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30 de maio de 2019

ESCASSO

Nei Duclós


Evitar a palavra que se entrega
E pega carona em correnteza
O destino é a quebra, a queda

Poema não é sentimento
É cruzar a pé o deserto
Sem maná que nos sustente
Ou oásis previsto no mapa

Ficamos perdidos em temporais de areia
Água só em comboios fantasmas
Horizontes na fila de miragens

Evite o jipe que traz os mantimentos
Não se entregue à bolsa de remédios
Alimente-se quando fica escasso
Sobreviva sem condenar a obra





LEMBRAMOS


Nei Duclós

O balde cheio da memória não mata a sede sem a poesia.
Esvazia meu coração o sabor salobro da amargura
E adoça com sonho o fôlego da vida
Promessa que nos faz eternos
Quando nos lembramos

Vencemos aos poucos, em vitórias quase invisíveis,
a não ser quando notam nosso sorriso diante do mar.





IMPRUDÊNCIA

Nei Duclós


Nunca tive paciência, como se o tempo acabasse para mim a qualquer momento. Por isso esses rabiscos, galhos tortos a marcar trilhas no deserto, que dão para lugar nenhum.

Impossível voltar pelo mesmo caminho, que soterrou os vestígios da minha imprudência.

Tenho pressa, amor, por isso tardiamente descobri que foste embora para sempre. Calma e doce, foste colhida pelo atropelo dos esquecidos, que te deixaram por não saber que nunca estaremos prontos e por isso é inútil ignorar o sentimento, única ferramenta para moldar nossa ansiedade à sabedoria das estações.



INAUGURAR

Nei Duclós


Um pregador pode falar por poesia
Mas a poesia não é púlpito
Embora possa ser oração

A poesia nasce quando todas as outras linguagens são jogadas no lixo
Impregna-se no trovador em fase terminal
No sacerdote que perdeu a fé
No discurso que afastou o cidadão

É como o solidário que suspende o ferido e o põe na maca
A mão que se interpõe na faca
A canção que ninguém mais escuta

Ela brota nos desvãos das grutas
No coração das multidões em repouso

Um poema inaugura uma civilização sem crimes




ARQUITETOS


Nei Duclós

Deuses são arquitetos
Chuva vento erosão neve
Moldam montanhas para os equinócios
Desenham a pedra de uma vida eterna

Por que sopra tanto mistério?
De onde vem a escrita dos sumerios?
Da sua engenhosa percepção?
Mãos divinas sobre a terra?

Por que o tempo tem idade?
Quando nasci, gigantes que habitam
os contrafortes da serra?





28 de maio de 2019

A POESIA DO LUTO

Nei Duclós

Escrevi este livro ao longo de dois anos, depois da tragédia que levou meu filho embora em 2015. É uma das muitas manifestações do luto, em forma de poesia. Nesta SEMANA MIGUEL LOBATO DUCLÓS, em que lembramos a data do seu nascimento dia 29 de maio de 1978, decidi formatá-lo em PDF numa edição simples com 54 poemas inéditos e distribuir às pessoas que queiram ter um exemplar. É uma forma de preservar sua memória e ficar perto de sua mente brilhante e seu grande coração.

Este é o primeiro dos lançamentos focados em Miguel, pois há muito o que fazer. Estamos selecionando seus textos fundamentais sobre filosofia inseridos no seu site que está sendo atualizado pela família e será relançado em breve, além do cardápio cultural variado contemporâneo que publicou em milhares de posts. em seu blog, que está sendo descontinuado.

Quem quiser ter a seleta de poemas intitulado MIGUEL entra em contato comigo. A contribuição financeira e voluntária. O importante é chegar às pessoas um livro que foi escrito com a dor da perda e amor ao filho.



