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28 de fevereiro de 2007

NOTÍCIAS DO ESFORÇO MADURO





Clint Eastwood é a América que procura amadurecer por meio da inclusão. Todos seus filmes são sobre a necessidade de colocar nas fronteiras mentais da nação um imaginário de extrema diversidade. A mulher hispânica que era a parceira do durão Calagham, o outsider que volta do exílio para defender as prostitutas em Os Imperdoáveis, o negro injustamente condenado à morte, os migrantes, os renegados, tudo faz parte, em Clint, da mesma panela fervente de um país que invade o mundo e é por ele invadido. Em Iwo Jima, que ainda não assisti, a Segunda Guerra vista do ponto dos japoneses faz parte, pelo que noto das sinopses, desse esforço de amadurecimento de uma percepção exausta da mesmice. Verei. Clint, um cineasta da linhagem de John Ford e Nicholas Ray, merece mais um post especial.

Quando a ditadura acabou com o ginásio, eliminou o importante rito de passagem da adolescência, que saía do Primário e entrava num novo mundo com responsabilidades. Aos 11 anos, estudávamos Latim, Francês, Inglês. Ao misturar Ginásio e Primário, a ditadura estendeu a irresponsabilidade da infância até o limite. Não há uma diferenciação entre o estudante que aprende as primeiras letras e o que parte para o conhecimento de outras culturas. Ok, pode-se dizer que há diferença entre o Fundamental e o Médio, mas não é a mesma coisa. No fundo, o aluno fica no mesmo trilho desde que nasce para os estudos até chegar à idade adulta. Pesquisa recente ligou a falta de ginásio, ou melhor, do ensino Médio, com a criminalidade. Faz sentido.

Manifestações variadas na Internet revelam a maturidade do esforço de vários autores, que procuram aprofundar sua participação na expressão individual e cultural na grande rede. Há inúmeros exemplos, mas vou citar a partir de hoje os mais próximos. Destaco agora o jornalista globe trotter Clovis Heberle, amigo de longa data, está resgatando a grande viagem de sua vida, na juventude, nos anos 60, para a Bolivia. O endereço é este. Por muito tempo, Clovis contou histórias desse rito de passagem para o amadurecimento e agora nos brinda com crônicas primorosas sobre aquele universo que partiu o mundo em dois, antes e depois da decisão de cair na estrada. Acompanhe os garotos e garotas que dentro de um ônibus ensaiavam uma banda e encontravam o mundo perdido desta América tão próxima e distante.

Como a babaquice tomou conta da mídia, fica difícil diferenciar um trabalho jornalístico feito com leveza e alegria com os outros, que apostam na superficialidade e na distorção. Mas não devemos perder o Ânimo. Destravar a linguagem da mídia fazendo com que os repórteres intervenham na tessitura na narrativa e se livrem dos jargões corporativos e de variados interesses, não significa que devemos cair na falsa seriedade, na tristeza de uma carga que não nos pertence. Não devemos deixar para a direita a joie de vivre, como dizem os franceses. Eles fazem tudo para nos desestimular. Procuram pêlo em ovo, contestam cada sílaba, mas devemos ficar firmes. É nossa missão conquistar a leitura por meio do talento e da verdadeira seriedade, a que não dispensa o humor e a graça.

Não existe redação mais alegre do que a dedicada à originalidade, à radicalidade da abordagem a favor da ética, à criatividade legítima. Redações que ficam se fresqueando com besteiras inomináveis são carregadas de más vibrações. E costumam levar seus veículos ao tédio e à falência. Se há uma maneira de sobreviver nesta época de extremas mudanças, em que o jornalismo impresso está sob intensa pressão, é essa de acertar a mão com a equipe integrada, diversa, trabalhando com liberdade. Amadurecer não significa perder os laços com a formação e a infância. É dar um salto a partir do que temos. Gostei do Joel Santana que chegou no Fluminense dizendo que não ia virar a mesa e sim se incorporar ao espírito da equipe para acertar o rumo. Virar a mesa só serve para sucatear redações e deixar toda a grana para as consultorias e o marketing mal intencionado.

