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11 de outubro de 2004

A LÓGICA DAS BARREIRAS



Como a bola rola redonda no chão liso de grama, é preciso criar dificuldades para atrapalhar a boa vida dos jogadores. O impedimento é uma delas. A barreira, outra. Os venezuelanos criaram a tática de empurrar, provocando um efeito dominó, os jogadores postados um ao lado do outro, criando assim à força uma avenida no meio do muro humano. Já Alex, do Brasil, sabe que o futebol é quântico. Então inventou uma probabilidade: a bola passa num claro virtual entre as cabeças dos adversários e cai miseravelmente no canto direito, fazendo com que o goleiro deles bata os braços na trave. Como ele pôde colocar a bola daquela maneira, se ela tinha tudo para não cruzar a muralha? Porque o futebol é ilusão e tudo pode acontecer. Vejam como o primeiro tempo do jogo da seleção virou de lado sem que ninguém mudasse de campo: foi a ilusão criada pela troca da câmara que fez a virada antes do tempo. Por ser uma ilusão, futebol é invenção o tempo todo. Inventar, verbo definitivo. A seguir, minhas invenções sobre o mês de Outubro, artigo publicado neste domingo no Diário Catarinense, no caderno Donna.

VENTOS DE OUTUBRO

Nei Duclós

Outubro é uma palavra que tem estrutura para abrigar dentro de si o amadurecimento do espírito diante do esplendor da estação. A primavera venta no mês que brilha ao trazer no próprio nome a chave de sua intensa revelação. A vogal que inaugura a palavra outubro, e ao mesmo tempo a encerra, sugere uma retomada em outro plano, num movimento em espiral. O teto sólido de sua segunda sílaba parece proteger o corpo torturado pelo inverno. O rebentar de algo no final do vocábulo lembra broto ao sol. Por isso outubro é um mês de devoções, como atestam as romarias para Nossa Senhora Aparecida. Sua doçura anuncia a inocência, já que nele costumamos celebrar a infância. E é o prenúncio de mudanças, como comprova a saga revolucionária do século passado.

REVOLUÇÃO - Batizado assim como alegoria poética que reflete a transformação humana, outubro dá bandeira de uma radical tomada de posição. Quando nossa geração foi para a rua no final dos anos 60, essa palavra funcionava como uma convocação Os sonhos guerreiros conviviam como a pregação do equilíbrio e da paz. Os poetas que decidiram expor-se em praça pública, naquela época em que assumir gestos novos significava arriscar a vida, sabiam que a mudança seria muito mais lenta do que se esperava. A revolução se fazia dentro de cada um, nessa morada de algo muito maior do que uma identidade física e pessoal. Descobrimos mais tarde que nosso esforço tinha servido de insumo para outras coisas, algumas opostas a nós, e que a juventude fora transformada em comércio. Perdemos assim o ar de ouro que envolvia a mitologia de outubro e guardamos as palavras num arsenal à parte, onde o tempo servia de forja para uma vida que pensou resolver-se cedo, mas que entendeu-se muda. Silenciar diante da guerra triunfante de adversários longevos foi a prova dos nove da nossa alegria. Por dever de ofício, a vida nos dispersou e nada mais nos reúne, a não ser uma vontade fisgada daquelas águas ainda intactas e que afloram como vertente na montanha. Ninguém pode com o fio da fonte com vocação de rio, nem com a força ribeirinha que por todos os meios alcança o mar.

COLHEITA - Mas o jardim em frente nos avisa o quanto é provisória essa fase do ano em que recolhemos os cacos espalhados pelo frio e reunimos forças para um novo passo. A rosa que explodiu cedo anteontem, de um amarelo estranho, agora descamba suas pétalas para formar um quadro desolador. Inauguro então paisagens internas alternativas, em que nos vemos dentro de nossa pregação, num mundo criado pelo que precisávamos ser. Não há, entretanto, proteção para o que História nos obriga. Carregamos o fardo do tempo nos ombros, como um cabrito morto, enquanto cruzamos um vale infinito de indiferenças. Essa talvez seja a nossa prova final. O de persistir na grandeza quando tudo nos diminui, o de assumir o risco quando tudo nos leva ao desaparecimento, o de tornar suave o que herdamos de duro. Sempre há os que continuam rindo, como faziam naquele tempo que hoje nos soa heróico, mas que foi igual a todos os outros, pois cada minuto encerra sua imortalidade e sua mortificação. Entregar-se a uma mitologia de primavera quando a poesia se desdobra em tantas invenções vestidas pela pose e a sabedoria, seria uma insistência vulgar no que pretensamente foi enterrado. Mas se existem ainda montanhas, e se os terrenos baldios continuam a inventar flores não catalogadas, e se há poesia no peito apesar da colheita de punhais, é necessário sentar-se humildemente diante das palavras que batizam a natureza. É perda de tempo, me diz a vanguarda. É isso mesmo, mas nem tanto, me falam os saudosistas. Entre os dois pólos, fico à espreita.

VERBO - Abro cedo a porta da casa e espio as nuvens. Elas dão o roteiro dos ventos de outubro, que sempre estão por chegar. Aportarão do norte, com seu mau humor, do sul, com seus excessos, do leste, com sua serenidade, do oeste, com seus mistérios. Não há ventos em outubro, me dizem. Isso é coisa de setembro ou novembro. Pode ser. Mas costumo misturar tudo, e me invoco mais com o som das palavras do que com as certezas da meteorologia. É certo que outubro é o mês totalmente identificado com a primavera deste lado do mundo, e por isso se estabelece como oleiro de finos materiais. Um deles é a poesia. Esclareço então que vim de outubro e para ele parto, com o bolso cheio de milagres. A rua continua viva, como criança protegida pelo sagrado. Nela planto o que me escapa, neste futuro que nos surpreende. Somos o que não finda, diz o verbo que me habita.

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