tempestade de merda que é o rap e que faz o Serginho Groisman se sacudir todo, como se estivesse in, por dentro da cultura up-to-date.

RADICALIDADE - No Casseta e Planeta, esse deboche ao povo brasileiro que é o Seu Creysson (o analfabeto que se arvora a ter acesso ao poder) deita e rola na Bienal de São Paulo, reproduzindo os mesmos preconceitos contra a arte que eu via estampados nas revistas do Pato Donald nos anos 50. Seu Creysson é uma repetição da Margarida, namorada do pato, que usava chapéu de frutas para dizer que era arte, e assim desmoralizar a revolução comandada por Picasso no século 20. O ator que interpreta Seu Creysson coloca duas mulheres peladas lutando sobre tintas em cima de uma tela no chão e grita que aquilo sim é arte, para aplauso da platéia ao redor. Como desconfio que tudo aquilo foi permitido e incentivado pela direção da Bienal, vejo que depois de destruírem o vanguardismo artístico com tudo que é tipo de lixo, os donos desse mercado jogam pá de cal em cima daquilo que um dia deslumbrou o mundo pela criatividade, pela radicalidade das propostas. A arte foi punida por ter tocado no principal: a percepção humana, fonte permanente de ilusão que serve aos poderosos. Desconstruir as ilusões que cercam uma obra de arte ( e portanto o mundo em que vivemos, já que arte é sempre representação) tornou-se o próprio avesso: consolidou a má vontade em relação aos artistas e deu oportunidade aos medíocres, que viram na revolução a chance de ganhar muito sem fazer coisa nenhuma. A crítica mais contundente é de autoria da faxineira de uma galeria londrina, que colocou uma obra no lixo, achando que aquele era o seu lugar. Essa é uma verdadeira intervenção popular, e não a contrafação do Seu Creysson, que consolida a porcaria para que tudo continue como está. Casseta e Planeata está no lado oposto a Laerte e Angeli. Estes dois são a verdadeira vanguarda da arte hoje. Que estejam confinados em jornais diz mais sobre nossa indigência mental do que qualquer outra coisa.

26 de outubro de 2004

EU NÃO SOU DAQUI, MAS AQUI ESTOU


A xenofobia interna chega ao auge na campanha para prefeito em Florianópolis. O candidato da situação Chico de Assis intensificou os ataques a Dario Berger, ex-prefeito (por dois mandatos) do município vizinho de São José e que lidera nas pesquisas. A polarização é entre os que são daqui contra os que não são daqui. Os que são daqui são honestos, os que não são daqui são desonestos. Gente que nem é daqui, diz a atual prefeita Ângela Amin, que tem sobrenome de migrante, mas é nativa. Segundo suas palavras, dedica grande amor à cidade (o que não se duvida, pois sua longa gestão de oito anos foi positiva). O problema é o incentivo a uma exclusão que é absurda, já que nem mesmo os índios que aqui habitavam era originários daqui. Vieram vindo, como todo mundo. Outra contradição é definir o habitante local como manezinho da ilha, quando a cidade também se espalha por vasta porção do continente.

NÃO TEM? Uma expressão típica do habitante dessas paragens é o famoso não tem?, que encerra as frases. Como ventou, choveu e fez frio desde que aqui cheguei pela terceira vez (em maio deste ano) brinco que a ilha diz não tem para quem quer usufruir os seus encantos e guarda-se para outros momentos, especialmente quando pobres criaturas como eu estiverem bem longe daqui. Mas o que realmente me incomoda é o consenso sobre as etnias que existe no imaginário deste estado. Como se Santa Catarina fosse um mosaico de etnias, uma espécie de Kosovo paradisíaco. Nos programas especiais, sobra alemão. Me dizem que no interior há ucranianos e há também a cobertura italiana, já que os vinhos emergem pelo estado como nunca. Mas e os brasileiros, ninguém é brasileiro? Claro que há. O candidato a vereador mais votado na capital é negro. O próprio mané é mestiço. Mas há certezas: cidade que não tem alemão não vai para frente, já me disseram. No caixa do supermercado, o loirinho recebe e retribui um cumprimento: Hitler! É verdade. Pergunto, abismado: Hitler? Por que?, me diz com uma cara já preparada. Ele fez muita maldade? Meu sangue subiu à cabeça. Resolvi provocar. Não, respondi, é porque ele era austríaco. O interlocutor descambou. Austríaco? Mas ele não era alemão? Não, repliquei, vitorioso. Não tinha nada de alemão. Não cabia no compartimento de raça superior que ele mesmo tinha inventado. E saí, apavorado. Falei desse assunto por aqui, ninguém deu bola. Sou metido a paranóias, dizem. Pode ser. Não tem?

GELO - O bom é que a cordialidade por aqui é hegemônica, e as pessoas, de vivência comunitária, te tratam bem. Mas por favor, tira essa placa de São Paulo. Paulista por aqui ainda é novidade. Outra novidade é o conceito de fora do gelo. Tudo é super gelado, nem tente pedir algo que não esteja em ponto de cristalização criogênica. Talvez para não deixar transparecer que esta não é uma terra tropical, o que não seria bom para o turismo. Atrair pessoas para o Pólo Sul com fotos que parecem a Bahia significa silenciar sobre este frio sem fim. Chegaram ao esplendor quando pedi pizza, com guaraná sem gelo. Claro que me entregaram gelado. Mas me avisaram: está sem gelo, eu mesmo peguei. Toquei na pet: estava suada de tanto ficar no freezzer. Me assustei. Então tá, disse, paguei e fechei a porta. Tudo é possível. Até mesmo uma redação inteira levantar-se, em uníssono, no entardecer de uma sexta-feira e todos irem alegremente para...doar sangue no hospital mais próximo. O que tens contra isso? me perguntaram, quando estranhei o programa. Nada, respondi. E saí de costas. Fui para casa, para baixo da cama.

SONETO - As fotos de Anderson Petroceli sempre me levam para poemas sobre a paisagem da minha cidade, Uruguaiana. Eles podem ser vistos e lidos no portaluruguaiana. Fiz mais um recentemente:

ASSOMBRO

Nei Duclós

Todo sangue reuniu-se no crepúsculo
Os barcos descansam sobre os peixes
Os tiros se aquietam como os pássaros
A nuvem fuma o roxo esquecimento

As margens são inúteis sem o vento
O céu faísca o ouro sem proveito
Alguém partiu ao soar do ângelus
Existia água, agora tudo é chumbo

Houvesse esplendor teríamos tudo
Mas há apenas medo diante do mundo
Perdemos o que nos fez humanos

Mas não há horror, apenas sonho
Teu olhar pinta o adeus supremo
A noite veste uma futura sombra

RETORNO - Não sou francês, nem alemão, nem paulista, nem catarinense, nem mesmo gaúcho (não monto a cavalo e no máximo pertenço à civilização das águas riograndenses). Sou um dos poucos brasileiros existentes no planeta. Nasci e moro em território nacional. Portanto, não me digam de onde sou. Disso me encarrego: sou do Brasil, país soberano. E aqui estou porque aqui cheguei.

25 de outubro de 2004

EU SINALIZO, TUA ALAVANCAS , ELES DISPONIBILIZAM

O pesadelo da linguagem pega firme no uso de verbos artificiais que pululam como vermes na imprensa brasileira. Nunca vi tanta gente sinalizando alguma coisa. Como se os entrevistados fosse moradores de faróis ou aqueles caras que ficam fazendo sinais frenéticos no chão dos aeroportos lotados. E nunca houve tanta alavanca a serviço da humanidade. Todo mundo está alavancando sem parar. Não sei como não acabam com dor nas costas. E o que dizer de quem disponibiliza tudo para que todos usufruam? Os disponibilizadores normalmente estão no mundo corporativo. Esse tipo de muleta vicia o corpo do texto numa posição capenga e chama a atenção pela pobreza de recursos.

MAIS ALGUMA COISA? Hoje a eterna pergunta dos balconistas deu tilt. A pessoa me fez a investida depois de eu pegar o produto e imediatamente passou para o freguês seguinte. Mas desta vez eu realmente queria mais alguma coisa. O sujeito fundiu a cuca. Não sabia o que fazer. Normalmente as pessoas jamais querem mais alguma coisa, mas a pergunta é obrigatória, pro-forma. O balconista teve que refazer-se do susto, desconectar do freguês que ele estava investido em atender e voltar para mim. Duzentas gramas de pão de queijo, pedi, ciente que grama é feminino, assim como champanha e alface (e não me venham pasqualar). Tem outro horror lingüístico que é o para mais ou para menos das pesquisas. Toda vez que as criaturas imóveis dos noticiários falam em resultados de pesquisas, vem o para mais ou para menos. Até quando irão encher nossa paciência? Voltando ao balcão: como os atendentes tem assuntos entre si! Conversam sem parar e te atendem automaticamente. Pedi duzentas gramas, me serviram 290. Por que? Porque a pessoa que me atendia precisava contar algo para sua colega. No caixa, o gerente está soprando algo, toca o telefone, ninguém olha tua cara. Descobri uma vez que eu era atendido mais rápido se sacudisse as chaves do carro. Pois estava já há mais de dez minutos esperando quando alguém chegou fazendo o barulhinho típico. Imediatamente foi atendido. Vi então que Pavlov impera no comércio. Quando lembro, entro num estabelecimento e sacudo as chaves. Todos deixam o que estão fazendo e chegam, solícitos. O que será isso?

RECITAL - Preparamos um recital de poemas, meus e de Marco Celso Viola, para o dia 13 de novembro, na feira do livro de Porto Alegre. Fiquem sossegados, o canastrão aqui não vai recitar nada. Marco Celso conseguiu alguém do ramo para dizer alguns poemas nossos enquanto a gente bate papo com quem se dispuser a ir lá conversar sobre literatura. Quem puder ir fazer quorum, será bem vindo. A feira já estará quase no fim e os autógrafos estarão em fase de overdose, pois parece que uns 300 autografantes estarão presentes nas duas semanas do evento. Donaldo Schüller, que publicou sábado um revelador artigo no Diário Catarinense sobre Derrida (e as origens sociais da teoria da desconstrução do grande filósofo) é o patrono este ano. Nosso encontro será sobre poesia e romance. Marco Celso já tem pronto seu Poemas para ler em voz alta. E eu estarei apresentando ao público de Portinho meu romance Universo Baldio, além de No Mar, Veremos, que nunca lancei lá. Vida literária: de vez em quando é bom. É quando a gente se livra dos pesadelos da imprensa e mergulha na água boa das palavras que nascem do coração (chão de sementes).

