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30 de outubro de 2004
LER NO FERIADÃO
O brilhante jornalista Dorva Rezende edita o caderno Cultura, do Diário Catarinense, aos sábados, um trabalho que está fazendo História. Hoje, além de valorizar minha resenha sobre Curtis White, que reproduzo a seguir, coloca em cena ensaios sobre romance de Beatriz Bracher, assinado pelo professor Manoel Ricardo de Lima (texto que é um ataque inspirado contra a mesmice cultural do país), outro do professor Sergio Medeiros sobre T.S.Eliot, mais um sobre o poeta estreante Ricardo Schimidt Carvalho, assinado pelo poeta e crítico literário Ricardo Pedroso Horta e ainda um texto dele mesmo, Dorva, sobre esse talento do Brasil musical resistente que é Victor Ramil. Ler no feriadão: eis nosso ofício nesses dias em que a votação será seguida do Dia de Todos os Santos e da homenagem, no dia 2, às nossas pessoas saudosas e queridas. Agora, o texto estampado em página inteira hoje no DC, em que abordo o livro A Mente Mediana, traduzido pelo incomparável talento de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
A PRISÃO DAS IDÉIAS
Um ensaio é como levar o pensamento encarcerado para tomar um pouco de sol no pátio. É quando ele pode sonhar com a liberdade
Nei Duclós
Um exemplo do conceito de mente mediana, criado pelo autor, é o que se costuma fazer com livros como este: reproduz-se infinitamente, nos espaços da mídia impressa e digital, os resumos que a própria obra traz na orelha e na contracapa. Essa clonagem obrigatória perpassa toda a divulgação de livros disponível, com algumas exceções (resenhas assinadas, originais). Nesse vasto espaço de difusão de uma obra, não há perigo de existir manifestações de criatividade. A imaginação não interage com o conteúdo e os responsáveis se limitam a exibir os contornos de um trabalho que guarda uma série de provocações, mas que praticamente nada sugere entre a maioria dos que divulgam, primeiro, e entre os que se convencem da necessidade de consumi-lo, depois. É tudo o que Curtis White denuncia no livro A Mente Mediana (tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves, W11/Francis, 224 págs., R$ 36), que se originou da repercussão a um artigo seu publicado na imprensa americana. Professor de Inglês na Universidade Estadual de Illinois, White denuncia a mente mediana como uma política cultural que abre caminho e cresce enquanto gente consagrada ligada à cultura, à direita e à esquerda, se envolve numa luta de vida ou morte (como a polêmica sobre o cânone literário, por exemplo, provocada por Harold Bloom).
DITADURA - Trata-se de um conceito complexo que merece atenção e costuma gerar equívocos quando a divulgação é apressada. A mente mediana não é uma mentalidade, como escreveu um desses resenhistas anônimos. Mas uma política, que serve à atual ditadura global das finanças monopolizadas e do estado de terror implantado pelo complexo militar e político americano a partir de 11/9 de 2001. A explicação dos motivos que erradicaram a capacidade de pensar dos cidadãos é dada dialeticamente: porque isso interessa ao poder estabelecido, já que o exercício da imaginação criadora serve só para arranjar encrenca, como aconteceu nos anos 60 (uma das referências do autor, junto com o Iluminismo e a obra do filósofo Derrida). É por isso que a imaginação está soterrada pela necessidade de padronizar tudo, de tratar as manifestações culturais de maneira indiferenciada, fazendo tábula rasa de obras e autores e distorcendo a visão adequada desse gigantesco trabalho humano, hoje confinado numa penitenciária administrada pela mediocridade armada.
