Páginas

31 de julho de 2018

CIRCUITO

Nei Duclós


Curta interrompe a ligação
Não é falta de luz, mas de noção
Plantas no deserto, pele de areia
Nada brota na paisagem feia

Te dedicas às boas intenções
Enquanto eu, peste, embarco no trem
Fujo do que fomos já que desististe

Não pude lamentar quando partiste
Eu estava ocupado, vida vã
Depois vi o temporal lá na montanha
Para além me dirigi, ermo de ti



29 de julho de 2018

NO AR

Nei Duclós


De repente, despertaste para olhos tristes
e aves canoras de variada estirpe
todas fingindo que te escutam
quando no fundo apenas observam
as curvas que tua presença inspira

Guarda teu perfume, raro
para quem fica à tua altura:
No ar, lugar remoto de quem voa

Não cave a decepção como se fosse vício
O que te empolga se nutre do amor invicto
não do cultuado sopro da ilusão



O ÚLTIMO SOLDADO


Nei Duclós


O último soldado se refugiou na mata
E lá permaneceu por desconhecer o fim dos combates
Marcava posição em defesa dos camaradas mortos
Até que foi identificado por batedores
de uma expedição de resgate pela paz

Quem venceu? perguntou quando foi desarmado
Foi o senhor, major, lhe disseram para homenageá-lo

Quando voltou, multidões o aclamaram
mesmo não tendo sido vitorioso
Não porque a guerra tenha perdido importância
E fizessem festa para celebrar uma aventura
Mas porque é vasto e desconhecido
o coração do homem


28 de julho de 2018

AS FLORES QUE NINGUÉM PLANTA

Nei Duclós


As flores que ninguém planta
são as melhores do ermo
De geração espontânea
fruto do esquecimento
Em jardins que não se ostentam
terrenos fora do eixo

Junto com plantas sem dono
Herdeiras de mil sementes
Que o tempo jogou no vento
Como versos ainda verdes

As flores que ninguém colhe
Porque nem sequer tem um cheiro
E não se prestam aos vasos
Ou a guirlandas de enfeite

Apenas flores sem nome
Que nascem só por deleite
Depois somem como os dias
que por acaso se escondem
na memória mais tardia
de um remoto horizonte



A PALAVRA CONCISA

Nei Duclós


A palavra escolhida
incorpora os sentidos
Estrela de uma língua
Em que o verbo economiza
Para abusar dos avisos
Sílabas não desperdiçam
quando o talento é conciso

Na estrada de uma obra
São sinais que ficam íntimos
De uma paisagem na curva
De faróis sobre a neblina

Diriges farto veículo
numa caçamba enxuta
O texto sem o discurso
A estrofe sem uma rima
Mas ambos deixam de lado
toda espécie de lixo
E levam o que lhes sobra
De tesouros descobertos



27 de julho de 2018

DÁDIVA

Nei Duclós


É generosa a dádiva
que o dia de indeciso início
promove em tua seara seca de esperança

Ressurge a alegria
com a prudência herdada de conflitos
mas firme, como haste flexível

Convoque as testemunhas
Que compartilhem a surpresa
brotando em teu convívio



RODA

Nei Duclós


Não é pequena a dor que me apronta
a conduta louca do destino
A surpresa numa e outra ponta
Trazendo a alegria no cabresto
para que ela não se manifeste

É preciso focar na minuciosa barca
A cruzar o mar de conchas
que esconde a fortuna com a mão na roda

É uma chance em mil perder a conta
da vida que nos resta
Pois contamos o dia do fatal encontro
Esquecidos do amor, que o tempo teme



24 de julho de 2018

NO SAPATO

Nei Duclós


Não duvide do talento
que herdaste de algum canto do universo
Não o meças com a régua do confronto
Entre a percepção e o olho avesso

Não compactue com as virtudes falsas
máscaras manjadas da inveja
Mantenha em fogo brando o que já sabes
e cultivaste em décadas de insônia

Não se deixe levar pelas certezas
Desconfie só como exercicio
Depois arrase sapateando com afinco
em quem não presta



EXCESSIVA LUZ

Nei Duclós


Voaste de mim, como o dia que se cobre
De um cobertor de estrelas e sereno
Como a lua posta no sossego
Que mistura palidez com nuvem clara

Somes a olho nu, talvez por força
Da excessiva luz que em mim explodes
Fico eu sem ver enquanto a vida
Continua ao teu redor, nua no cosmo