24 de outubro de 2004

IMPRENSA É ATOLEIRO


Viajei para dentro de três jornais neste fim de semana, Globo, Folha e Estadão. Duas unanimidades culturais, o escritor Marçal Aquino (que desfia suas inúmeras leituras) e a atriz Leandra Leal (que por ser correta destaca-se entre tantas péssimas) convivem com o atoleiro Brasil: o problema mal resolvido da mudança de regime (1985), do qual o revival Herzog e a matança que se aproxima no Haiti são os exemplos mais notórios. Saímos da ditadura e inauguramos uma esquizofrenia, uma democracia que não mexeu no principal, a segurança e as forças armadas, tornando-se portanto apenas uma continuidade. No Mais!, a intensificação da idiotia internacional em relação aos países do nosso continente, com um artigo do inglês Martin Amis sobre Maradona, em que o craque serve apenas de insumo para alimentar a fábrica de besteiras sobre o que argentinos ou brasileiros são de verdade.

COLUNISTAS - Sobram colunas de todos os tipos. Afora os percalços de Paulo Coelho numa viagem de Paris a Viena, a maioria aborda o Brasil. LFV é, como sempre, o melhor, ao falar sobre a má figura que fazemos com nossa imagem internacional. Ele diz que prefere sempre acrescentar Clarice Lispector aos estrangeiros que gritam Pelé ao saberem que ele é daqui. É uma ironia funda, pois Clarice, apesar de escritora brasileira e orgulho do país, não nasceu aqui, mas na Ucrânia. Se ele dissesse Carmen Miranda, cairia no mesmo problema, pois Carmen é portuguesa de nascimento. Veríssimo mudou o pai, Erico, da editora Globo para a Companhia das Letras, o que deu chance a bobalhões deitaram bobagens sobre o grande escritor. Erico disse um dia que era apenas um contador de histórias. Queria dizer com isso que era um escritor clássico, que não tinha a pretensão de revolucionar linguagens nem posar de radical, e que estava a serviço da literatura e não da ideologia ou de qualquer movimento. Era, portanto, livre. Isso não o tirava da reta política, pois sempre foi firme em suas posições, marcando presença contra a ditadura. Pois não é que os imbecis adoraram essa frase dele e a usam para dizer que ele realmente não passa de um contador de histórias, veja só. Até teve gente graduada como Moacyr Scliar que assegurou na Ilustrada de sábado que Erico sempre será lido pois sempre as histórias serão bem vindas para os leitores. Erico é eterno porque é grande escritor, e não por ser um mero contador de histórias. Senti um ranço na cobertura dada pela cultural oficial (autocentrada em Sampa), que parece estar permitindo uma colher de chá para o gaúcho Erico, dizendo: vá lá, ele é um grande escritor, mas... é apenas um contador de histórias. Quanta bobagem. Nem falo na obra-prima que é o Continente. Falo de suas memórias como Solo de Clarineta, em dois volumes, que são meus livros favoritos. Erico dá banho nos escritores que hoje pululam na mídia com suas poses de grandes literatos. Era um tremendo intelectual, um escritor de primeiríssima água, uma figura de renome internacional, que construiu não apenas uma grande obra literária, mas também uma obra como homem público, a favor do Brasil como país soberano.

CANECO - Martin Amis faz parte de um cultura que enxerga o corpo humano como uma coisa abjeta. Não pára de falar da barriga de Maradona, acusando-o de populista e se locupletando com o que chama de decadência do herói. O que atemoriza o inglesinho barata-branca é a tatuagem de Che no braço de Diego, é o corpo que não obedece a nenhuma regra, é o olhar mortal de desafio de um homem que fez História e hoje vive seu tormento de maneira transparente, já que tentou mas não conseguiu esconder-se. Diego é a contradição em pessoa. Tudo faz para demolir o mito que sua arte criou, mas continua firme no imaginário popular. Nada tem a ver com a ditadura Argentina nem serviu aos propósitos dela. Quem serviu e serve a ditadura latino-americanas são os americanos e os ingleses. Estes, ensinaram as polícias do nosso continente as técnicas mais sofisticadas de tortura, que eles desenvolveram ao colocar na cela os militantes irlandeses. A Inglaterra não é um país, é um pedaço de terra cercado de ódio que domina seus vizinhos e os massacra. Por ter amealhado grande fortuna na pirataria, desenvolveu alta cultura, mas o melhor escritor inglês é polonês de nascimento, Joseph Conrad. Os ingleses mandam seus filhos para morrerem no Iraque e não escutam os gritos de misericórdia dos que tornam-se prisioneiros graças a essa política suicida. Martin Amis deveria olhar para dentro do seu país antes de dizer tanta bobagem sobre a Argentina e o que eles chamam de Terceiro Mundo. No fundo é ressentimento, pois a Inglaterra não domina o esporte que inventou e só ganhou uma Copa porque roubou descaradamente, em 1966. Dieguito eliminou todo mundo e ganhou o caneco. Calai a boca, anglo-saxões safados.

DEMOROU - José Arbex Junior, na página três do primeiro caderno deste sábado da Folha, explica o que está acontecendo no Haiti e porque somos tão colonizados ao enviar tropas para lá. Arbex demorou em entregar esse lance. O Haiti faz parte de um gigantesco paga-pau do governo Lula para os gringos e o envio de tropas tem um link com 1965, quando a ditadura brasileira chegou mais na República Dominicana a serviço da ONU depois de um golpe de estado comandado pela CIA. Agora foi a vez do Haiti ver derrubado seu presidente eleito. Isso conflagrou o país. As tropas brasileiras são de ocupação. Está tudo no artigo de Arbex. Estarrecedor.

RETORNO - 1. Graças aos gentis e competentes jornalistas Ricardo Kotscho e Ivan Marsiglia, comunicadores lotados em Palácio, consegui uma entrevista exclusiva com o presidente Lula, que já está publicada na edição de outubro da revista Empreendedor, um veículo que comemora este mês dez anos de vida e que agora tenho o privilégio de editar, sob a direção do veterano jornalista Acari Amorim. Veterano, mas mais moço do que eu. Até meu irmão Elo, que festejou seu aniversário ontem, foi considerado mais moço. Estou com 80 anos, digo para a jovem caixa do supermercado. E ela acredita! Deve ser essa exaustão, esse excesso de Brasil. 2. Quando a gente passava na frente de casa alheia, cumprimentava. Quando entrava, dava um abraço. Quando saía, se despedia. Hoje passam, entram, saem e nem deixam um comentário. É duro não ser um líder.

23 de outubro de 2004

ANDAR É SER OBSERVADO



Todo mundo sabe como John Wayne anda. É o caminhar mais imitado do cinema. As pernas possuem vida própria e há um ritmo diferente no gesto que ele imprime ao tronco. Parece que anda meio de lado, como a espreitar inimigos. Ao mesmo tempo, é um andar franco, desassombrado, grandalhão. Robert Mitchum tem outro tipo de passo. As pernas vão a reboque da sua vontade de andar, fazendo com que seu corpo (encimado por formidável cara de sonso) flutue enquanto os pés palmilham territórios há vários segundos deixados para trás.

Aprender a andar, para quem sai do berço, já é assumir uma identidade. Pelo ritmo, pela postura assumida no caminhar de qualquer um, é possível dizer quem ele é. Por isso atores como John Travolta costumam modificar o passo para criar personagens. Mas quem encontra o passo certo (contundente, personalíssimo) diante da observação alheia, não abre mão dele, seja o papel que for desempenhado.

BICHO - Quando aprendemos a andar, descobrimos que essa ação está sendo acompanhada com atenção redobrada. O mundo adulto volta os olhos para você, na expectativa e ao mesmo tempo pressionando-o para que você se saia bem da empreitada. É importante que uma criança ande, o que irá amenizar o trabalho dado aos adultos. É também sinal de saúde física, de coordenação motora e, infelizmente, de precocidade (a pressa em fazer o nenê andar é que inventa as pernas tortas de tanta gente).

Andar, portanto, é ser observado, o que torna essa atividade tão fundamental no teatro e no cinema. É preciso chamar a atenção para o personagem a ser criado. Atrair a atenção alheia é fazer a criatura andar. O passo do terror é conhecido: pé ante pé, pesado, fazendo o tronco acompanhar o esforço de maneira tacanha. O passo do medo costuma ser obviamente trêmulo, ou trôpego. A comédia usa o andar para compor o riso na cabeça da platéia. Buster Keaton é duro, com pernas e quadris em movimento burocrático. Chaplin usa o excesso dos sapatos para inventar o andar do palhaço distorcido pelas luzes do circo.

Há o andar imperceptível dos ladrões. Não se iluda: se você for roubado, não escutará nada. Se escutar, você tem uma chance, o ladrão é ruim de bola. O andar furioso é curto, apressado. O andar sensual é a base bamba de um templo majestosamente curvo. O passo de ganso é o nazismo impondo seu tacão no mundo. O do marreco são as pernas tortas que pretendem ter um andar militar, mas não conseguem. O andar na ponta dos pés te surpreende. O andar duro do salto alto nesta primavera fria é um pedido de passagem na calçada estreita.

O andar cria espaços imaginários diante da câmara. É uma ferramenta que não pode cair em si, como os ombros. Quando José Wilker gira, ele está decidindo que não quer mais estar ali, que vai inventar outro cenário para o seu Giovani se movimentar. Bruna Lombardi como Diadorim andava como se estivesse caindo, o mesmo tipo de passo de Romário quando se retira do campo. Andar é o bicho mais humano que podemos criar.

CHARME - O andar dos anos cinqüenta, aprendido nas matinês, era bem específico em Uruguaiana. Na calçada larga, sabíamos que mil olhos voltavam-se para nós. Tínhamos platéia, era preciso caprichar. Havia uma dança comandada pelos ombros e pelo tronco, que se revezavam no impulso para frente. Nesse bambolê estranho havia o charme de passar a mão no topete ou jogar a cabeça para trás para acertar o cabelo caído. Uma leve raspadinha com a sola do sapato no chão era admissível, desde que não se exagerasse na dose. Isso dava a impressão que atrairíamos garotas tontas com nossa performance.

Mas no fim nos reuníamos em grupos nos postes, carros estacionados (já que não tínhamos carros) para ver olhar o que realmente interessava: o andar das gurias, que costumavam levantar a sola dos pés para ganharem altura enquanto iam para frente, ao mesmo tempo em que viravam o rosto para nós, felizardos daquela época sem igual. Andar, naquele caso, era observar. Mas quem andava na nossa frente voltava os olhos para nos ver parados. Nunca foi tão bom ser platéia.

22 de outubro de 2004

O QUE É REPORTAGEM?