Um dos poemas do livro:

ÚLTIMAS PALAVRAS

A morte é corte
não costura
o corpo enfim
sob medida

A roupa de pouco uso
na despedida
o rosto contraído
como um insulto

o adeus empurra
como um susto
o instante mil vezes
repetido

Um pai não sobrevive
a quem sepulta
Equivale à perda
do paraíso

Nenhuma literatura
vale um filho

Nei Duclós

MIGUEL
Poemas
Nei Duclós
Edição do Autor
Ebook (PDF), 54 pgs

Contatos: neiduclos@gmail.com

25 de maio de 2019

LIVRE ARBÍTRIO


Nei Duclós


O mundo inteiro era deserto
Nossos ancestrais plantaram as florestas
Só em alguns lugares não deu certo
Havia muita guerra

Debaixo da areia há petróleo
Debaixo das árvores, minérios
Somos seres feitos de mosaico
Queremos uma lápide sobre as ervas

Nas rochas milenares rostos de granito
Gritam denunciando a tragédia

Deus pagou um preço alto
Pelo arbítrio tornado livre
E o espírito da liberdade aprisionado



23 de maio de 2019

EMBALO TEU SONHO

Nei Duclós


Não tenho paciência de fazer tudo certo
Também não cultivo o erro
Sou como o vento
Obedeço a uma lógica que desconheço
Arrasto as folhas no chão do outono
Fustigo a montanha no inverno
Balanço a flor quando te aproximas
Embalo teu sonho feminino



21 de maio de 2019

CAIXA DE PRATA

Nei Duclós


Embalei o poema em celofane
Coloquei dentro da caixa de prata
Para entregar nos melhores do ano

Mas ele escapou
e foi para a praia tomar banho
Secou-se ao luar, trovador de pano
Cantou para os barcos azuis do outono

Sua plateia eram as estrelas cadentes
no mar oceano



SEM FREIO


Nei Duclós


Para você não há mistério
o corpo que dispões há tempos
Mas para mim, que em ti enxergo
O capricho artesanal dos deuses
Mais o coração e a inteligência
Em belezas que enchem os espelhos
É como visitar o paraíso
Logo que a criação perdeu o freio


DESAFIO DA FÍSICA


Nei Duclós



Não fica perto nem está pronto
Ou mesmo passa no horário certo
Não se oferece nem te contempla
É desconforto parece ausência
Não se compara ao desconhecido
Não é isento nem vai contigo
Adota um rumo que não se enquadra
É estrangeiro nas geometrias

É o que estás vendo mas não alcanças
Mesmo depois de setenta anos
Não é estrela não é do ramo
Apenas jogo de aparências

E não adianta não adivinhas
Porque senão ficaria explícito
Você enxerga mas não atinas
É onde a física se desafia



NEM DESCONFIAS

Nei Duclós


Nem desconfias
Ou talvez evites o que está posto
Flor que mantenho em úmido rosto

Preferes, prudente
Que eu desista desse projeto insano
Mas não tem jeito
Deslizo em direção ao sonho
Beijo o proibido corpo
Rego a terra que me resta



17 de maio de 2019

AMOR CLANDESTINO

Nei Duclós


Todos precisam de tudo
Mas só querem o amor

E pelo amor sacrificam até a biografia
Não que valha grande coisa
Nada vale muito comparado ao amor

Intangível frágil raro
O amor é carga sem identificação
Clandestino misturado no porão
Ele viaja silencioso
E quando o descobrem é atirado ao mar

Ele nada então só com a vontade
E atinge a costa do teu olhar



13 de maio de 2019

CAMUS ATIRA NELE MESMO

Nei Duclós

O Estrangeiro, de Albert Camus, é um suicídio: o francês argelino mata o árabe que há dentro dele.

Mersault é funcionário público, função que provocava pânico em Camus por ser um destino definitivo. Camus precisou arriscar, ou seja, romper com o que parecia estar escrito para ser um escritor.

Seu personagem atribui o crime ao absurdo, mas é tributário da lógica. A morte da mãe, evento ao qual dedicou total indiferença, não fora suficiente para libertar-se da África. Era preciso culpar o clima, o calor excessivo da sua verdadeira pátria para disparar quatro vezes, cego pelo sol, contra o Outro, que era ele mesmo.

Para Camus, o suicídio era o dilema principal da condição humana.