RETORNO - Imagem de hoje: Ken Watanabe, no papel do General Tadamichi Kuribayashi, em Cartas de Iwo Jima. O que acontecia do lado de lá? É hora de saber.

26 de fevereiro de 2007

A SÍNDROME DE SUPERSTAR

Enfim Martin Scorsese confirmou toda sua megalomania ao levantar cinco Oscars numa noite em que Clint Eastwood ficou de mãos vazias. Scorsese é o herói deste tempo de nulidades expressivas. Fico impressionado como existem pessoas que gostam de nos fazer de platéia. Por exemplo: às vezes sou adicionado no orkut por alguém que se diz meu fã e jamais manda qualquer mensagem pessoal para mim, só envia spams. Houve um que se considerava escritor e por mais que eu insistisse ele apenas acenava de um palco imaginário para sua multidão de pretensos leitores, entre os quais, imagino, me incluía. Depois, a mesma pessoa decidiu sair do Orkut pois descobriu que ninguém lhe dava pelota. Deve ter se ocultado num anonimato do qual o mundo certamente se arrependerá.

Também tem o artista que jamais me dirigiu a palavra, mas está sempre me enviando um spam atrás do outro. Ou das pessoas que me enviam beijos no coração. Acho isso execrável. Um beijo no coração fatalmente vai encher de sangue a boca irresponsável. Há os que enviam conselhos espirituais, que são os piores, pois acham que somos idiotas e que jamais lemos qualquer coisa a respeito. Tem os auto-ajuda, os bem intencionados, os românticos que enchem sua paciência com mensagens imbecis. Como são cheios de boas intenções, jamais retruco e os mando às favas. Por isso continuam, celebrando o dia da amizade, a emoção da perda de alguma notoriedade, entre outras obviedades. No fundo, querem platéia. Acham que descobriram a pólvora e saem pelo mundo a disseminar a boa nova ao gentio. Mas o gentio é bárbaro e está louco para acabar com o primeiro idiota que venha largar pombas para o alto pregando paz. Cuidado.

Na televisão, sobram exemplos de pessoas sem a mínima importância ou conteúdo querendo pontificar sobre a coisa como um todo. É uma sucessão de nulidades nunca vista. No esporte, então, é um assombro. O cara corre uns quilômetros e ganha a oportunidade de fazer sua biografia ao vivo em horário nobre. Eles explicam como é essa coisa de dar o seu melhor. Parece que existe platéia cativa para tudo. Basta acender uma luz de TV para milhões de pessoas levantarem os braços. Cada individuo da platéia numerosa está dizendo: me vejam aqui, estou na televisão, me aplaudam, agora vou falar como é que a coisa funciona e como vocês poderão aprender comigo quando eu falar como eu dei o meu melhor. Um beijo coração, viu?

Nunca vi coisa mais parecida com um choque de burros na água do que as vanguardas. Acharam que música era uma coisa careta e acabaram com a harmonia e os arranjos e o resultado foi o baticum. Acharam que o cinema era reacionário demais e hoje temos tanto idiotice que um sujeitinho raso como o Scorsese é considerado gênio. Nas artes plásticas, desde que exaltaram o mijador como obra de arte não paramos de nos surpreender com a falta de imaginação e talento. No teatro e nos espetáculos em geral, eliminaram essa divisão entre palco e platéia; tinha que integrar, entende? Resultado: não existem condições de ir a um show, pois na platéia é composta de superstars de ocasião. Quem grita uhúú mais alto, quem diz a frase mais espirituosa, quem sabe mais do que o artista no palco. Todo mundo é supersptar, para que artistas? É a velha vingança da mediocridade contra o talento.