Reportagem é tudo o que o repórter apura. Se o jornalista tiver sorte, é também tudo o que ele consegue divulgar a partir do seu trabalho de campo. Há, portanto, dupla natureza na reportagem: é a maçaroca de dados apurados e a versão final, publicada. Em ambos os casos é preciso que o jornalista comande o espetáculo. Ele é quem compõe a fala da reportagem. Sua fala não pode estar a reboque das falas alheias, mas sim o contrário. É por isso que esta profissão precisa da ética para se realizar, já que se ampara na confiança do leitor no repórter, mais do que na confiança do repórter nas fontes. Para que haja reportagem, basta ter repórter. É dispensável o chamado gancho, que não passa do marketing da notícia (quando só se divulga o que a publicidade dos eventos justifica como notícia).

DIRETAS - Estive nas Diretas, a serviço da revista Senhor, da Editora Três, comandada por Mino Carta. Convocado, junto com toda a redação, fui na Praça da Sé e me apertei junto com o milhão de brasileiros que lá estiveram para derrubar uma ditadura, mas que acabaram ganhando outra, de graça, conduzida agora por aqueles que estavam no palanque vociferando contra os militares (estes, tinham apenas parte da responsabilidade). Lembro que naquela época a Rede Globo boicotou as diretas, não deu nada em seus noticiários. Pois agora tem uma exposição sobre o grande acontecimento, onde a Globo (não tem para ninguém) torna-se o astro principal. Aparecem então as manifestações reportadas pela rede. Pergunta: essas imagens foram ao ar, em tempo real, naqueles anos tão decisivos? Lembro que não. Pelo menos no primeiro momento, quando era preciso repercussão na mídia para que o movimento não esfriasse (mas as Diretas foram maiores do que o gargalo da imprensa). A Senhor e a Folha assumiram quase sem companhia essa pressão gigantesca das massas por liberdade. Mas a Globo tudo reduz ao seu universo tacanho. Vejam as vinhetas dos intervalos: cultura popular é plim-plim, tudo é plim plim. Nos programas de auditório, sempre aparece alguém global que faz papel de alguém. Ou seja, a Globo é pescador, é feirante, é tudo. E o impressionante é que não pára de ganhar prêmios. Todos os dias as figurinhas carimbadas da Globo aparecem em algum palco ganhando estatuetas, mimos, beijos, abraços e flashes pipocando. São monopolistas, mais do que hegemônicos. Chutam o escanteio, cabeceiam e ainda defendem a bola, mas ao mesmo tempo fazem o gol. Não tem para ninguém, só para eles. Tudo o que fazem tem um tom que explode o babacômetro (quem aguenta as sacadinhas espertas do Globo Esporte?). Aliás, falando em babaca, a grande revelação é o Carlos Nascimento. O cara é contra a CLT, gargalha da repórter que se assustou com a explosão de algo atrás dela numa cobertura ao vivo, faz comentários sem nenhuma consistência, adianta o que Boechat vai dizer, se faz de engraçadinho para as jornalistas do tempo e assim por diante. Acho que já provou o suficiente. Pode voltar para a Globo. Está perdoado. Lembro outra coisa: para onde foi Jorge Kajuru, demitido no ar numa transmissão comandada por Nascimento, quando foram denunciados os privilégios num jogo em Belo Horizonte?

ESCUTEM - A falta de responsabilidade dos repórteres com suas reportagens é fruto da repressão nas redações. Os jornalistas então decidiram terceirizar tudo. Por isso existe tanto de acordo, segundo fulano, conforme sicrano. É um empilhamento de falas alheias sem que o repórter coloque nelas suas mãos, a não ser para fazer costuras toscas (por outro lado, também, faz coro etc). A luta de todo editor é desvincular esse tipo de vício dos processos narrativos do jornalismo. Uma das fontes para conseguir superar essa dificuldade, além de muito mais leitura de tudo (leiam livros, pelo amor de Deus! não façam cara de espanto quando falo em Hemmingway! Hemmingway não!) é chamar a atenção para a riqueza da fala oral. Uma matéria costuma ficar muito mais interessante quando é contada. Por que torna-se tão burocrática quando escrita? A partir da própria escolha de palavras ditas em voz alta, é possível conseguir insumos magníficos para um texto (tecido, trabalho árduo) com muita mais qualidade, ou seja, com mais força, atratividade, encantamento. Falei insumo. Não vá reproduzir sua história dita em voz alta diretamente para o texto, sem trabalhar nada. Não confunda o que estou dizendo. Não reduza um aconselhamento ao preconceito que você tem contra alguma coisa. Não coloque na gaveta conhecida o que você acaba de ouvir. Ouvir é entregar-se, duvidar de si mesmo. Corte seu diálogo interno. Não confunda espírito crítico com teimosia pura e simples, teimosia sem nenhuma base. Escutem: a vela queima. Escutem: a fruta tomba na varanda. Longe, longe o menino anda. Escutem o calor da moça irradiando. Sua trança cresce em silêncio.

DIALÉTICA - Quando você ouvir uma crítica, não a encare como uma condenação eterna. Não se entregue à metafísica mal assimilada. Mergulhe um pouco na cultura dialética e acredite que você será muito melhor. Ninguém nasce sabendo nada. Também não acredite em quem se especializa em acabar com sua auto-estima. Você é herói, abrace seu destino. A reportagem que você está fazendo é a última batalha sobre a terra. Esse é seu ofício. Veja o caso de Romário. Ele não tem carreira, tem uma vida. Não vai se retirar porque os outros mandaram. Ele vai para o Vasco em 2005 e depois poderá ir para o Olaria, o Madureira, o Bangu, o América. Ele vai palmilhar cada pedaço de campo do país (já que no próximo dia 8 vai se despedir do Exterior para sempre), cada poeira de terreno calcinado dos estádios do interior. Ele vai deixar sua marca em toda a extensão da grande nação, a terra que ele ajudou a resgatar. Como Burt Lancaster que cruzou todas as piscinas do seu bairro num filme inesquecível, Romário dirá, até sumir por completo: O dia está glorioso. Vamos jogar futebol. Assim será com você. O dia está glorioso. Vamos fazer reportagem. Vamos ser jornalistas. Tem para todo mundo.

RETORNO - Canhoto da Paraíba agora é Mestre das Artes. Urariano Mota, que divulgou o abandono do gênio em rede nacional, pula de contentamento, mesmo sabendo que tudo isso ainda é muito pouco. Saiba tudo sobre essa vitória.

21 de outubro de 2004

ONDE NÃO HÁ ESPAÇO, HÁ ROMÁRIO


Não importa o tamanho do país. Importa quanto espaço existe nele para se viver. A posse folgada do território por parte do privilégio confina a maior parte do povo aos limites impostos ao menino Romário. Nessa escassez o grande craque inventou sua arte. Não se trata de sistemas decimais de metragem. Mas de possibilidades que a rua clandestina, o terreno derrubado para a estrada, o muro que rouba o calçamento oferecem para que o corpo possa driblar o limite e encontrar um caminho na área cercada de zagueiros ferozes. Para peitar essa barra, é preciso chamar a si a responsabilidade. E foi isso o que aconteceu. Em 1994, quando a nação estava erma de vitórias, depois de uma década perdida em fracassos sucessivos, veio de longe, do outro lado do mundo, curado de uma fratura nas pernas, o cara que tirou o país do atoleiro das certezas e inaugurou a dúvida, ou seja, a chance de um salto bem sucedido no abismo. Não havia espaço para nada: estávamos por um fio no jogo decisivo das eliminatórias. Havia apenas Romário. E isso bastou para que o grande país se reconciliasse com seu destino.

CHUTE - Foi nesse momento, quando perdíamos a esperança de participar na Copa dos Estados Unidos, no último jogo contra o Uruguai, que o grande craque disse: vamos nos classificar e vamos ganhar a copa. Foi a única promessa cumprida feita por um homem público no Brasil do final do século. Quando hoje ele rompe com o Fluminense e prepara-se para despedir-se dos jogos internacionais com um amistoso contra o México em Los Angeles dia 8 de novembro, Romário novamente chama para si a responsabilidade. Declara-se o maior depois de Pelé. Ronaldo Fenômeno deveria ter aprendido algo na sua vida e calado a boca. No lugar de dar uma resposta malcriada, de menino que não reconhece a liderança e superioridade de quem o precedeu (e o ajudou no início de carreira), deveria ter aplaudido. Foi preciso que Romário dissesse o óbvio para que caíssem em cima dele. Mas ninguém dirá por ele. Assim como ninguém arriscava nossa classificação em 94, como ninguém acreditava que a teimosia retranqueira de Parreira fosse dar frutos naquela Copa. Romário mudou Parreira para sempre e transformou-o num vencedor. Chamou o jogo para si e levou de trambolhão os adversários, compôs tabelas primorosas com Bebeto, homenageou com os quadris que se retiravam da reta o chute direto e salvador de Branco, e veio enrolado na bandeira da Pátria num momento em que estávamos feridos pelas traições da política e da economia e com o sucateamento crescente (que enfim se realizou) do futebol brasileiro. Romário carregou o Brasil nas costas. Estava no lugar certo naquela cabeçada contra os holandeses. Provou que a altura não interfere no futebol, apesar das insistências dos comentaristas que ficam medindo o tamanho dos zagueiros para provar alguma coisa, como se futebol fosse basquete.

PONTARIA - Romário não tem altura, não tem corpo de craque, possui pernas levemente tortas, herança talvez de uma infância sem proteínas suficientes. Suas armas são as posições que toma em campo, a inteligência com que acompanha e arma as jogadas, a pontaria mortal de suas investidas, o senso de oportunidade, a liberdade para inventar latifúndios virtuais em cubículos sem ventilação. O que mais incomoda no genial craque é que ele esnobou a riqueza, deixou de lado a grana dos gringos para voltar a morar no Rio de Janeiro. É preciso fazer uma leitura desse seu ferrenho nacionalismo. A copa nos Estados Unidos é fruto da opção feita por Pelé, que ensinou os gringos a jogar e tornou-se um mito movido a dólares (o que não lhe tira a glória de ser o Rei). Naquele campeonato, poderíamos ter falhado, dando certificado seguro para nos retirar do pódio definitivamente. Tivemos até a oportunidade de cair aos pés de nossos alunos, os gringos ruins de bola. Mas vencemos por um apertado um a zero e fomos em frente. Romário trouxe da terra americana a libertação do imaginário nacional do futebol campeão do mundo. Deixou os espanhóis furiosos porque não queria mais sair da praia. E, para quem é humano, por que abandonar o azul do mar, o cheiro de maresia, a areia branca e fofa, os corpos embalados pela divindade? Por que optar pela neve, pelo cofre, pela correria em campo? O mar, espaço infinito sem cercas ou sesmarias, é a melhor representação do sonho de quem superou as limitações físicas da geometria e da classe social.