SOLDADO RYAN - Um dos pontos altos desse ensaio é a leitura livre de obras aparentemente inocentes e que no fundo preparam a percepção coletiva para as tragédias aprontadas pelo Estado. É o que ele faz ao desmontar as verdadeiras intenções de Spielberg no filme O Resgate do Soldado Ryan (que, para White, justifica o assassinato de prisioneiros de guerra e prepara o país para a futura invasão do Iraque), e quando denuncia o papel da ficção científica como a porta-voz dos donos do poder na ciência (que por dever de ofício e estratégia gostam de ficar mudos). Não escapam do fio da sua navalha a revolução digital que se acoplou aos jargões do futurismo para justificar mais concentração de renda. A maneira como usa suas ferramentas podem ser adotadas como vingança pelos brasileiros que estão sob o tacão das linguagens corporativas (o pesadelo dos anos 90, assimilado no escravagismo brasileiro como reiteração de papéis sociais fundados na opressão e na divisão radical de classes antagônicas). Ou que procuram falsas saídas nos livros, cursos e palestras da auto-ajuda espiritual (a indústria do entretenimento elevado à categoria de religião pragmática, mas que no fundo é uma adaptação de paradigmas à máquina de moer carne da competitividade criminosa). Justificar a má distribuição de renda, o aumento do fosso entre ricos e pobres por meio de ações pretensamente corretas e de práticas falsamente espirituais (que só servem para compensar o grande fosso de culpa acumulado nos processos produtivos injustos) é uma armadilha que Curtis White desmonta sem piedade. Ou usando do seu conceito favorito, desconstrói de maneira radical, usando não apenas a ironia, mas a fúria.
CUBÍCULOS - White faz parte dessa linhagem poderosa do ensaísmo americano que cruza manifestações da modernidade com parâmetros sólidos no pensamento clássico das ciências humanas. Não se trata de justificar profundidades falsas em sitcoms da moda, como se costuma fazer na América, mas de realmente pegar as idéias que estão encarceradas em cubículos sem ventilação, na penitenciária dominada pela mediocridade em armas, e levá-las para passear por algumas horas, para que possam desencarquilhar os ossos fossilizados em décadas de clausura. Uma resenha pode ser comparada a uma visita eventual permitida pela guarda, desde que não abra o portão para que o pensamento fuja em direção ao público. Este, precisa estar bem convencido de que esse é o papel das idéias que contam, o de estarem perdidas em porões da ditadura e que qualquer esforço para trazê-las à luz será condenado como algo obsoleto, talvez do tempo em que a palavra intelectual não era considerada nome feio.
EXEMPLO - O Brasil se ressente desse tipo de ousadia, tanto nos ensaios em revistas culturais (raras entre nós) quanto nas resenhas nas seções existentes na imprensa. Há, nestes dois ofícios, a carga perniciosa da cultura brasileira formatada na desigualdade, pois abordar um tema ou um livro em espaços nobres da grande imprensa é, com honrosas exceções, um sorteio de cartas marcadas. Há uma insistência em determinado número de autores e um consenso entre idéias que não provocam nenhuma repercussão, pois esse é o objetivo da mente mediana entre nós, muito mais avassaladora do que a apontada no livro. Pois se Curtis White desmonta a farsa de programas que se dizem culturais e são apenas arapucas cheias de más intenções e apelações de audiência, nós nos ressentimos até mesmo desse tipo de contrafação, pois nada possuímos ao que se assemelha a um programa cultural na nossa televisão, por exemplo. Nosso buraco é muito mais embaixo e é nele que devemos trafegar. É preciso construir uma reputação sólida para a crítica aprofundada sobre o que se produz na televisão, no rádio e na mídia impressa.
FALAS - Não se trata de seguir os passos do ensaísmo americano, mas arrostar a responsabilidade de atacar frontalmente o que é impingido à força na nação: uma seqüência de falas contaminadas pelo poder, reproduzidas em rede pela mídia, e que não provoca o mínimo esboço de reação negativa. Nesse pesadelo, produções da imaginação como o discurso político, tanto nas eleições quanto no exercício dos mandatos, trafegam pelos interesses de um mando desgovernado, enquanto a cidadania padece de mudez doentia. Cada pequeno canto disponível deve ser ocupado pela imaginação criadora de que nos fala Curtis White, para que possamos desencadear a superação de nossas endemias culturais, fonte de nossos terrores sociais.
RETORNO - Meu artigo Eclipse na grande área, sobre a morte do zagueiro Serginho, já está no Em Pauta, do Comunique-se e com destaque no La Insignia (links ao lado).
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