Sou o arqueólogo da tua comitiva
Colho resíduos de uma longa história
Não enxergo o comboio de beduínos
Onde reinas, ocupando em plena glória
O trono que o comando dos exércitos
cedeu como prêmio da conquista

Tomaste conta do tempo imaginado
Por mim, trovador hoje mendigo
a cantar a memória
de uma saga



23 de julho de 2018

PONTO EXATO

Nei Duclós


Poesia é a palavra que deveria ser dita
E não se pronuncia porque o cerco do inimigo
Não pode focar no ponto exato
Onde sua origem se localiza

Assim sumimos calados em desavença
Por saber o poema mas Deus nos livre
De entregar o ouro para a doença

Só os pósteros, criaturas sem aviso
Encontrarão a tempo de salvar o mundo
O verso impronunciável que um dia descobrimos
Abrigado na coragem de um ninho ainda intacto



22 de julho de 2018

LUIZ MARTINS BASTOS: LINHAGENS DO PAMPA


Nei Duclós

O livro de Renato Dalto “Luiz Martins Bastos, o criador símbolo da raça crioula” mostra com detalhes o trabalho desenvolvido por um homem e sua linhagem, familiar e profissional, a partir de seu reduto histórico e patrimonial, a Estância Nazareth de Uruguaiana. Médico formado que exerceu a profissão por 25 anos, decidiu no meio da sua jornada de mais de nove décadas, dedicar-se aos cavalos típicos da sua região, que abrange não só a parte brasileira, mas também a da Argentina e do Uruguai, além da participação do Chile, outro país protagonista da narrativa.

Herdeiro de uma família com fortes raízes portuguesas, Luiz Martins Bastos tornou-se o patriarca que soube temperar a experiência com a ousadia, a prudência com a curiosidade, a realidade com o sonho. O livro esmiúça essa trajetória com farto material recolhido dos arquivos pessoais, dos depoimentos valiosos de colegas, familiares e admiradores, da pesquisa na imprensa, entre outras fontes. Praticamente abre a porteira de uma atividade que, apesar de muito conhecida superficialmente, e celebrada pelo seu sucesso secular – são as estâncias que definiram o perfil da economia e da geografia daquelas plagas - mantém encerrados alguns de seus preciosos segredos.

Só quem é do ramo sabe como se comporta um criador que começa com alguns espécimes tradicionais do cavalo crioulo e aos poucos procura resolver problemas da formação e estrutura, buscando sempre mais resistência, leveza, velocidade nos campeões que se sucederam nas exposições e feiras de Esteio, Palermo etc. E não contente com isso, como se diz na fronteira, deu o passo pioneiro e mais arriscado, o de procurar nos cavalos chilenos o que faltava aos crioulos dos redutos domésticos.




Longe de ser apenas uma exaltação aos feitos de um bem sucedido criador, o livro tem essa qualidade de expor o que fica oculto aos leigos, que assim pode incursionar nos meandros de uma atividade onde entra o conhecimento, o estudo e a confiança de que o rumo está certo e dará bons frutos.

Ao levantar as raízes e origens da família, que faz parte de uma vasta rede de pioneiros e empreendedores, o autor traz um pouco à luz o mundo submerso da formação da fronteira. Pois é complexa a trama que desaguou num trabalho coletivo que moldou o perfil da fronteira. Não se trata apenas de divisão de terras, mas de trabalho exaustivo principalmente de gestão, quando não havia tanto conhecimento sobre o assunto e foi preciso gerar um acervo de procedimentos a partir do trato diário com terra, gente, animais, meio ambiente.

O Dr. Luiz contou neste lançamento com o talento e a experiência do autor, um especialista no assunto, como também da coordenação geral de Estela Facchin e do apoio da Associação Brasileira dos Criadores de Cavalos Crioulos. A capa, primorosa, é de Esteban Dias Mathé e as páginas internas do livro de luxo, feito com rigor e competência, conta com algumas ilustrações do artista Berega, além de fotos antigas e contemporâneas, documentos, cartas etc.

O grande incentivar do lançamento é Carlos Alberto Martins Bastos, um dos filhos do Dr. Luiz, que é o Cabeto, meu amigo de infância, muito admirado por sua inteligência, cultura e cavalheirismo.