DOMÍNIO - Romário posta-se na área como um predador. Não há espaço para jogo nenhum. A retranca triunfa. Mas a bola é aliada e resolver quicar na área, meio assim de graça. Caem em cima dela todos os jogadores do mundo. Romário apenas pensa e sai com a bola dominada, que já está no fundo do gol. Não havia espaço para coisa nenhuma. Havia, portanto, Romário. Vida longa ao herói da Pátria.

19 de outubro de 2004

TREZOITÃO NO JOGO DA VIDA

O homem que entrou de revólver em punho no cenário do programa Jogo da Vida, da apresentadora Márcia Goldsmith, na Band, domingo, encarnava a fala excluída que tenta reverter a situação. Bastou apontar o 38 para que o programa estivesse aos seus pés. A voz trêmula da apresentadora contrastava com sua segurança minutos antes, neste programa que é uma das muitas apelações para empilhar pontos no Ibope à custa da desgraça alheia. Márcia teve coragem de enfrentar a barra, apesar de, naturalmente, ter entrado em pânico (o que não é uma contradição, pois só há coragem se houver medo, coragem sem medo é covardia). Mas ela experimentou o lance de ficar à mercê da fala alheia, que se impunha por meio de uma arma. Essa experiência a desmontou e cobre de dúvidas a continuidade do programa.

CRÍTICA - Vim pedir ajuda, disse o intruso, que reivindicava ver os filhos, impedido que estava por sua ex-mulher. Seu erro foi segurar o microfone. Ele começou então a usufruir da oportunidade que tinha criado para dar seu recado. Distraiu-se ao ocupar a mão esquerda, deixando a outra, que segurava o revólver, amolecer. Foi quando um segurança aproveitou para desarmá-lo. Mais tarde, depois de ter sido imobilizado, confessou que já tentara o Ratinho e outros programas, mas sempre fora rejeitado. Seu gesto de desespero foi largamente explorado por esse obscurantista presunçoso que é o José Luiz Datena, que justifica o Jogo da Vida por dar de dez a 12 pontos no Ibope, e isso lhe basta para rejeitar qualquer crítica a esse tipo de apelação (essa é a realidade é sua tautologia favorita). A crítica não é permitida no Brasil, especialmente a crítica à televisão. A principal devastação provocada pela TV monopolista, que não admite críticas, é a de treinar a sociedade nas falas do poder, para que essas falas se reproduzam ao infinito e assim sustentem a divisão injusta de renda a que está submetida a população. A lógica elementar que norteia a falta de cidadania hoje está submersa no açúcar das materinhas politicamente corretas, no denuncismo das exceções (quando todo mundo sabe que são regras), no imobilismo social (fazer o quê? é o jargão), no horror à concorrência (não tem para ninguém), na catarse da violência para fins comerciais, na pseudo atenção aos telespectadores (Bom dia, imbecil), na desmoralização da educação (perguntas idiotas para respostas idem) e por aí vai. O mais grave são os testes de DNA, as brigas em família, os choros convulsivos, os casamentos arranjados em frente às telas, os dias de princesa (a ascensão lotérica, fonte de conflitos), os jogos da vida. Nessa mixórdia desceu de pára-quedas um desesperado de arma na mão, que poderia causar uma tragédia de verdade. Hora de reavaliar tudo, já que diante a morte tudo vira pelo avesso. Num surto de humanização, Márcia deu seu depoimento sobre o caso com a cara toda pipocada pelo stress. É o fim do império das aparências e o momento de uma súbita revelação.

ESCOLHA - A paz mundial ou a estagiária? perguntou o gênio para o presidente Clinton. Sabemos qual foi a escolha. O resultado foi a derrota de Al Gore para o cowboy, que pôs fogo no mundo. Clinton teve um enfarte recentemente, talvez por culpa, pois tinha tudo na mão. É uma pessoa brilhante e poderia ter usado sua inteligência e capacidade para promover algo duradouro e não a fajutagem global dos anos 90. Talvez seu estado tenha se agravado agora que toma corpo a versão de o 11 de setembro ter sido todo armado pela direita americana, conforme e-mail que rola pela internet. A versão é dada pelo historiador Stanley Hilton, que está sendo ameaçado e perseguido por declarar que Bush comandou pessoalmente os atentados. A idéia de transformar a presidência americana numa ditadura por meio de um falso Pearl Harbour tem 35 anos, segundo Stanley Hilton, que conviveu com a turma de Bush na época da faculdade. O site anti-Bush mais contundente é o Reseau Voltaire.

16 de outubro de 2004

A FRAGILIDADE DA ÉTICA


Superman, o filme, foi lançado em 1978, na época em que Jimmy Carter, à moda americana, tentava acertar os ponteiros do mundo dominado por ditaduras. No Brasil, a gestão Carter nos concedeu a anistia (de mão dupla, já que perdoou torturados e torturadores). Os Estados Unidos (depois do desastre Nixon) voltavam a acreditar na ética e é desse material que foi feito o herói reencarnado por Christopher Reeve. Nada mais frágil, e perigoso, do que se achar no lado certo, pois o Mal toma contornos nítidos para, por oposição, realçar uma ilusão, o Bem pronto e acabado. O cabelinho engomado, a roupinha azul e vermelha, a capa tremulante fazem de Superman a imagem da autosuperação dos gringos, que o inventaram na época de Roosevelt e o ressuscitaram no governo politicamente correto dos democratas, pré-estréia do que viria a ser o republicanismo messiânico de Reagan (pai da atual ditadura Bush) e da renovada República Velha no Brasil, a atual ditadura civil.

NUVENS - Mas os americanos sabem fazer cinema e não há cena de amor mais encantadora do que o vôo nas nuvens entre o herói e sua namorada. A capacidade de voar, premiada com um Oscar especial, e o carisma do jovem ator Reeve, somaram-se à atuação de grandes nomes, como Marlon Brando e Gene Hackman. Direção impecável de Richard Donner (que dosou humor com cargas maciças de aventura), música de John Williams (que criou um tema inesquecível) e um timaço no roteiro: Mario Puzo, David Newman, Leslie Newman e Robert Benton, que se basearam nos personagens criados por Jerry Siegel e Joe Shuster. O roteiro erra no fundamento: quando Superman faz a terra girar ao contrário (a velha mania americana de driblar a morte), ele refaz apenas as conseqüências da tragédia. A repórter volta a viver e a barragem deixa de explodir. Mas a causa da hecatombe (a bomba atômica viajando para o centro da terra) é simplesmente esquecida. É típico de um cinema que serve para iludir a massa e vender o bom-mocismo da América. Se, como diz Curtis White, o filme de Spielberg do Soldado Ryan serviu para preparar o mundo para a invasão do Iraque, Superman ajudou a embalar a cidadania iludida para o reagnomics que viria, o heroísmo hollywoodiano disfarçado em ética que acabou engolindo o mundo para a futura globalização. Nós, desde lado do universo, pegamos apenas a rebarba. Somos sempre figurantes menores no espetáculo internacional. Aqui, a ética é pelo avesso: se alguém está preso, sendo perseguido, é porque rebelou-se contra as tiranias. Se está sendo processado, é porque fez. Tanto faz roubar. Muita gente pensa assim.

ARROCHO - A ética, por aqui, está confinada ao isolamento da cidadania prisioneira (já em outra cela, feita pelas amarras do arrocho econômico). No fundo, a ética volta-se contra todo mundo, pois é usada pelo poder para continuar manipulando nossas vidas. Nessa armadilha, qualquer insurgência vira um álibi perfeito para alguém nos enquadrar em algum tipo de suspeita. A barbárie toma conta das ruas, mas já é de outra natureza: você está sendo observado, cuidado, não encoste sem querer em ninguém, vigie-se, pois qualquer movimento em falso e estarão lhe acusando de alguma coisa. Todos são éticos, consultores da humanidade. Você, pobre coitado, não passa de um sub-cidadão, esforçando-se para dizer sim a tudo, para escapar das garras da condenação eterna. Há um anjo armado de espada contra você. É a ética poderosa do Medo sem fim, a que te faz bem pequenino. Não siga nada, nem conte piadas. Poderá ser confundido com alguma coisa. E quando visitares tua terra, sorria quando te disserem: ué, não te prenderam ainda?

15 de outubro de 2004

CULTURA É OUTRA COISA

Cultura é o destino que damos à nossa composição biológica. Somos seres culturais que usam a estrutura física como ferramenta para a transcendência. Por isso não entendo quando os candidatos falam em cultura como se fossem pedras se referindo a musgos. Como se cultura fosse os eventos patrocinados, o nheco-nheco nos palcos, ou o ripi-rópi (que é a representação da surra em série levada pela marginalidade, por isso é que os dançarinos de ripi-rópi rolam sem parar e trocam os pés pelas mãos). Como se cultura fosse espaço multiuso, festival de alguma coisa. Como se cultura fosse uma multidão entornando cerveja ou artesãos repetindo modelos toscos de uma produção em série. Como se cultura fosse teatro, cinema, livro. Cultura é o que você é. Se alguém acha que pode colocar a cultura fora de si, é porque não enxerga essa evidência.

DESCONEXÃO - É por isso que Mario Quintana coloca a necessidade de esquecer antes de aprender. Esquecer, nesse caso, significa assumir a própria identidade e depois interagir com o que vem pela frente. Quando você vai ao cinema, não é o consumo passivo da produção audiovisual que importa. É o que você poderá lembrar desse momento, é o que modificou em você aquele filme, é o que você falou sobre ele, é como você se comportou na sessão. Assim também um livro, que é cultura apenas para o autor. Para você, que lê, importa é se o conteúdo mudou algo em você, serviu para o que te mantém vivo. Senão é perda de tempo. É um processo tão profundo, que existe um treinamento especial em massa para evitar cultura. Vejam a linguagem na mídia, é o empilhamento de lugares comuns, frases feitas, falas pré-concebidas. Isso tudo se encaixa e forma um noticiário, matéria, programa, entrevista (vejam como os entrevistados precisam seguir o script, senão o segurador de microfone completa a frase considerada correta e obriga o outro a repetir). Na educação agem pelo avesso: se esforçam para você odiar livros, debates, idéias. Tentam te impingir um comportamento padronizado, uma cultura oficial, uma percepção viciada. Cultura é dúvida, rasteira, pulo no abismo. É quando você age. Não quando você aceita (mas não é só o que você nega).