Eliminaram a arte do imaginário nacional. Transformaram cada gênio em sabonete. É de chorar ver os especiais da TV paga (agora acessíveis no You tube) sobre Tom Jobim. O deslumbramento da apresentadora, veterana de TV aberta vazia, dá o recado para a platéia: Tom Jobim é tão genial que só explicando direitinho para vocês, imbecis, para poderem apreciar essa maravilha. Ou seja, retiram do ar um artista popular de primeiríssima água como Jobim e colocam em seu lugar a brutalidade pseudo sertaneja. Aí vendem o aniversário da morte (o que é um evento incompreensível, por que comemorar aniversário de morte?) como se fosse pirulito. Enquanto isso, a apresentadora dá suspiros fundos falando de Jobim, para explicar que ela sim entende de Tom e vocês, panacas, agora vão saber quem ele foi.

Haja saco para viver num país morto.
RETORNO - Imagem de hoje: capa do mais belo disco do mundo. A música fundamental do paraíso. Autor: a estrela maior do Brasil Soberano, a nação que foi assassinada.

25 de fevereiro de 2007

EX-TODO MUNDO

O ex-jogador Zidane jogou. Se jogou, por que é ex? O cara ainda joga. Por isso o Baixinho Romário não dá colher de chá. Ele joga, ponto. E sempre será um jogador. Baixinho, mil gols de ouro!

Nenhum ex-Beatle foi substituído. Resultado: ex-Bleatle não existe. Os quatro são Beatles for ever. Mas vai dizer isso para a mídia. Teriam um chilique, um choque anifilático. Como pode o Paul McCartney ser um ex-Beatle? O cara é o próprio. Mas tirar o ex está fora de cogitação. É questão de honra. Há uma lei que deve reger todas essas bobagens. O grupo se dissolveu, por exemplo. E o que tem a ver isso? Os caras continuam com a marca que os tornou célebres. Jamais deixarão de ser o que sempre foram.

Por 30 anos repetiram cem por cento das vezes: José Bonifácio Oliveira Sobrinho, o todo-poderoso Boni. Depois passaram a dizer: o ex-todo poderoso Boni. Impressionante que jamais deixaram de chamá-lo de todo poderoso. Se dissessem para apenas citar o nome, haveria um colapso universal. Olhos esbugalhados de pânico jamais admitiriam algo diferente do que sempre foi. Deve haver um comando automático impondo essas coisas.

Ex-BBB radical seria o Pedro Bial. Tem tanto ex-BBB que é um assombro que ainda sejam notícia. Aqui perto dois se envolveram num bafafá (sou do tempo do bafafá) e foram para a delegacia. Dois inúteis, como se revelaram diante das câmaras. É para isso que existem: para provar que o povo não é de nada. Os BBB, ex ou não, representam o povo que os poderes da ditadura querem formatar: egoista, auto-centrado, vagabundo, sacana, alpinista, ágrafo, imbecilizado.

Acho o Erramos e o blog do Luis Caversan os dois espaços mais simpáticos da Folha. Sempre me respondem, pessoalmente. Como sou um ex-Folha (epa!) , me sinto um pouco ligado no jornalão, apesar de ter mudado tanto por tanto tempo. Mas meus textos estão lá no arquivo, assinados. Nunca deram uma nota sobre meus livros, mas isso é outro departamento. A Ilustrada está muito antipática. Ex-Ilustrada.

Um out-door em Nova York passa o recado de uma ex-futura divorciada para o marido traidor. Diz que sabe que o cara tem outra e filmou tudo. E que pagou o anúncio com o dinheiro da conta conjunta. O futuro ex está frito.

Ser ex alguma coisa faz parte de um mundo de exclusão. É preciso excluir para alimentar a máquina de fazer doido.
RETORNO - Imagem de hoje: Helcio Toth revela o boneco (ex-carnaval?) e o velho na porta (ex-trabalhador?) em São Luis do Piratininga.