20 de julho de 2018

NO COMANDO

Nei Duclós


Preferi ficar quando todos se foram
A lua é a mesma em qualquer lugar
Há céu no remoto porto
ilhas que os vulcões revelam
E por todo lado há mar

Não quer dizer que restei na espera
Estou no comando, atento
Atraio, na distante Andrômeda
o coração da terra em movimento



URGÊNCIA

Nei Duclós


Passa da hora em que a obra informal da tua palavra
precisa de um mínimo contorno, nem carece ficar pronta

Porque estamos em guerra
e a poesia é a porta de emergência
Onde se concentram a cirurgia e outros procedimentos
Que precisam do verso para enxugar o suor que manipula o bisturi
E haja sonoridade, e portanto clareza
para fluir o sangue nos dutos certos

E não apenas o verso
mas a estrofe que gruda na memória
quando o paciente apaga
Para que possa se acordar com a cura pousando na janela
Enquanto os anjos recitam o poema inteiro
E repercuta nos gestos como um molejo
Que exercita as articulações do resgatado e doloroso movimento

Passa da hora porque urge a fila dos ferimentos
E o que compões em silêncio em meio ao alarido
pode fazer a diferença



18 de julho de 2018

NA GRUTA

Nei Duclós


A lógica perversa contamina até mesmo seu antídoto
De qualquer lado as palavras são serpentes
Mentes como cestas de vime
que guardam presas traiçoeiras

Só a vocação bem resolvida
num ofício que atinja a maestria
poderá nos tirar da gruta

O mergulho incide no ninho
onde guardamos a inocência
É preciso atingir a saída
para o sol que nunca vemos



SOPRO DE FRENTE


Nei Duclós

Quando canso de pensar, faço o poema
Nã por ser obscuro ou obsceno
Que se alinhe ao vinho ou ao feno
Ou tenha preguiça e quer se recolher

Mas porque nele a palavra se apruma
Respira fundo antes das palestras
Faz exercício para entrar em cena
Escolhe o destino do verso perfeito

Esvazio a mente para que o verbo
Encontre ambiente ao levantar âncora
Navega, meu canto, no mar da poesia
Sopra de frente na rosa dos ventos



RETORNO -  Do ebook PALAVRA NA PEDRA, de Nei Duclós, Edição do Autor, 2017

FRUTAS TEMPORÃS

Nei Duclós


Frutas temporãs vem de outra dimensão
De árvores gêmeas às suas, de bizarras estações
De pomares que os deuses cultivam
em canteiros imaginários

Elas escapam por túneis quânticos
E surgem penduradas nos galhos mais altos
Inacessíveis às colheitas humanas

São traídas pelo amarelo ocre do seu amadurecimento
E se destacam em meio às folhas verdes e flores brancas

Trazem sabores ocultos, gomos da infância
Pois não sofrem o ataque dos venenos
Elas são orgânicas e matam a sede cíclica de gerações



16 de julho de 2018

BRISA E VENTANIA

Nei Duclós


Brisa é vento mulher
Namora os ventos alísios
Um de cada vez

Estufam velas de pano
Combinam viagens de mar
Trocam beijos no convés


BELEZA INSONDÁVEL

Nei Duclós


Gostei do teu rosto triste
Que nada promete
E me desconhece

Os olhos de um fogo remoto
Menos para ver e mais para serem vistos
E teus cabelos num tom de espera
Em atitude lisa, meio arisca

Não quero decifrar teu mistério
De foro íntimo
Nem ficar na superfície
Toda imagem é completa pelo que sugere
Ou esconde, explícita

Também não ouso feri-la
Com minha pobre fantasia
Sou o que passa e vê sem compromisso
O que expões, profunda, por desconhecer o caminho
Que poderia preservar tua beleza
Insondável, submarina



14 de julho de 2018

RARA

Nei Duclós 


Foi descoberta recentemente
uma planta rara
de onde germina
a flor mais bela

De todas as existentes
perenes, provisórias
Entre tantas pintadas, cantadas, esculpidas
narradas em amores literários
Esta se destaca

Por concentrar o que em potes se conserva
E o que se perde em momentos sem memória
Ela surge, sem a pompa da vitória régia
Ou a flacidez das homenagens

Viva e frágil
Cuidai para não matá-la de inveja



LANCE

Nei Duclós


Não se aproxime, dizemos para quem se afasta
Teu adeus me arrasta para perto do crime
Fuja sem me levar junto na bagagem
A viagem termina quando viro as costas