CONSUMO - A palavra consumo é a praga herdada dos anos sessenta, quando a produção prescrita pela mediocridade virou a casaca e tornou-se, em parte, de alto nível. Inventaram então o consumo, para que tudo voltasse ao normal. Eliminaram todas as batidas de bateria e inventaram o baticum triunfante. O cinema de transgressão, em vez de vencer, virou cult, ou seja, enterrado vivo. A guitarra, que era reinvenção da melodia, tornou-se ruído. O comportamento, que era na contra-mão, oficializou-se, de maneira errada. E foi colocada para baixo do tapete toda a maravilhosa produção antes dos 60, que só é resgatada na versão colorizada (para filmes, coisa que está em desuso), gritada (para canções que perderam seu frescor original), metida (nas artes plásticas, onde o lixo impera ao lado de olhares significativos de artistas sem brilho). A linguagem desconectada da nacionalidade, a cultura de palanque (chitãozó e chororinho, diluciano e cagargo), a socialaite ongueira, o tartaruguismo capoeirístico.

DEBATE - Vi ontem parte de um debate entre dois candidatos a prefeito, que mostraram-se gladiadores especialistas em jugulares. Não vou baixar o nível, disse um, não vou dizer aqui que você roubou 180 milhões no contrato tal. Isso não é do meu feitio. Prefiro falar em propostas, pois sou um candidato que respeita o povo. Proponho que o Ministério Público asseste as baterias contra a sua administração. OK, responde o outro, quero agradecer ao povo que votou em mim, mando um abraço para o Zé das Couves lá da Macaxeira, e aproveito para dizer que o candidato adversário é um incompetente e isso todo mundo sabe, haja visto que estou aqui falando que vou fazer tudo diferente pois sou jovem , dinâmico e fararei tudo pela cultura. Vamos providenciar para que os turistas tenham bastante povão fazendo micagens de circo, fabricaremos liteiras e abanos de penas de avestruzes para a negrada gerar um pouco de ventinho gostoso em quem traz dólar para cá, e atrairemos todos os bebedores de cerveja e pinga do planeta para que venham usufruir de nossas beldades, pois para isso serve esse povinho ingrato, que se não votar em mim arderá no fogo da fome e da violência para todo o sempre.

RETORNO - Fiquei de zap na mão pensando em cultura. É uma pena: quando a gente fala em cultura, eles sempre puxam o nosso talão de cheques.

14 de outubro de 2004

A VILANIA DIGITAL EM SUPERMAN III

Superman significa a velha tecnologia: o cara é de aço, tem visão de Raio X e voa como um avião. A revolução digital ainda estava no início em 1983 (e portanto era encarada como suspeita, inimiga da tecnologia dominante), quando Richard Lester dirigiu Superman III, o melhor filme da série, com o ator Christopher Reeve, que depois de longa agonia paralizado, morreu prematuramente aos 52 anos. Para quem, como os da minha geração, foi criado vendo o Super Homem em close e braços esticados fingindo que voava, a performance de Reeve (nos ventos da nascente digitalização das imagens) era um deslumbramento. Não só se deslocava de corpo inteiro, como pousava suavemente. Mas aquela ilusão trazia uma denúncia. Os computadores significavam o Mal. IDÉIAS - Apresentei esse insight na cadeira de História das Idéias, do professor Nicolau Sevcenko, da USP, que me deu uma nota razoável, talvez porque tenha atendido seu pedido: fiz um trabalho curto. Eu sou um só, dizia para suas centenas de alunos/admiradores. Mas vocês são inumeráveis. Se eu for para cima de vocês, não acontecerá nada. Mas se vocês vieram para cima de mim, eu não sobreviverei. Por isso, por favor, não ultrapassem as cinco laudas. Sevcenko é um dos mais brilhantes professores do Brasil e ter feito três cursos com ele foi um privilégio. No final de cada um, sempre aplaudíamos, não porque fizesse show, mas porque sabe demais. Sevcenko sobra. Só uma aula sobre o exército de Napoleão e as diferenças em relação aos exércitos tradicionais valeu por dez anos de faculdade. Sem falar nos seus livros, como o impressionante Orfeu Extático da Metrópole, que descerra a cortina de Sampa dos anos 20.

USP - Sinto falta da inteligência, do conhecimento, do acervo da USP, a universidade maior. Um curso de História do Brasil com o professor István Iancsó abriu meu espírito para o dúvida permanente em relação a tudo o que aprendi sobre o país. O Brasil é com-pli-ca-do, dizia escandindo as sílabas o húngaro que nos adotou e escreveu um livro magistral sobre a revolução dos alfaiates, Na Bahia, contra o império. István nos expulsa para sempre de qualquer anacronismo, o vício de enxergar o passado com os olhos do presente. Para esta época onde a revista de História estampa a manchete de um Alexandre Magno Jovem ( no sentido da juventude inventada nos 60; Alexandre nada tinha a ver com a palavra jovem) as lições de mestre István são valiosíssimas. Comparo suas aulas à metáfora criada por Chico Buarque na contracapa do primeiro disco de Gil. Chico compara a música de Gil à serpentina, que sempre nos surpreende, pois ao cair no chão dá mais uma volta antes de parar definitivamente. Quando a gente achava que tinha entendido tudo, István nos depositava, desarmados, na praia do nosso desconhecimento. Só assim poderíamos aprender alguma coisa. O curso que fiz com ele foi também para recém chegados à faculdade. Via então os olhos de pavor da meninada (o assustador abismo das possibilidades). Dos outros professores digo só o seguinte: Nanci Leonzo é fundamental para se entender o Brasil inventado pelas Forças Armadas; Teresa Aline é decisiva quando nos ensina a ver uma imagem para decifrar a sociedade que a produziu; Ulpiano Bezerra coloca a História Antiga no lugar devido, ao nos mostrar como podemos aprender sobre os ancestrais ao analisar documentos antiqüíssimos, sintéticos, aparentemente banais. E assim por diante. É a seleção brasileira de ensino. Só que faz gol o tempo todo, jamais empata.

RADICAL - No Superman III, Richard Pryor interpreta o ladrão que programa o sistema da empresa onde trabalha para receber os centavos devidos aos funcionários (sobras de salários). É descoberto então pelo dono da firma e é encarregado a construir um robô digital para enfrentar Superman. A briga entre a velha tecnologia da liga de ferro e carbono contra o monstro camaleão, ameaçadoramente virtual, é reveladora dessa transição que está longe de se resolver. No fundo, uma revolução veio da outra e as duas se completam, pois também o que era tradicional modificou-se junto com a radicalidade que trafega nas bandas largas da vida. Sempre achei essa interpretação óbvia, mas não vi nada parecido em nenhum lugar.

13 de outubro de 2004

O VOTO PRISIONEIRO

Se não houve mesmo fraude nas eleições; se os candidatos com voto zero não votaram de verdade em si mesmo, se o voto zero não significa, portanto, roubo, e não serve para desmascarar as eleições; e se os votos dados aos suspeitos, presos, indiciados, acusados foram dados de sã consciência; então precisamos pensar na natureza da nossa tragédia. Quase impossibilitados de anular o voto, de escrever palavrão na cédula, já que não existe cédula, muitos deixaram de votar ou usaram o voto para a transgressão. Votar no Maluf (ainda disputado pelo PT, apesar das acusações), que teria colocado, num só dia, um bilhão numa conta do Exterior; votar no cara suspeito de matar o fiscal do trabalho, ou no outro que estava cadeia e saiu porque foi eleito, significa que a democracia virou, no país insuportável, uma prisão. Vota-se por empatia, por fidelidade pessoal, para protestar. Nosso voto, carreado para quem fez melhor marketing, e não para quem vai fazer melhor governo, faz parte da cela onde nos metemos.

VIETNÃS - A imprensa estrangeira continua publicando asneiras sobre o Brasil. O Independent, de Londres (a cidade de pessoas mortas, que não se olham na cara, como testemunham todos os passam por lá) comparou o Rio ao Sudão e a Angola. Quando não conseguem nos enquadrar na hispanidad (como fez recente artigo na Folha, que falou horrores dos Diários de Motocicleta), nos jogam na África. A América Portuguesa é um enigma para os anglo-saxões, a brancalhada estúpida que domina o mundo, que promoveu o golpe de 1973 no Chile, levou um pau no Vietnã, matou centenas de milhares de civis no Japão com a bomba atômica e invadiu o Iraque dizendo-se que estão a serviço de Deus. Mas a imprensa deles não é o governo deles, dirão, há diferença! Conversa. Os jornalistas também não escapam do sentimento de superioridade de que estão convencidos e quem olha para nós é para despejar preconceitos. Não somos o Sudão ou a Angola, somos muito piores, porque somos maiores, mais complicados. Não nos enquadramos em comparações. Temos um, dois, três, mil Vietnãs aqui dentro do país. Cadáveres são carregados em carrinhos de mão pelos policiais cariocas. Crianças ferozes rapam os turistas. Gastam milhões discutindo a duplicação da BR 101 e a estrada continua matando, com pista única, no trecho que sai aqui de Floripa em direção a Portinho. Um governador é suspeito de mandar matar gente (acusação a Julio Campos, irmão de Roberto Campos, divulgado ontem na Globo). No segundo turno, os candidatos se jogam na jugular uns dos outros. Praias sempre sujas, favelas derramando-se sobre os outros favelões, os de concreto. O dinheiro da Bacia de Campos serve para empregar estrangeiros em Magé e lá construir mansões, como mostrou, orgulhosamente, o Globo Repórter. Crueldade e indiferença são nossos principais governantes. Para onde nos movemos, há criminalidade. Quem disse que somos a África? Somos o Brasil, o país insuportável. De nós, sabemos demais. Nosso álibi é separar tudo em postas para ser servido à consciência, que assim vai deglutindo tudo devagar. Não vejo nada disso, diz uma aposentada fazendo jogging no Leblon.