23 de fevereiro de 2007

A MUDEZ DO CONTRABAIXO




Para quem não entende de música, como eu, o contrabaixo era um enigma. Quando comparecia num show, achava que o sujeito atrás daquele enorme violão gordo virado para o chão, espécie de tio Abelardo de sobrinhos lépidos e sonoros, era apenas um mímico. Cara bizarro, fazia gestos com todo o corpo, como se estivesse seguindo a música, que era gerada, claro, apenas pelos outros instrumentos. Pois para meu ouvido tosco, nada saída daquele troço bojudo que ele segurava com tanta dificuldade.

Foi Luiz Chavez que me fez ouvir o contrabaixo. Ele dava sentido ao Zimbo Trio, forrando com sua base sonora os lances de seus dois companheiros, Amilton Godoy, a erudição popular no piano e Rubens Barsotti, a sofisticação rítmica que embalou nossos mais belos anos. Nascido em 1931, o paraense morreu ontem, como a nação, de falência múltipla dos órgãos. Meu ouvido perde a principal referência de uma cultura musical que se desdobrou, na percepção, em muitas outras. Luiz Chavez me levou para o melhor da música erudita, de Brahms a Beethoven, para o Olimpo, ao qual pertencia.

A Record, que detinha as fitas de O Fino da Bossa, antológico programa de Elis Regina com o Zimbo Trio, deixou que energúmenos gravassem em cima das preciosidades aquelas materiolas diárias, pois faltava fita para o noticiário. Isso eu soube direto na fonte, pois trabalhei na Record por quase um ano, entre 1991 e 1992. Quis resgatar jóias do acervo da emissora e fui informado disso pelo arquivo. Inclusive eu mesmo peguei uma das fitas e vi: uns segundos de O Fino da Bossa, que era interrompido por alguma barbaridade dita informativa. Ou seja, há tempos deixamos de ser o que fomos. Luiz Chaves, com seu contrabaixo, mais audível que toda a constelação sonora que ele acompanhava, foi-se depois de muitas décadas deste funeral em que se transformou o país.

Agora a Record comprou a TV e a rádio Guaíba. A TV foi a pedra sepulcral de Breno Caldas, que ousou desafiar a Globo em plena ditadura com sua televisão em Porto Alegre. A rádio Guaíba sempre foi um modelo de rádio de qualidade e agora cai nas mãos desse império emergente, vindo do nada, das contribuições do desespero e que cresce à sombra das críticas que se faz à líder de audiência. Não gostamos da Globo? Esperem só para ver o que a Record vai aprontar quando estiver no topo. O que teremos na Guaíba na madrugada? Exorcismo?

Tudo isso faz parte do sucateamento do país. A capa da Istoé mostra o Congresso dominado por acusados de todos os tipos, mensaleiros e sujeitos perigosos e folclóricos. A nova sede do Congresso parece que vai custar uma baba. Vice-governador que exerceu a interinidade com a ausência de governadores-candidatos, agora também têm direito a uma polpuda aposentadoria de 22 mil reais por mês. Vinte e dois mil reais! Ganhar isso tudo uma só vez na vida seria já um milagre. Imaginem agora todo mês, até que a morte os separe, o político e a bufunfa.

Dizem que numa cidade aqui perto os mentepcaptos fazem guerrinha de som, com seus automóveis turbinados com caixas super potentes. Estou na parada de ônibus e vejo passar esses tipos. Gurizada metida, sarada e de boca mole. Fazem a boca mole para parecer cool. Tropa de bandidos. Sub-produtos da ditadura que nos governa e nos governará para sempre, até virarmos pó. Ou não? Ou ainda seremos capazes de fazer como o contrabaixo: demonstrar que o essencial, hoje inaudível pela brutalidade, possa um dia emergir a pleno, como um trem-bala irrompendo num túnel.

RETORNO - Cena do programa "O Fino da Bossa", no país da memória assassinada.