O último olhar é o amor sem volta
Por isso embarque antes que eu te alcance
Não dê chance ao corpo que diz a palavra
Capaz de lembrar o lance mais extremo
O abraço fundo que a solidão derrota



12 de julho de 2018

RESUMO

Nei Duclós


Não há roupa que me sirva
Nem refeição que me agrade
Nem morada que me abrigue
Nem conheço uma cidade
Onde possa ter vivido
Sem remorso nem saudade

Assumo o chão que imagino
Ser de fato minha coragem
Corpo impuro de campanha
Banho de luz amarga
Nação nascida no pulso
Flor com força de vontade



CONTORNO

Nei Duclós


Aumentaste a distância
Periga voltarmos ao início
pois tudo o que se afasta, contorna

Cuide para não cair na armadilha
se é que procuras a ruptura

Talvez queiras o retorno
mas sem o empecilho da memória
Esquecer para que prevaleça
o que nunca morre

Desista, flor do desperdício



SEM ABRIGO

Nei Duclós


Cada momento tem sua companhia
Um amor, um cão, um amigo
A solidão faz parte do convívio
Somos um tempo enorme sem abrigo

Nos vemos por meio de filtros
Melhores do que somos ao vivo
Você é tão linda, eu sou convicto
Mais tarde marcaremos encontro

O inverno avança enquanto isso
Sentimos medo porque não sabemos
O que de fato foi perdido

Em cada minuto dobra o sino
Você me encanta, eu te assusto
Sinta minha mão, madeira fria
Temos um coração, peregrina



9 de julho de 2018

MAIS NADA

Nei Duclós


Bons sentimentos não fazem um poema
Não se sinta bem com versos corretos
É tudo lixo, assim como a crueldade

Poesia é só palavra e mais nada
A mais sólida solitária da manada
A que fica antes do estouro e investe sem propósito

Guarde seu bom coração
ou a sede de vingança
Para fora das estrofes
O desafio é deslocar o eixo
Sem perder o prumo

Saber o rumo que a humanidade joga fora



MIGRANTES

Nei Duclós


Crescer é ver tudo pequeno
Os monumentos, o destino humano
Os ídolos rolam no barro
O tempo nos torna gigantes

Mas não grande coisa
Somos idênticos ao que descobrimos
Vida sem brilho, amor só de ontem

Desapegamos, num treinamento estranho
Iremos para onde, grãos sem serventia?

Para qual olimpíada nos preparamos
A correr em círculos, a levantar peso?

Por muito menos as aves não perguntam
Fazem seus ninhos, viram migrantes

Elas reúnem forças
Vivem o momento, cruzam o oceano



8 de julho de 2018

DE NOITE

Nei Duclós


A noite abafa o campo
mas não o som do inseto e o puma
O brilho verde como dois vagalumes
Cercam o rosnado que avança

E estás só na casa isolada pela herança
Enquanto a onça pisa o charco na cerca próxima

Tens uma arma que não usas
Teu celular está mudo e não é só medo
Mas pavor que a solidão apronte
Antes do amanhecer

Tua horta sente frio sobre as verduras
e a pata da criatura se aproxima

De repente se afasta a nuvem
e esplende a lua cheia de pólvora

Tu e o bicho então flagrados pela aventura
Dividem a varanda iluminada como a escuridão
quando alguém acende um fósforo



6 de julho de 2018

ÁGUA NO PEITO

Nei Duclós


É cedo para dizer
se essa arte provocará
efeito
encontrando gerações lá adiante
quando houver cansaço deste tempo

Talvez recolham os luminosos restos
do que agora fazemos sem noção da sombra
que nos aperta sempre
sol que implode lento

Ou nos esquecerão, falsos herdeiros
satisfeitos com o que perderam, fogo extinto

Se souberem que não importa a estação
mas os seus frutos
bastará para a roda reencontrar seu eixo:

Este poema que não fiz direito
mas que me consumiu, água no peito
de um rio que alimentou a infância
e deságua no rosto frio do nosso esforço




ESTREITO

Nei Duclós


O que você rejeita
por estar ocupado
Um dia cobra a conta
e descobres o pecado

Aceite o que não cabe
no dia sem espaço
No fim tudo se ajeita
no estreito corpo amargo


RUÍDOS

Nei Duclós


Passei a vida fora do circuito
Achando que vivia, mas era o esquecido
Hoje quando vejo os que partiram
de todos os lugares onde estive
Pergunto o que eu fazia nesta vida triste
Enquanto festejavam a mesa dos momentos