O CIRCO

Nei Duclós


Vejo o circo passar
ao largo na estrada principal
Atrações literárias fora do meu quintal
Minha plantação de versos selvagens

Não me apresento para a sessão lotada
Fica entre nós, sonho na montanha
Preciso alimentar as cabras
Meditar as pedras deixadas pelos ancestrais

Tropeço em cactos plantados por anjos
para eu não ficar tão só
Eles ornamentam a paisagem contra o céu

Meu avô canta uma ária sob a lona
Sua voz se fina conforme avança o circo
Presto atenção. O cão se insurge contra os trovadores
Que viajam no comboio de carona



10 de maio de 2019

NO ANO PASSADO

Nei Duclós


No ano passado ainda conversavas comigo
Isto foi antes da guerra
Agora estamos na mira das armas
Abrigados em armadilhas de ferro

Se por acaso berro
Tremes com medo de ter amado
O pior inimigo
O que abraçaste sem a dor de ter morrido





ENTRE OS GUARDIÕES


Nei Duclós

Sobrevivi na noite gelada
Na gruta onde velam os deuses da montanha
Foram invocados pelo fogo que acendi no altar de pedra
Com a ajuda de ervas sagradas que brotam no chão

Tinhas me abandonado lá para morrer
Pois não suportas o convívio com teus pares
Eu te escutei mas na hora de falar
Mantiveste os ouvidos fechados a chave

É inútil tentar chegar no templo onde dormi profundamente
E vi no breu desenhados pelas sombras das chamas
Um sacerdote e seus ajudantes
Todos gigantes, guardiões desse território sagrado que descobres com gestos em câmara lenta
E descreves pausadamente como quem planta um bosque invisível no deserto

O lugar onde fiquei é inacessível
A não ser que os anjos que sobrevoam as túnicas dos guardiões te ajudem
Doutor de abismos




CRUZEIRO

Nei Duclós


Não quero o próximo
Nem o distante
O que está fora
Ou está dentro
O que fica firme
E o que desanda

Quero que o cosmo
Faça meu sangue
Fora do tempo
E do sistema

Quero o poema
Monstro de feltro
Que numa redoma
Guarda um segredo

Não quero que digas
Nem teu silêncio
Apenas a antiga
Rosa dos ventos
Estrela Polar
E ao sul o Cruzeiro





EL TITAN MIRA EL TIEMPO


Nei Duclós

  

El titan mira el tiempo
Lejos de nosotros los dioses no se rinden
El mundo es el desierto de architetura silente
Llega hasta mi, creatura y duende

Llega por el viento, cielo que se rompe
En la nueva lengua, el intacto semblante
Cuerpo de granito, nubes en la sangre
Seré yo el lume de la tierra ardente
O solamente vivo de un paraiso muerto?



HORA DA COLHEITA

Nei Duclós


Passado o primeiro tiro
Que ecoou aqui dentro
Nos acostumamos
É tempo de sobreviver
Miserável combatente

Dispersar no vento a obra de pano
Suja de pó e de lixo orgânico
Malhar em ferro frio o que não se dobra
Recolher-se ao grude na remota montanha
E em pura pedra submeter-se

Os tiros nos avisam
O chumbo chega quente
Fugimos para a rua
não há quem nos enfrente
Somos invisíveis espíritos de gesso
Há tempos atingiram nossa erguida fronte
Tombamos quando era a hora da colheita


A DOR MAIOR

Nei Duclós

(Para meu mestre Mino Carta, neste momento de dor)



Para que a longevidade quando um filho morre?
Durar não tem propósito nem sentido
É como vagam sem a gravidade
Corpos vazios avessos ao ruído

Porque o luto de um filho é o silêncio
Mesmo que na aparência solte gritos
É o reino da sombra onde sentamos
Na margem sinistra de Caronte

E vemos o filho, que a morte nos deserda
Deslizando na madeira e no granito
Não faremos drama, conforme o prometido
Pois nenhuma dramaturgia nos garante

Restamos, sobrevivos, a remoer remorso
Pais que jamais contavam com a fortuna
Tirando a máscara da sorte
E revelando os olhos da Medusa

O silêncio é também de quem nos acompanha
Não há consolo, o choro não adianta
E nem a arte, a qual nos dedicamos

A palavra apodrece na cama da memoria
Não há grandeza quando o futuro nobre
Em pranto profundo enterramos




6 de maio de 2019

CRESCE O DESAFIO

Nei Duclós


Cresce o desafio de afiar o verbo
Gasto de uso e de manejo cego
Achar a embocadura do corpo miúdo
Palavra que se apruma em golpe de esgrima

Enquanto na cidade o lixo se acumula
São frases sem sentido, contos confusos
Ficas acima mas fora do circuito
O vento engatinha rente ao piso

Forças a conduta, recitas a obra
Poucos te ouvem, esforço solidário
Pegas a mala e partes para a lua