21 de fevereiro de 2007

EM BUSCA DA GRAÇA

O Brasil perdeu a graça. Basta ler alguns críticos de cinema. A violência com as palavras chega ao nível da violência física. Perdemos a graça porque perdemos a inocência, não a inocência útil, ou algum estado de imbecilidade pré-natal. Perdemos a inocência do espírito desarmado, a que se abre ao Outro sem má-fé ou disputa. É por isso que lamento chegar tarde aos textos sobre cinema, já que só vejo dvd, expulso que fui das salas de projeção, muito distantes aqui de casa ou impossíveis de aturar devido à presença da multidão de engraçadinhos (os perversos que embarcam nas distorções da comédia). Gostaria de fazer justiça no bate-pronto, desmascarando a falta de juízo sobre obras como Onde anda você (2004), do cineasta maior Sergio Rezende. Teve gente que não viu sentido no filme, tentando desqualificar o autor e sua equipe para o humor. Mas Rezende acerta no veio e é dever nosso dizer porquê.


Lembro um show que vi com o mutante Arnaldo Dias Batista. Ele estava quase vestido de Chaplin e sua performance, poética e hilariante em alguns momentos, era sempre pontuada por um agradecimento ao público muito parecido ao de Calvero, o personagem de Chaplin, no imortal Luzes da Ribalta, quando apresentava seu número com pulgas amestradas imaginárias. A comédia, especialmente a radical, como nesse filme de Chaplin, é um gênero da poesia e costuma sofrer da mesma incompreensão.


Rezende se serve de amplo acervo cultural, de dentro e fora do país, do cinema à música, para contar uma viagem às origens da graça perdida no país dominado pela brutalidade televisiva. Para isso, contou com a ajuda essencial do roteirista Leopoldo Serran, que desdobrou o argumento do próprio diretor, e de atores fundamentais como Juca de Oliveira, José Wilker e José Dumont, e coadjuvantes maravilhosos, como José Vasconcelos (no papel dele mesmo, uma referência ao humor que foi para o buraco negro) Paulo César Pereio (não haveria cinema brasileiro sem Pereio), Castrinho (perfeito no personagem Mirandinha), Drica Moraes (o retrato da grande perda), e o jovem casal Tiago Moraes e Regiane Alves. Além de Aramis Trindade, o foco da narrativa, pois seu Bocapura (a pureza oculta) é alta criação cinematográfica pelo ritmo, pela complexidade e pelo acerto do personagem (Aramis foi também consultor de comédia nesta obra).


A viagem parte do sufoco paulistano (onde só é possível vida na mesa entre amigos ou no passeio da madrugada) para a branca areia do Ceará, representação da inocência intocada e necessária. O impulso é dado pela exclusão, a do comediante que teve seus dias de glória e que, ao perder o grande amor e o parceiro, pretende retomar a vida buscando um novo companheiro da sua aventura profissional. É um filme explicitamente terminal, no sentido de que a procura é pontuada pelos vestígios de um país em ruínas, que assomam em sobreviventes (Dummont, absolutamente genial como sempre) ou condenados em busca da esperança (Juca de Oliveira, o ator que sobra em experiência e talento).


A viagem é contaminada pela culpa, já que Juca de Oliveira, o Felício de outrora, não perdoou a traição entre seu ex-amigo e a mulher que tanto amava. Essa culpa convive com a vontade de não morrer, mas o destino (a morte iminente que é fruto de um coração exausto, a perda total da nação sem graça) acaba se impondo. Contar essa história significa recuperar o sentimento provocado por músicas inesquecíveis (Tom Jobim, Brahms, Pepino de Capri), filmes imortais (Fellini, Mario Monicelli, Chaplin, o eterno cinema da Atlântida).