Talvez eu não enxergue o material do mundo
E fiquei dando voltas na periferia
Procurando a palavra para marcar o tempo
Mas ele era o rebanho situado além da cerca

Meu pai me levou para caçar perdizes
Remou no barco até os confins do mato
Fisgar dourado na remota corredeira
Só que eu me perdi na longa trilha
Na linhada que sofre a solidão da espera

Fiquei para trás a escutar ruídos
Que o mistério faz entre o chão e a estrela



4 de julho de 2018

ADEUS ANTES DA AURORA

Nei Duclós


Paguei o preço desse amor que a vida jogou fora
Drama previsível, adeus antes da aurora

Rima pobre de almas em rodízio
A dividir os corpos, capítulos invisíveis
de um tempo ainda verde, o sonho de um mistério

Dormi na vigília e esqueci o deus desperto
Numa cama de nuvens, diálogos sem dança

Reencontrei mais tarde o que me dava sorte
Tinhamos a música, âncora da glória

Lembramos porque havia nos restos da esperança
O brilho dos teus olhos
cobrindo minha vergonha



VER DO CAIS

Nei Duclós


Aves não são a paisagem
Mas asas, olhar vazado

Enxergam o que não vê
o turista grudado
no contorno do cais

Pássaros ao mar
se despedem
Vozes de pura água



ENSINO SEM QUERER


Nei Duclós


Ensino sem querer
o que aprendo com esforço
Busco o conhecimento
que a todos serve na mesma mesa
Alunos e professores em rodízio do alimento
e suas sobras e raízes

É assim, bruto e claro
ao redor da fogueira
como num acampamento
que dividimos o pão, milagre diário
farinha e fermento


2 de julho de 2018

IMPÉRIO

Nei Duclós


A poesia despe o discurso
e revela a dimensão do monstro
Mostra que se negocia quando parece debate
A força bruta decidindo tudo
E as necessidades dos poderes em prontidão

Combustíveis e palavras fósseis
Águas cercadas, saídas para o mar
Ar que ninguém respira
Em acordos provisórios e conflitos definitivos

A História aliada à política busca uma solução em mapas mutantes
Sem atentar para a morte e o sangue
Barcos de migração expulsos nas brigas por territórios
Invasões práticas e utopias obsoletas
Enquanto a poesia observa tentando desarmar a bomba posta no trilho
E se escuta o comboio cheio de gente e bicho em extinção
cada vez mais próximo

O que poderá o artífice com sua escultura
em praças tomadas pelas tropas da sólida argumentação
da dor e do silêncio?

Basta ao poeta a lucidez sem volta que queima navios
e avança em direção ao coração do Império



ÁCIDO PERFUME

Nei Duclós


Faltou doçura para encerrar o dia
Deitamos por hábito num piso de espinhos
Um ácido perfume oculta a lua

Não te localizo
Estás nas nuvens, a espreitar cardumes
Sinto vibrar o corpo em mergulho

Tudo está tenso e submerso
à espera de uma estrela
que aflore por força do vulcão que cultivamos
no núcleo da galáxia extrema



1 de julho de 2018

A QUEDA, EM MAD MEN

Nei Duclós


A abertura visual, com os créditos, da série Mad Men incorpora a mesma sequência de imagens do início de Vertigo, de Hitchcock. É a queda, a derrocada, o mergulho sobre o abismo.

O gênio da criação publicitária, ao atingir o topo do sucesso, perde familia, amores, carreira, clientes. Os executivos rodam sucessivamente para baixo enquanto as agências os enganam com falsas promoções. "Mais um cargo desses e vamos atender telefones", diz um deles.

Os clientes também experimentam a derrocada. Mudanças radicais dos anos 60 deixam desarvorada a velha geração, que vê seus herdeiros perderem o que foi acumulado.

Tudo se dirige para o ralo. O sucesso leva ao fracasso. Cada fase da queda é pontuada por filmes famosos, desde It's a wonderfull life, de Capra, a Godzilla, dos filmes românticos aos documentários políticos, do filme noir aos dramas familiares.

Uma narrativa primorosa, uma obra prima. Sem tiros, nem perseguição de automóveis, com detalhes sutis desmascarando os comportamentos e diálogos brilhantes e precisos, sem pretensão nem artificialismo.