SABINO - O roubo aqui é de bilhão para cima. Banqueiros fazem greve de bancos, pois é deles esse movimento: como não dar aumento aos grevistas depois de terem lucrado tanto? A imprensa vai até o rio Tietê e faz matéria lá sobre os mosquitos. Por que não perguntam ao governador: o Sr. tem vergonha na cara? Então dá um jeito no Tietê. Ninguém dá, fica tudo assim. Para quem quiser saber do que estou falando, basta visitar o Fotogarrafa, de Marcelo Min (link ao lado), que mata a pau denunciando a concentração de renda em São Paulo. Dinheiro sai, literalmente, pelo ladrão. Os salários minguaram e sumiram. Mas o país cresce, pelo menos até dia 31 deste mês, eleições do segundo turno. Espancamentos na rua, mortes, rebelião nas favelas, assassinato de Apoena Meirelles. Morre Fernando Sabino e Salviano Santiago aproveita para dizer asneiras na Folha, comparando o escritor morto a Érico Veríssimo. Este, segundo o artigo de hoje, teria escrito entretenimento com qualidade, enquanto Sabino, sim, não deu o braço a torcer, tudo pela literatura. Nada contra Sabino, tremendo cronista e romancista. Li Encontro Marcado e me assustei, vi o Homem Nu, com Paulo José e achei demais. Mas Zélia, uma paixão é o quê, senão apelação? Érico Veríssimo, além de magnífica obra (entretenimento um bom cacete) construiu a Editora Globo, que ajudou a civilizar o Brasil soberano, esse país que jogaram fora junto com as crianças. Érico insurgiu-se contra a ditadura que queria colocar publicidade nos livros. Sabino fez uma apologia da ministrona que enterrou o país. Vamos com calma que Cruz Alta fica mais em cima. Voto livremente em Érico, pois continuo no Continente, cercado no Sobrado, mandando bala.

12 de outubro de 2004

O PEREGRINO ENCONTRA O ABISMO



O 12 de outubro, por ser o dia de Nossa Senhora Aparecida e da Criança (a inocência protegida pelo sagrado), é também dia de Romaria, a obra-prima de Renato Teixeira, imortalizada por Elis Regina. O que diz a canção? Numa leitura livre, narra pela voz de um peregrino o encontro com a possibilidade de um milagre, que seria a paz nos desaventos, a tranqüilidade de espírito no país insuportável. Não há treinamento para se chegar a esse objetivo.

O cavaleiro que conta sua desdita justifica seu despreparo traçando o perfil de suas origens, família, negócios, andanças. Ele não se conforma com o Mesmo, a repetição da tragédia que é sua vida e vai em busca do Milagre, que significa interrupção, quando o chão falta e tudo pode acontecer. Para encontrar o Milagre, ele vai embora (dá o pira), sabendo que veio do pó e que o pó (de Pirapora) não é território do sagrado, a não ser que haja fé. Por isso o abismo se abre diante do seu olhar, seu olhar.

SANTA POPULAR - A grandeza do poema nos pega na primeira nota: É de sonho e de pó/ O destino de um só/ Feito eu perdido em pensamento/ Sobre meu cavalo. A solidão é o monólogo, a fala sem interlocução, o som sem eco, a palavra perdida no infinito do deserto, o pó de que somos feitos, o sertão, o interiorzão, onde nada existe, a não ser o cavaleiro e sua montaria. Nessa vida, não há espaço para a imaginação, a transcendência: É de laço e de nó/ De jibeira ou jiló/ Dessa vida/ Cumprida a sol. A saída é a invocação à Santa, para conseguir superar esse laço apertado da pobreza e a dura luta pela sobrevivência.

Uma invocação que não esconde a origem do narrador, caipira, pertencente a uma comunidade (caipira nossa), devota à Senhora de Aparecida. A santa é a prova de que, sob as águas da luta sem igual entre o homem e seu ambiente, entre a miséria e a vontade de continuar vivendo, é possível existir o milagre. Do fundo das águas, surge a representação da Santa, a imagem, o sinal, e desse evento nasce sua intensa carga popular. É uma santa do povo, porque está debaixo dágua, invisível, e foi pescada por pessoas de fé, que por seu intermédio encontram a fartura.

Não é de outra natureza a lenda da Santa: sobreviver com dignidade, usufruindo do Milagre, ou seja, da mesa farta e generosa, contrariando assim os desmandos que geram a fome e a morte prematura. O milagre é possível, ele aparece no meio do trabalho e provê os frutos da água e da terra. Essa possibilidade (a fartura em meio ao deserto social) é que precisa iluminar a mina escura e funda dessa vida pessoal condenada ao fracasso. Ilumina a mina escura e funda/ O trem da minha vida. Essa iluminação, ao mesmo tempo, funda o movimento (trem), que carrega os bens (trem) de uma vida que então se renova. A dupla significação da palavra funda é um dos achados mais preciosos da cultura brasileira e merece sempre ser celebrada como um dos momentos de esplendor da nossa poesia.

FORMAÇÃO - De onde vem o peregrino? Vem da dor ancestral de um país partido: O meu pai foi peão/ Minha mãe solidão/ Meus irmãos perderam-se na vida/ Em busca de aventuras. O narrador cumpre a sina da imobilidade social, pois é peão como o pai. A mãe é o conformismo, a solidão diante do massacre social. Os irmãos tentaram sair da miséria, mas perderam-se em busca das aventuras que o livrariam da sina. O peregrino também tentou sair daquele jogo que o matava: Descasei, e joguei/ Investi, desisti/ Se há sorte, eu não sei, nunca vi.

Por meio da sorte fica impossível encontrar uma saída, pois trata-se de uma armadilha: a ascensão social via loteria é um jogo mortal de cartas marcadas. Não sobra sorte para quem vem do povo. Mas existe uma possibilidade, a romaria até a Santa: Me disseram porém/ Que eu viesse aqui/ Pra pedir em/ Romaria e prece/ Paz nos desaventos. Que paz é essa? A paz social. Eliminar os desaventos, conseguir superar as dificuldades da sobrevivência, conseguir viver em paz, sem ficar permanentemente à mercê das intempéries. Há, porém , um problema: Como eu não sei rezar/ Só queria mostrar/ Meu olhar, meu olhar, meu olhar. Eis uma estrofe que merece ser colocada no alto da casa, para iluminar a noite. Pouca coisa se compara a esses versos finais. Impressiona pela ousadia, e nos revela que música popular é criação do mais alto nível.

ESPERANÇA - Sem saber rezar, sem ter cultivado a herança da oração, por ter se perdido em tantas tentativas, por estar absolutamente descrente de tudo, o peregrino está mudo diante da possibilidade de um milagre. Ele não espera mais nada, tem apenas a oferecer a sua expectativa, a sua integridade de pessoa à margem, de espectador permanente. Ele observou tudo na vida, a luta dos pais, as desventuras dos irmãos, sua falta de sorte.

Agora, convocado pela comunidade que ainda acredita na interrupção do Mesmo, ele vai até Aparecida mas chega lá e não encontra palavras de oração, que não possui mais, ou nunca teve. Fica então diante do Abismo, a possibilidade do Milagre. Ele olha para aquela chance sem poder tocá-la. O narrador se transforma na voz do cantador, no recado do compositor, na devoção dos ouvintes. Só com essa canção, Renato Teixeira atingiu a glória.

Graças a Deus, e a Nossa Senhora Aparecida, naquela época em que a música foi feita, tínhamos um milagre chamado Elis Regina, aquela que nos revelava o Brasil profundo, hoje mais oculto do que nunca. Tantas canções se perdem em função do horror do ruído que nos massacra. Redenção, um milagre, pedimos neste dia. Para que a Inocência do peregrino ainda criança diante da Santa esteja totalmente protegida. Rogai por nós, Nossa Senhora Aparecida, pela música do Brasil, que nos falta, como o chão no precipício.

RETORNO - 1. Ontem tive o privilégio de almoçar e conversar com Moacir Bastiani, nosso peregrino marista, que foi a pé, desde o Colégio Nossa Senhora do Rosário de Porto Alegre até o Colégio Santana, de Uruguaiana, por mais de 600 quilômetros à mercê do sol e da chuva pelo meio do pampa. Moacir foi recebido com festa na nossa cidade e tem tudo documentado num livro que será editado. Veio me dar a honra de escrever o prefácio, missão que aceitei com alegria nesta homenagem aos professores católicos que nos abriram as portas do conhecimento e nos incentivaram a fé nos milagres.2. Imagem desta edição: capa do disco de Elis onde está a gravação de Romaria.

11 de outubro de 2004

A LÓGICA DAS BARREIRAS



Como a bola rola redonda no chão liso de grama, é preciso criar dificuldades para atrapalhar a boa vida dos jogadores. O impedimento é uma delas. A barreira, outra. Os venezuelanos criaram a tática de empurrar, provocando um efeito dominó, os jogadores postados um ao lado do outro, criando assim à força uma avenida no meio do muro humano. Já Alex, do Brasil, sabe que o futebol é quântico. Então inventou uma probabilidade: a bola passa num claro virtual entre as cabeças dos adversários e cai miseravelmente no canto direito, fazendo com que o goleiro deles bata os braços na trave. Como ele pôde colocar a bola daquela maneira, se ela tinha tudo para não cruzar a muralha? Porque o futebol é ilusão e tudo pode acontecer. Vejam como o primeiro tempo do jogo da seleção virou de lado sem que ninguém mudasse de campo: foi a ilusão criada pela troca da câmara que fez a virada antes do tempo. Por ser uma ilusão, futebol é invenção o tempo todo. Inventar, verbo definitivo. A seguir, minhas invenções sobre o mês de Outubro, artigo publicado neste domingo no Diário Catarinense, no caderno Donna.

VENTOS DE OUTUBRO

Nei Duclós

Outubro é uma palavra que tem estrutura para abrigar dentro de si o amadurecimento do espírito diante do esplendor da estação. A primavera venta no mês que brilha ao trazer no próprio nome a chave de sua intensa revelação. A vogal que inaugura a palavra outubro, e ao mesmo tempo a encerra, sugere uma retomada em outro plano, num movimento em espiral. O teto sólido de sua segunda sílaba parece proteger o corpo torturado pelo inverno. O rebentar de algo no final do vocábulo lembra broto ao sol. Por isso outubro é um mês de devoções, como atestam as romarias para Nossa Senhora Aparecida. Sua doçura anuncia a inocência, já que nele costumamos celebrar a infância. E é o prenúncio de mudanças, como comprova a saga revolucionária do século passado.

REVOLUÇÃO - Batizado assim como alegoria poética que reflete a transformação humana, outubro dá bandeira de uma radical tomada de posição. Quando nossa geração foi para a rua no final dos anos 60, essa palavra funcionava como uma convocação Os sonhos guerreiros conviviam como a pregação do equilíbrio e da paz. Os poetas que decidiram expor-se em praça pública, naquela época em que assumir gestos novos significava arriscar a vida, sabiam que a mudança seria muito mais lenta do que se esperava. A revolução se fazia dentro de cada um, nessa morada de algo muito maior do que uma identidade física e pessoal. Descobrimos mais tarde que nosso esforço tinha servido de insumo para outras coisas, algumas opostas a nós, e que a juventude fora transformada em comércio. Perdemos assim o ar de ouro que envolvia a mitologia de outubro e guardamos as palavras num arsenal à parte, onde o tempo servia de forja para uma vida que pensou resolver-se cedo, mas que entendeu-se muda. Silenciar diante da guerra triunfante de adversários longevos foi a prova dos nove da nossa alegria. Por dever de ofício, a vida nos dispersou e nada mais nos reúne, a não ser uma vontade fisgada daquelas águas ainda intactas e que afloram como vertente na montanha. Ninguém pode com o fio da fonte com vocação de rio, nem com a força ribeirinha que por todos os meios alcança o mar.

