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7 de outubro de 2004

TERRA DE ESCRAVOS

A única relação humana existente no Brasil é entre senhor e escravo. Tanto faz patrão/empregado, pobre/rico, branco/preto, estancieiro/peão, professor/aluno, pai/filho, homem/mulher, gerente/funcionário, comerciante/freguês, motorista/pedestre, primogênito/caçula. É disso que cuidam as novelas da televisão, em todos os horários: a escrava Isaura, a cabocla, a senhora do destino, a terra nostra. Em todas as cenas, uma empregada de uniforme, ou um cocheiro dizendo sim, patrão, um barão dando ordens, uma patroa expulsando alguém da sala. Como há oposição permanente entre as pessoas divididas pela classe social, toda afetividade está também dominada por essa mancha: a mulher que apanha, o filho do fazendeiro que ama a criada, o amor impossível, o filho roubado. Não há perdão porque não há equilíbrio social. Há sofrimento no país que, por isso mesmo, é insuportável.

VIOLÊNCIA - Em terra de escravos, todo mundo é senhor. Existe pânico da miséria. Pobre dá azar, costuma-se dizer. Todos nascem com um pé na escravidão e por isso tornam-se, automaticamente, senhores. Todo mundo te peita, pois ninguém quer fazer papel de escravo. Ninguém te escuta porque quem berra é o patrão, quem ouve tem que obedecer. Fala-se ao mesmo tempo em todos os cantos: nos ônibus, nos bares, nas reuniões de trabalho. Não existem mais ouvidos, mas falas. A violência é o caminho mais curto para reverter o vínculo. O escravo de arma em punho torna-se senhor. Ele inclusive quer os bens, as posses da vítima, pois assim será como o outro, que detém no bolso e nas mãos o que ele sonha ter. No trânsito, ninguém suporta ficar atrás de qualquer pessoa, porque isso significa estar na cola, à mercê da liderança alheia. É preciso ultrapassá-lo, humilhá-lo, xingá-lo porque é velho, mulher, feio ou estrangeiro. Se existe alguém na frente, é porque ele está usurpando o lugar que é devido ao que vem atrás e que fica furioso, buzina e acende as luzes altas para expressar sua inconformidade com a situação. Pois ele é que é o senhor, como pode ficar atrás? E quem tem o desplante de ficar na minha frente, eu que sou o senhor de todos os mares? A conseqüência é visível: morte instantânea e em massa por todo lugar. Os cadáveres se empilham, inviabilizando entre nós a literatura policial, pois o excesso desmoraliza a investigação, a crueldade institucionalizada esconde a ética, o caos impede a segurança e a solução dos casos, que são o desfecho feliz de qualquer bom romance de detetive. Sherlock Holmes faz parte da cultura de uma civilização que, pelo menos em tese, se opõe á barbárie. No Brasil, seria preso. Ou atropelado (olha o cara de capa comprida e boné!).

POWELL - Entro na lavanderia e alguém está ao telefone. Aguardo alguns minutos. De repente, incomodada com minha presença, a atendente lasca, levantando a cabeça e alteando a voz: o que é que você quer? Ela é dona do estabelecimento e você é um intruso. Você foi lá porque é uma pessoa precária, não tem o que nela há de sobra. Ela poderá até compartilhar o que tem, desde que você pague antes e não diga absolutamente nada. Assim é o comércio no Brasil, com raras exceções. Bolei alguns estabelecimentos. Arrogância Modas é um deles. Tu-Não-é-Daqui Presentes é outro muito bom para lugares turísticos. Pontapé Calçados até tem um perto de casa. Suma Daqui poderia ser uma perfumaria. Cidadania é marketing no país insuportável. Todos falam em democracia, liberdade, responsabilidade social. Mas as crianças pobres fazendo coreografias para Collin Powell foi de dar dó. O país de escravos exibe-se diante do todo poderoso. Mostramos assim nossa escassez, nossa precariedade. Lutando capoeira, claro. Pois a capoeira é o gesto que nos define: representação da violência, origem escravista e agora espetáculo para americano ver. Sorte que a ficha caiu na Folha, que estampou em primeira página ontem, quarta-feira, aquilo que os admiradores do Fotogarrafa conhecem há dois anos: o talento de Marcelo Min, em foto esplendorosa retratando Powell ( e comitiva cheia de caratonhas) atrás de um aviso de cuidado, rede elétrica. Magistral. Com Antonio Gaudério e Marcelo Min, a Folha está imbatível no fotojornalismo.

RETORNO - 1. Falta complementar: a percepção geográfica também está abraçada a esse tipo de relação. Sudeste/Nordeste, Sul/Norte, Litoral/Interior, Capital/vila. Sempre tem uma região que é senhor, e a outra que é escrava. 2. A representação do patronato, nas televisões, é o papel principal dos atores brasileiros. Tanto de um lado (a representação pura e simples da barbárie do poder), quanto do outro (a representação preconceituosa do povo, colocado sempre abaixo da linha dágua pela performance crítica dos atores, todos formados no teatro batizado pelo marxismo, o que torna essa atividade uma ironia profunda, pois o distanciamento proposto é sempre a favor do poder). 3. Meu texto Vá direto ao ponto está já no La Insignia. 4. Amanhã, sábado, estará nas bancas mais uma edição do Diário Catarinense de domingo, que publicará novo artigo meu no caderno Donna. Minha colaboração lá é mensal.

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