Não é pouca coisa para um filme que passou despercebido e que hoje, apesar de tão recente, dorme nas prateleiras das locadoras expondo seus enigmas. O mistério é como Sergio Rezende consegue colocar na tela o que perdemos para sempre. Seu instrumento não é a saudade, mas a busca arqueológica de um perfil nacional soterrado pela incúria. Descobre o quanto sobrevive o Brasil que nos criou e formou e foi assassinado nas esquinas do tempo.


Gostar do que somos é uma espécie de anátema. Parece que temos vergonha do país. E pior: fica claro, pela postura que os críticos assumiram diante dessa obra (considerado maravilhoso na sua estréia, pelo público no Festival de Miami), que pretendem colocar Rezende numa espécie de gaveta de um gênero único. Ele seria um “especialista” em filmes históricos, como Canudos, Lamarca, Mauá, Zuzu Angel, e não o que realmente é: um artista completo, múltiplo, com pleno domínio do seu ofício.


Quando falarem mal de Sérgio Rezende, podem contar: eu fecho os punhos e parto para a briga. O Brasil leva décadas para gerar um cineasta como ele. Deveria ser mais admirado do que é e festejado por sua absoluta transparência, sua capacidade de criar imagens fiéis ao que precisamos continuar sendo, sob pena de morrermos como nação.


RETORNO - Imagem de hoje: José Dumont e Juca de Oliveira em "Onde anda você?".

20 de fevereiro de 2007

NAS PISTAS DO BRASIL SOBERANO


As minorias que pulam o carnaval formam multidões, já que somos um país de 180 milhões de pessoas. Mas são minorias. O resto (a maioria, pelo menos nas grandes cidades) fica em casa, assistindo à representação do carnaval, dominada totalmente pela mídia. Há exceções, felizmente: no Interior e Litoral, nas pequenas cidades, a população ainda está à vontade para fazer o que gosta. É isso que fotógrafos como Hélcio Toth capturam (na imagem de hoje: Largo do Rosário em São Luis de Piratininga) e também os fotógrafos do carnaval de rua no Rio, como divulga o Globo Online.

Mas a descrição compulsiva do desfile no Sambódromo não permite que escutemos a bateria ou que possamos ver o que realmente acontece com as escolas. Tudo tem interferência, tanto na cabine de quem transmite quanto nos links no miolo do evento. Apresentadores, comentaristas e repórteres oferecem um pacote completo de representações dominadas pelo discurso intensivo da transmissão. Chamam isso de informação. Não é. É puro domínio da representação.

É para transmitir o recado ditador: o que importa é esse domínio e não o evento, que está a reboque. O próprio desfile é uma representação, mas essa não chega ao espectador. O que chega é (desculpe a palavra redundante) a representação da representação, o programa de TV onde está inserido o desfile. Se ficássemos apenas no desfile, no que ele significa, podemos dizer que é a casca de um modelo implantado nos anos 30, quando o Brasil soberano decidiu que numa avenida do Rio estariam representadas as várias manifestações da nacionalidade. Isso evoluiu para uma caricatura, uma contrafação, denunciada principalmente pelo vazio do samba enredo.

Enquanto a TV mata o carnaval, o teatro o resgata. É o que parece ser a peça “Sassaricando – e o Rio inventou a marchinha”, de Sergio Cabral e Rosa Maria Araújo, que tem feito grande sucesso. Cem marchinhas, selecionadas de 400, contam a história do Rio. Por que faz sucesso? Porque o Brasil soberano resiste no coração e mente das pessoas. Vi isso aqui na esquina de casa: uma dúzia de sambistas resgataram clássicos da música brasileira acompanhados pela vizinhança. Nada de pompa, luxo ou planejamento. Saiu tudo no suor, como se diz.

Dominar a representação faz parte do projeto da ditadura, que desinventou o Brasil para entregá-lo à pirataria internacional. O país não pode ter preservadas e em pleno desenvolvimento a própria cultura e identidade. Isso pega muito mal para quem carrega pastas de dólares por aí ou aceita os juros escorchantes da dívida externa, além de atrair dólar adoidado oferecendo farta remuneração para os sacanas que “investem”.