COLHEITA - Mas o jardim em frente nos avisa o quanto é provisória essa fase do ano em que recolhemos os cacos espalhados pelo frio e reunimos forças para um novo passo. A rosa que explodiu cedo anteontem, de um amarelo estranho, agora descamba suas pétalas para formar um quadro desolador. Inauguro então paisagens internas alternativas, em que nos vemos dentro de nossa pregação, num mundo criado pelo que precisávamos ser. Não há, entretanto, proteção para o que História nos obriga. Carregamos o fardo do tempo nos ombros, como um cabrito morto, enquanto cruzamos um vale infinito de indiferenças. Essa talvez seja a nossa prova final. O de persistir na grandeza quando tudo nos diminui, o de assumir o risco quando tudo nos leva ao desaparecimento, o de tornar suave o que herdamos de duro. Sempre há os que continuam rindo, como faziam naquele tempo que hoje nos soa heróico, mas que foi igual a todos os outros, pois cada minuto encerra sua imortalidade e sua mortificação. Entregar-se a uma mitologia de primavera quando a poesia se desdobra em tantas invenções vestidas pela pose e a sabedoria, seria uma insistência vulgar no que pretensamente foi enterrado. Mas se existem ainda montanhas, e se os terrenos baldios continuam a inventar flores não catalogadas, e se há poesia no peito apesar da colheita de punhais, é necessário sentar-se humildemente diante das palavras que batizam a natureza. É perda de tempo, me diz a vanguarda. É isso mesmo, mas nem tanto, me falam os saudosistas. Entre os dois pólos, fico à espreita.

VERBO - Abro cedo a porta da casa e espio as nuvens. Elas dão o roteiro dos ventos de outubro, que sempre estão por chegar. Aportarão do norte, com seu mau humor, do sul, com seus excessos, do leste, com sua serenidade, do oeste, com seus mistérios. Não há ventos em outubro, me dizem. Isso é coisa de setembro ou novembro. Pode ser. Mas costumo misturar tudo, e me invoco mais com o som das palavras do que com as certezas da meteorologia. É certo que outubro é o mês totalmente identificado com a primavera deste lado do mundo, e por isso se estabelece como oleiro de finos materiais. Um deles é a poesia. Esclareço então que vim de outubro e para ele parto, com o bolso cheio de milagres. A rua continua viva, como criança protegida pelo sagrado. Nela planto o que me escapa, neste futuro que nos surpreende. Somos o que não finda, diz o verbo que me habita.

7 de outubro de 2004

TERRA DE ESCRAVOS

A única relação humana existente no Brasil é entre senhor e escravo. Tanto faz patrão/empregado, pobre/rico, branco/preto, estancieiro/peão, professor/aluno, pai/filho, homem/mulher, gerente/funcionário, comerciante/freguês, motorista/pedestre, primogênito/caçula. É disso que cuidam as novelas da televisão, em todos os horários: a escrava Isaura, a cabocla, a senhora do destino, a terra nostra. Em todas as cenas, uma empregada de uniforme, ou um cocheiro dizendo sim, patrão, um barão dando ordens, uma patroa expulsando alguém da sala. Como há oposição permanente entre as pessoas divididas pela classe social, toda afetividade está também dominada por essa mancha: a mulher que apanha, o filho do fazendeiro que ama a criada, o amor impossível, o filho roubado. Não há perdão porque não há equilíbrio social. Há sofrimento no país que, por isso mesmo, é insuportável.

VIOLÊNCIA - Em terra de escravos, todo mundo é senhor. Existe pânico da miséria. Pobre dá azar, costuma-se dizer. Todos nascem com um pé na escravidão e por isso tornam-se, automaticamente, senhores. Todo mundo te peita, pois ninguém quer fazer papel de escravo. Ninguém te escuta porque quem berra é o patrão, quem ouve tem que obedecer. Fala-se ao mesmo tempo em todos os cantos: nos ônibus, nos bares, nas reuniões de trabalho. Não existem mais ouvidos, mas falas. A violência é o caminho mais curto para reverter o vínculo. O escravo de arma em punho torna-se senhor. Ele inclusive quer os bens, as posses da vítima, pois assim será como o outro, que detém no bolso e nas mãos o que ele sonha ter. No trânsito, ninguém suporta ficar atrás de qualquer pessoa, porque isso significa estar na cola, à mercê da liderança alheia. É preciso ultrapassá-lo, humilhá-lo, xingá-lo porque é velho, mulher, feio ou estrangeiro. Se existe alguém na frente, é porque ele está usurpando o lugar que é devido ao que vem atrás e que fica furioso, buzina e acende as luzes altas para expressar sua inconformidade com a situação. Pois ele é que é o senhor, como pode ficar atrás? E quem tem o desplante de ficar na minha frente, eu que sou o senhor de todos os mares? A conseqüência é visível: morte instantânea e em massa por todo lugar. Os cadáveres se empilham, inviabilizando entre nós a literatura policial, pois o excesso desmoraliza a investigação, a crueldade institucionalizada esconde a ética, o caos impede a segurança e a solução dos casos, que são o desfecho feliz de qualquer bom romance de detetive. Sherlock Holmes faz parte da cultura de uma civilização que, pelo menos em tese, se opõe á barbárie. No Brasil, seria preso. Ou atropelado (olha o cara de capa comprida e boné!).

POWELL - Entro na lavanderia e alguém está ao telefone. Aguardo alguns minutos. De repente, incomodada com minha presença, a atendente lasca, levantando a cabeça e alteando a voz: o que é que você quer? Ela é dona do estabelecimento e você é um intruso. Você foi lá porque é uma pessoa precária, não tem o que nela há de sobra. Ela poderá até compartilhar o que tem, desde que você pague antes e não diga absolutamente nada. Assim é o comércio no Brasil, com raras exceções. Bolei alguns estabelecimentos. Arrogância Modas é um deles. Tu-Não-é-Daqui Presentes é outro muito bom para lugares turísticos. Pontapé Calçados até tem um perto de casa. Suma Daqui poderia ser uma perfumaria. Cidadania é marketing no país insuportável. Todos falam em democracia, liberdade, responsabilidade social. Mas as crianças pobres fazendo coreografias para Collin Powell foi de dar dó. O país de escravos exibe-se diante do todo poderoso. Mostramos assim nossa escassez, nossa precariedade. Lutando capoeira, claro. Pois a capoeira é o gesto que nos define: representação da violência, origem escravista e agora espetáculo para americano ver. Sorte que a ficha caiu na Folha, que estampou em primeira página ontem, quarta-feira, aquilo que os admiradores do Fotogarrafa conhecem há dois anos: o talento de Marcelo Min, em foto esplendorosa retratando Powell ( e comitiva cheia de caratonhas) atrás de um aviso de cuidado, rede elétrica. Magistral. Com Antonio Gaudério e Marcelo Min, a Folha está imbatível no fotojornalismo.

RETORNO - 1. Falta complementar: a percepção geográfica também está abraçada a esse tipo de relação. Sudeste/Nordeste, Sul/Norte, Litoral/Interior, Capital/vila. Sempre tem uma região que é senhor, e a outra que é escrava. 2. A representação do patronato, nas televisões, é o papel principal dos atores brasileiros. Tanto de um lado (a representação pura e simples da barbárie do poder), quanto do outro (a representação preconceituosa do povo, colocado sempre abaixo da linha dágua pela performance crítica dos atores, todos formados no teatro batizado pelo marxismo, o que torna essa atividade uma ironia profunda, pois o distanciamento proposto é sempre a favor do poder). 3. Meu texto Vá direto ao ponto está já no La Insignia. 4. Amanhã, sábado, estará nas bancas mais uma edição do Diário Catarinense de domingo, que publicará novo artigo meu no caderno Donna. Minha colaboração lá é mensal.

6 de outubro de 2004

VÁ DIRETO AO PONTO



O ponto a que se refere o título não é a essência, a substância, o sujeito do teu texto (isso é outra coisa), mas o ponto final da primeira frase. Para ir direto a esse alvo, é preciso que você construa a mais forte, contundente, clara, inesquecível primeira frase da sua vida. Todo o resto do texto é desdobramento desse achado. Quando enfim você chega ao ponto final, lá no pé do teu trabalho, é porque tudo o que a primeira frase encerra está perfeitamente resolvido. Hoje, por falta de formação, os jornalistas colocam antes a tralha do texto, o que é marginal ao sujeito (que é a essência do que você quer transmitir). Sinal que produzir pensamento está atrelado à falta de cidadania, pois o que vale fica em segundo plano. Exemplo: colocar nomes, cargos, datas antes de tudo o que vale a pena dizer.

DIVISÃO - Mas o que é a substância do texto? É aquela massa virtual de pensamento produzida pelo leitor quando se debruça sobre o teu texto. Para chegar até ela, você precisa fazer um exercício de dramaturgia, colocar-se na função de quem lê e tratar o narrador (você!) e sua rede, seu tecido, seu texto, como estranhos. Ao se colocar nesse papel, elimina-se imediatamente todo preconceito que existe contra os Outros, já que você se torna o Outro. Todo mundo se considera o rei da cocada preta, portanto você é o maioral que está lendo o que um tal de fulano (você mesmo, seu!) está escrevendo. Essa divisão interna é pura arte e não doença psíquica, como alguns engraçadinhos já devem estar pensando. É um truque, mas não encare como truque. Use a técnica brechtiana da desdramatização. Funciona assim: o ator, ao assumir um personagem, o tempo todo dialoga com essa criação. Brecht, no seu trabalho de desalienação da arte, marxista magnífico que era, tornou essa ação transparente aos espectadores. Isso foi usado magistralmente em Os Inconfidentes, de Joaquim Pedro, em que os atores se viram para a câmara, narram a cena e imediatamente assumem o personagem. Você fica sabendo que é o José Wilker ou o Paulo César Pereio que estão lá, te contando algo, e não que você está assistindo uma reprodução de época ou coisa que o valha, ou embarcando na ilusão do século 18. Assim é também com os textos. Você assume um personagem (o leitor), conversa internamente com ele, e tua narrativa então fluirá sem alienação nenhuma, firme e forte. Brecht é sempre bem-vindo. Beth Toth, nos comentários deste Diário, citou Brecht falando que algumas pessoas, que lutam sempre, são insubstituíveis. Isso é Brecht puro, como todos sabem. Está num dos maiores livros de poesia de todos os tempos, Poemas e Canções, editada pela José Olympio.