Cruzas o mar, que tão cedo acaba
Riscos de andorinhas, latidos vizinhos
Pisas a rua no passo do arco-iris



5 de maio de 2019

A SORTE E O DESTINO


Nei Duclós

O cinema subverte a Criação, pois não a imita, antes a substitui. Fruto da técnica, a Sétima Arte pode encarnar a origem divina a inventar ao mundo sem a intermediação da divindade. Em Um Homem de Sorte (Billie August, 2018) o cinema oferece a paisagem e suas forças – o vento, as ondas – para representar a tradição que condena o protagonista, um jovem estudante de engenharia (interpretado por Esben Smed,) , ao ostracismo. Ateu numa família cristã de patriarca rigoroso e impiedoso, o garoto gênio dependura-se em sua formação escolar e autodidata para provar que pode atirar pedras em Cristoe expulsar o barulho dos dinos das igrejas em sua cabeça. Conta para isso com o talento, a inteligência e a sorte, que por um período confunde-se com a Fortuna, deusa caprichosa de rápida ascensão e queda radical, conforme o destino de cada um.

O destino de Petras Andreas é ter as portas escancaradas para seus projetos e depois jogá-las no lixo, não por um capricho mas por uma contingência: não consegue escapar de suas raízes e a elas torna-se fiel até o desfecho fatal. Assim, perde a chance de mudar a realidade do seu país, a Dinamarca, capturando energia dos ventos e das ondas e mudando a localização de um porto comercial, que faria concorrência a outros portos poderosos da Europa. O tempo lhe dará razão, mas para ele é tarde demais. Sua oportunidade de reinventar o mundo por meio da técnica é colhida pelo lodaçal da aristocracia política, financeira e intelectual dos que detém o poder e o exercem para humilhar a cidadania.

Joga fora, por teimosia, sua entrada na rica família de financistas judaicos e acaba também abandonando os filhos que teve com a filha de um pastor. Recolhido no ermo, é visitado por sua ex-noiva, a bela Jacobe (a talentosa atriz Katrine Greis-Rosenthal), que o perdoa e agradece a oportunidade de tê-lo conhecido por se afastar de sua condição de herdeira e abraçar a causa social num orfanato. No fim ele cumpriu sua missão, mas foi tragado por ela. Sua ruína foi subverter a criação, querendo transformar seu país numa potência econômica. Atraído para o abismo do fracasso, onde só a solidão poderá significar liberdade, ele experimenta o gosto amargo do criador apartado de sua obra. É como o cinema, que domina a história, o assunto, a maneira de apresentá-la, e é esquecido em função do que mostra ao espectador. Todos veem a trama, e a encaram como se fosse real, mas não a pura verdade, que este filme, como todos os outros, é sobre cinema, pois sem ele nada disso existiria. Ficaríamos com nossa imaginação, mas não com a prova de que é possível transformar algumas vidas do passado numa soberba manifestação da arte maior que a técnica nos proporciona pela mão dos cineastas imprescindíveis.





1 de maio de 2019

OS ROUXINÓIS


Nei Duclós


Tardes inteiras em bancos de praça
Junto a canteiros desabitados
Lá as flores não vingaram
E não se demoram os pássaros

Solidão e penúria em quartos alugados
Corredores sem fim ao cair da tarde
Viagens em trens desconfortáveis

Só havia um hábito, a palavra
Ela me tirou da perdição
Arte soprada em flautas de osso
Tambores do Outro Lado, onde se forjava o corso
E puxávamos o cordão da escola da esquina

Eram os Rouxinóis, que preenchiam todos os vazios da rua
Os Rouxinóis, diziamos, que é o maior
 

GIGANTES

Nei Duclós


Leio pouco mas já vivi bastante e por isso parece muito
É que me apego aos livros
sinto saudades quando termino
E prometo voltar mas me limito às memórias da leitura
Deixo nas estantes namorando as capas
E tento partir para outro título

Desisto no começo ou na metade
A não ser que seja algo oculto na História

Acabo vendo vídeos sobre os gigantes
Que preferiam as humanas
Talvez seja influência das páginas da Odisséia
Que tem me acompanhado nas concentrações na varanda
As pombas ululam no telhado vizinho
Enquanto os adivinhos no livro de Homero fazem predições vendo o voo dos pássaros

O universo se ocupa exercendo bizarra vagabundagem