Especialistas contam que o juro alto desvaloriza o dólar e aumenta a dívida pública. Diminuir o juro seria a solução mas isso nem pensar. O importante é manter o país sob o tacão, sem, chances de revidar, de encontrar uma saída. É manipular o desespero oferecendo falsas soluções como os últimos governos e continuar intensificando a espiral de violência e miséria. Até quando? perguntam as manchetes quando um crime hediondo ocupa a atenção de todos. Até quando houver ditadura. Hoje quem sassarica é a bandidagem de todos os coturnos.

18 de fevereiro de 2007

REDUTOS DA LUCIDEZ ESCANCARADA

Nei Duclós


A indiferença funciona como um vírus. Se espalha pelo país continente como pandemia. Mas ao contrário de outras doenças, não encarna o Mal com todas as formas da feiúra. Vaidosa, jogo o xadrez das exclusões, iludindo, pela aparência, de que não há motivo de pânico. Na literatura, funciona assim: meia dúzia de autores citáveis ocupam todo o espaço das atenções do país oficial. O resto fica restrito ao limbo. É para provar que não existem, ou se existem, não têm nenhuma importância. O Brasil não consegue suportar a própria diversidade, por isso encarcera seus talentos numa redoma de chumbo. Finge que não vê. E quando não há remédio, quando alguém oculto explode em luz, se assenhora da evidência colocando-a no jugo do dèja vu. Ou então, deixa o tempo passar para tudo voltar ao normal.


Dentro desse ambiente de horrores, medram a frustração e o delírio megalômano. É difícil focar, na multidão de criadores pouco vistos e lembrados, os que resistem e mantêm intacta a missão a que se destinam. Eles também se rebelam, se desesperam, mas conseguem cultivar, nos redutos a que foram empurrados, a fonte escancarada de uma lucidez sem trégua. Jamais perdem seu perfil de guerreiros sem sombra. Lá eles lutam, aguardam, sonham, e continuam publicando, mesmo que isso reforce o veredicto de que não devam aparecer muito. Eles desmoralizam o cânone e desvelam, para os leitores ermos de literatura de verdade, aquilo que mais nos faz falta: o espírito livre, o ofício em estado de arte e a denúncia maior, a de que a vida, breve, é uma espécie de loucura engendrada pela morte.


É o que nos diz Emanuel Medeiros Vieira, com 16 livros publicados, em "Os Hippies Envelhecidos" (UFSC, 100 páginas), de 2002, onde encontra o lugar sagrado do equilíbrio entre memória e literatura, entre invenção e resgate. Nesse cruzamento das evidências mais nobres da existência humana, ele se coloca no foco crepuscular de uma abordagem irada e poética. Seu cuidado é não cair no vazio, no artificialismo, na tautologia. Por isso mói a narrativa de todas as formas, libertando-a dos vícios por meio de exemplar domínio do seu ofício. Os contos dessa pequena amostra de seu vasto talento jorram de um improvável (e revelador) Diário de Outono, que é, ao mesmo tempo, a reflexão do escritor sobre o que narra e a carne que oferece à leitura. Os contos fazem de Emanuel esse feixe de luz que cruza a tempestade como um arco de esperança e susto e revela o que o Brasil guarda no estoque. Seu brilho já pertence, há tempos (desde 1972, com a estréia em "A expiação de Jeruza") à literatura reconhecida, mas sua obra ainda não obteve a amplidão necessária da visibilidade. Por isso, seu trabalho funciona como denúncia, e é nessa embarcação que navegamos.