NETUNO - Mas o sujeito não é você, nem o leitor, nem o que você representa na sua cabeça como sendo o leitor (que não está dividido em nichos, como imagina o marketing). É, como disse acima, a massa virtual de pensamento produzida por quem lê. Nem tente manipular esse objeto selvagem. Cumpra sua função e retire-se para as montanhas geladas. Não espere reconhecimento pelo que você escreve, porque escrever é um trabalho que fica abaixo de todos os outros, desde sempre. Produzir pensamento não faz barulho, não exige gestos, não depende de força bruta nem de físicos em performance. Trata-se de algo reservado aos loucos, aos tímidos, aos que nunca mais voltaram, aos que te abraçam sem pedir documentos. Isso serve para a literatura e o jornalismo. Os craques do texto são como os craques da bola: não possuem físico para representar o que criam (com exceção de Pelé, mas Pelé é Rei, não vale). Eles são inimigos da moda que existe hoje de escrever sem assumir o sujeito da fala, ficar a reboque de falas alheias (por isso se usa tanto de acordo, segundo, para fulano). Esse tipo de costura mata qualquer texto. Você precisa chegar à substância para que ela seja o capitão desse barco. Ela comanda, ela costura. Uma frase assim grudará na outra, cada parágrafo não terá vida independente, pois fará parte de uma confederação de nações e teu texto brilhará como a estrela guia, no fundo do breu, em pleno alto oceano, quando todos dentro do navio estarão horrorizados com a mesmice e a escuridão. Subirás então teu lume no alto do convés e depois, abandonando o pódio que ocupaste por alguns segundos só para destacar tua obra, mergulharás para sempre até onde mora Netuno, o rei do movimento infinito das águas eternas. Serás lembrado então nas histórias que os duendes contam para as crianças, como um herói composto pela narrativa iniciada por uma frase inesquecível.

5 de outubro de 2004

SELA DE VELUDO NO DRAGÃO EM CARNE VIVA


A Folha Mundo está afiada. A série de matérias sobre Bush, selecionadas da imprensa internacional, dão o perfil acabado do presidente do Eixo do Mal. A Folha tem melhorado em todos os sentidos. Mas, como o resto da mídia, não se comportou bem nas eleições. Colocar fotaça de Serra e Marta na capa no dia 3 foi um acinte (como ficam os outros candidatos, ou o Ibope manda e não pede?) Houve briga entre militantes de Serra e Marta no local das apurações, a polícia caiu em cima com gás com pimenta, atingindo os mesários e por isso a contagem dos votos atrasou. Vi isso em algum lugar, acho que na Band (sem as imagens), depois a notícia desapareceu (pelo menos não vi mais). O tom do noticiário ficou assim uma representação da paz na democracia, o que equivale a colocar sela de veludo num dragão em carne viva.

MONTENEGRO - Depois que as pesquisas mostraram suas falhas gritantes (errou por seis ou sete pontos em Sampa e Floripa) lá vêm as justificativas, com a caratonha à mostra do sr. Montenegro, dono do Ibope, um sujeito que está no poder há décadas, influindo nas votações com sua hegemonia estatística. Agora ele está mais comportado (talvez seja devido ao início de alguma concorrência). Antes usava camisa aberta ao peito com medalhão brilhando, numa demonstração de força visual machista. Agora fecha os botões e faz cara compungida, mas continua o mesmo. Deveria ser proibido de fazer suas pesquisas. Já errou várias vezes e continua mostrando os dentes toda vez que vem eleição. Mantém sempre um nível de aceitação na imprensa. Pesquisa eleitoral deveria ser proibida. O noticiário das eleições segue o ritmo de pacificação do país em guerra. Destacam-se as curiosidades, alguns idiotas que fazem campanha para vereador, a toda hora reforçam a idéia de que houve tranquilidade, apesar das tropas federais em vários municípios, milhares de urnas quebradas, candidatos acusados de crimes que são super votados e assim por diante. Além da pequena cidade do Paraná que votou 100 por cento nulo, obrigando a ter novas eleições com outros candidatos. O que é normal é confundido com exceção e a exceção vira a regra. No mesmo dia da votação, começaram a pipocar notícias preocupantes sobre ameaças ao crescimento. Ainda haverá esperança até dia 31 deste mês, depois tudo volta ao normal. Uma coisa chama a atenção: como falam em consolidação da democracia! Ué, não estava consolidada?

MAIS! - As cinquenta obras fundamentais em várias áreas do conhecimento, que nunca foram traduzidas no Brasil ou estão em edições esgotadas entre nós, foi a mais importante pauta da imprensa dos últimos anos. Isso sim é saber fazer pauta: convidar especialistas e colocar a lista daqueles livros que desconhecemos porque nunca chegaram até nós. Ninguém deveria jamais sair da escola. Essa história de estudar por um tempo e depois retirar-se para a ignorância é um erro estratégico. Escola deveria ser obrigatória sempre. Se você pára de ler, regride, esquece, mistura, confunde. Afiar a cabeça todo dia é como se alimentar, com perdão da metáfora. É a única maneira de enfrentar o império das aparências que nos dominam. Agora o técnico Leão fica chamando todo mundo de gordo. Pessoas negras falam na Folha que desistiram de estudar pela perseguição dos colegas cheios de preconceitos. Negro, baixo, gordo: nosso corpo sempre está errado, nunca ninguém está satisfeito com ele, a não ser que tenha outros interesses. Comentar aparências, para mim, é o cúmulo da grosseria. Isso só se resolve com estudo. O melhor depoimento sobre Bush é do seu professor em Harvard, que está sendo ameaçado por dizer a verdade. O seu aluno era perspicaz, mas preguiçoso, relaxado, presunçoso. Em outra matéria da Folha Mundo, nosso coração se parte ao ler sobre a história do pai que perdeu mulher e filha e todos os dias serve a mesa para elas. Sua tragédia pessoal é pública, pois foi na escola russa tomada por bandidos de todas as facções que houve o desenlace. O dragão corcoveia e não há sela que aguente. Precisamos ler, rezar e ocupar nossa posição no front.

4 de outubro de 2004

O BOM BOI BERRA


Tem um poema de Torquato Neto que diz mais ou menos assim (citar de memória é a verdadeira citação, citar letra por letra é cópia): coloque um homem e um boi na fila do matadouro; aquele que berrar é o homem, mesmo que seja o boi. Custou a cair a minha ficha sobre esse achado do genial poeta baiano (mais um!). O humano é aquele que se rebela e pode se manifestar numa pessoa como em qualquer animal condenado. A insurreição humaniza, tira da condição irracional. As eleições de ontem mostraram o povo amarrado às cartas marcadas das eleições, propostas como um embate entre PT e PSDB. Não houve acidentes graves, repetem sem parar. O povo (que não sabia votar, lembram-se?) agora aprendeu, graças talvez às propagandas dizendo para não votar em corrupto. Ah, que bom que vocês nos avisaram!

AMOR NACIONAL - A montanha de dinheiro gasto nas eleições significa só uma coisa: que tudo será pago pelo povo. Quanto as gráficas não faturam com essas montanhas de papel pintado! A lei, mesmo, a que proíbe boca de urna, não foi respeitada. Fizeram o que quiseram na fila. Em Floripa, o PT amarga um desonroso quarto lugar, com o candidato Afrânio Boppré. O PDT, que não acredita em si mesmo, fez coligações. Grando, ex-prefeito sobre o qual se depositavam as esperanças de segundo turno, ficou de fora. E Chico Assis, ex-secretário de obras de Ângela Amin, vai disputar com Dario Berger, que sugere dinamismo nos gestos e na fala (lembra alguém, mas não vou dizer). No fundo, a gestão de Ângela Amin, do PFL, foi competente: transformou Floripa num case de amor nacional e tornou a cidade esplendorosamente limpa. Tropeçou ao permitir que aumentassem as passagens de ônibus, já no final dos seus dois mandatos. Houve revolta popular e tiveram que recuar. Isso jogou sombra na candidatura da situação, mas assim mesmo ela se saiu bem nas urnas, sinal que houve reconhecimento pelo trabalho feito, já que Assis não possui nenhum carisma. Aliás, o ar de mosca morta dos candidatos vitoriosos, como o correto Pimentel, do PT de Belo Horizonte, que ganhou no primeiro turno, parece nos dizer que o povo cansou de gestos grandiloqüentes, braços levantados e vozes altissonantes. A política entra em rimo de bossa nova e nós, que sofremos da ressaca da ideologia, e que queríamos, ao fundo, Jimi Hendrix tocando Peace in Mississipi (a mais contundente faixa musical do século 20), ficamos escutando: bim, bim, bom, é só esse o meu baião. É bom de ouvir, mas onde estão os tambores? Talvez isso mude no segundo turno.

MALUF - A declaração de José Genoino que quer o voto não só dos malufistas, mas do próprio Maluf, é da lógica da eleição (quanto mais voto, melhor), mas contraria a lógica do eleitorado. Os malufistas são opostos aos petistas, e declaradamente não gostam de Marta. Não votarão nem atados no PT. Serra deverá ganhar de lavada e se for inteligente poderá fazer de São Paulo uma cidade um pouco melhor. Não precisa muito, pois a cidade anda sozinha. É só não deixá-la abandonada, como fez a Erundina (que foi-se), não deixar roubar (para o dinheiro público não ir para o ralo), cuidar de ruas, calçadas e pontes e não pensar na Presidência da República. Ficar na sua, cuidar de Sampa. Se fizer tudo certo, terá estátua em praça pública. São Paulo é carente. É uma barbárie nas ruas, mas se você fizer uma gentileza, o paulistano se desmancha. Agradece, te buzina, te abana. É pura carência. O paulistano, nascido lá ou não, é um lutador. Por isso ficou tantas décadas nas mãos do populismo de direita (o verdadeiro populismo), capitaneados por Adhemar, Jânio e Maluf. Estes, espertamente, souberam capitalizar essa energia de Sampa, se identificar com ela. Mas esses políticos (e seus clones) ajudaram a destruir São Paulo, que tornou-se o caos. Mas basta uma administração razoável para que o esplendor da maior cidade do mundo ressurja como um recado do Brasil que sabe se superar. Assim também em Floripa: quem ganhar, basta não fazer nenhuma grande burrada, que a cidade se segura.

RETORNO - Jandira Feghali, do PC do B, conseguiu expressiva votação (7% do eleitorado carioca). Tem força nas urnas, portanto, futuro. Merecia ganhar, por ser a melhor. Mas nada como uma eleição depois da outra.