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15 de outubro de 2004

CULTURA É OUTRA COISA

Cultura é o destino que damos à nossa composição biológica. Somos seres culturais que usam a estrutura física como ferramenta para a transcendência. Por isso não entendo quando os candidatos falam em cultura como se fossem pedras se referindo a musgos. Como se cultura fosse os eventos patrocinados, o nheco-nheco nos palcos, ou o ripi-rópi (que é a representação da surra em série levada pela marginalidade, por isso é que os dançarinos de ripi-rópi rolam sem parar e trocam os pés pelas mãos). Como se cultura fosse espaço multiuso, festival de alguma coisa. Como se cultura fosse uma multidão entornando cerveja ou artesãos repetindo modelos toscos de uma produção em série. Como se cultura fosse teatro, cinema, livro. Cultura é o que você é. Se alguém acha que pode colocar a cultura fora de si, é porque não enxerga essa evidência.

DESCONEXÃO - É por isso que Mario Quintana coloca a necessidade de esquecer antes de aprender. Esquecer, nesse caso, significa assumir a própria identidade e depois interagir com o que vem pela frente. Quando você vai ao cinema, não é o consumo passivo da produção audiovisual que importa. É o que você poderá lembrar desse momento, é o que modificou em você aquele filme, é o que você falou sobre ele, é como você se comportou na sessão. Assim também um livro, que é cultura apenas para o autor. Para você, que lê, importa é se o conteúdo mudou algo em você, serviu para o que te mantém vivo. Senão é perda de tempo. É um processo tão profundo, que existe um treinamento especial em massa para evitar cultura. Vejam a linguagem na mídia, é o empilhamento de lugares comuns, frases feitas, falas pré-concebidas. Isso tudo se encaixa e forma um noticiário, matéria, programa, entrevista (vejam como os entrevistados precisam seguir o script, senão o segurador de microfone completa a frase considerada correta e obriga o outro a repetir). Na educação agem pelo avesso: se esforçam para você odiar livros, debates, idéias. Tentam te impingir um comportamento padronizado, uma cultura oficial, uma percepção viciada. Cultura é dúvida, rasteira, pulo no abismo. É quando você age. Não quando você aceita (mas não é só o que você nega).

CONSUMO - A palavra consumo é a praga herdada dos anos sessenta, quando a produção prescrita pela mediocridade virou a casaca e tornou-se, em parte, de alto nível. Inventaram então o consumo, para que tudo voltasse ao normal. Eliminaram todas as batidas de bateria e inventaram o baticum triunfante. O cinema de transgressão, em vez de vencer, virou cult, ou seja, enterrado vivo. A guitarra, que era reinvenção da melodia, tornou-se ruído. O comportamento, que era na contra-mão, oficializou-se, de maneira errada. E foi colocada para baixo do tapete toda a maravilhosa produção antes dos 60, que só é resgatada na versão colorizada (para filmes, coisa que está em desuso), gritada (para canções que perderam seu frescor original), metida (nas artes plásticas, onde o lixo impera ao lado de olhares significativos de artistas sem brilho). A linguagem desconectada da nacionalidade, a cultura de palanque (chitãozó e chororinho, diluciano e cagargo), a socialaite ongueira, o tartaruguismo capoeirístico.

DEBATE - Vi ontem parte de um debate entre dois candidatos a prefeito, que mostraram-se gladiadores especialistas em jugulares. Não vou baixar o nível, disse um, não vou dizer aqui que você roubou 180 milhões no contrato tal. Isso não é do meu feitio. Prefiro falar em propostas, pois sou um candidato que respeita o povo. Proponho que o Ministério Público asseste as baterias contra a sua administração. OK, responde o outro, quero agradecer ao povo que votou em mim, mando um abraço para o Zé das Couves lá da Macaxeira, e aproveito para dizer que o candidato adversário é um incompetente e isso todo mundo sabe, haja visto que estou aqui falando que vou fazer tudo diferente pois sou jovem , dinâmico e fararei tudo pela cultura. Vamos providenciar para que os turistas tenham bastante povão fazendo micagens de circo, fabricaremos liteiras e abanos de penas de avestruzes para a negrada gerar um pouco de ventinho gostoso em quem traz dólar para cá, e atrairemos todos os bebedores de cerveja e pinga do planeta para que venham usufruir de nossas beldades, pois para isso serve esse povinho ingrato, que se não votar em mim arderá no fogo da fome e da violência para todo o sempre.

RETORNO - Fiquei de zap na mão pensando em cultura. É uma pena: quando a gente fala em cultura, eles sempre puxam o nosso talão de cheques.

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