Um dos contos é “O Cabalista Tardio”, onde as lições de Franz Kafka assumem o espectro de um conselheiro, um acompanhante em praças públicas. Lá está o sopro do desespero contido que se apresenta no tom clássico e enxuto da linguagem. Lá está a ética de escrever por necessidade, jamais para fazer carreira. Lá está o personagem diante da morte, que se socorre no seu ancestral literário, iluminador de uma liberdade fecunda e dolorosa. Em “Quando Fulgêncio foi Papai Noel”, temos a reconstrução da identidade perdida da infância, da comunidade destruída mais pela incúria da burocracia do que pelo tempo. Esse resgate é feito com a plena consciência de que inventamos a infância, mas que, se não fizermos isso, estaremos condenados à pior das mortes, ao esquecimento de nós próprios. É para reencontrar-se que o autor experimenta a epifania de sua gênese. Esta, não surge do acaso ou do nada, mas da vivência, com suas ruas antigas, a família quebrada e amorosa, a fantasia que medra em folhas breves e caules firmes.


E na obra-prima que é “Obsessivos-compulsivos”, Emanuel faz a ponte entre a tragédia pessoal de um ser agônico, com a vida que não se conforma com o aniquilamento. Luta vã, essa de palavras, dirão, mas isso é só mais uma ilusão, talvez a pior a qual podemos nos submeter. O velho que se apaixona pela loira da joalheria e a segue como um maníaco enquanto imagina explodir tudo é a representação dessa pena perpétua duplamente qualificada, tanto por parte do destino, quanto por parte dos contemporâneos. É para alertar os vivos sobre a verdadeira morte (a indiferença, pura e simples) que Emanuel assesta suas baterias de insurgência. Não que essa batalha nos conforte com sua inutilidade, mas exatamente porque a luta reacende o que nos disseram estar morto.


Em “O grande amor da sua vida”, que fecha o volume, Emanuel reata os fios soltos desse crime a que chamamos existência. A paixão da juventude volta no momento terminal para dar seu recado: enquanto estivermos vivos (e é bom lembrar que somos, sim, eternos) precisamos não nos conformar com qualquer forma de condenação. Para obter alguma resultado, é preciso fazer como Emanuel: desenvolver até a insanidade os recursos de uma literatura que se liberta, tanto pela violência de estar vivo, quanto pelo amor (virado ao avesso) ao semelhante. E, principalmente, pela dureza dos espíritos que não fazem concessões na hora de escrever, aqueles que ficam misturados às salas de espera, mas são os verdadeiros talentos que permanecem.


Mistério e graça suprema: para isso foram feitos e de sua têmpera se abastece o mundo onde podemos enfim viver.


RETORNO - Imagem de hoje: Florianópolis antiga, tão bem resgatada pelo catarinense Emanuel (que vive hoje em Brasília) em vários dos seus contos.

13 de fevereiro de 2007

DUAS REVISTAS NO CINEMA


Soube pelo Comunique-se que a redação da Isto É está em greve para receber salários e que a revista passa por novo momento de transformação: poderá ser vendida a qualquer momento. Passei por situação semelhante no final dos anos 80, quando ficamos sentados no chão depois de meio mês de atraso do pagamento. Naquela época, a revista pertencia ao grupo da Gazeta Mercantil e acabou sendo recomprada pela Editora Três. A crise não é de hoje, mas existem aspectos da atual fase da globalização que colocam esse tipo de publicação no miolo das contradições do sistema financeiro internacional. Isso se reflete profundamente nas pessoas. É o que mostram dois filmes sobre duas revistas. Uma delas é a Runway, do filme O Diabo Veste Prada (2006) e a outra é a Sports Illustrated, de Em Boa Companhia (2004).


As duas incorporam o furacão da globalização da economia e são abordadas no cinema por meio do conflito entre novatos e veteranos. Em Prada, Anna Hattaway, a novata, enfrenta Merryl Strip, a tirana. E Em Boa Companhia, o veterano Denis Quaid tem de aturar o emergente Topher Grace, o marqueteiro que, a mando das grandes corporações em permanente processo de autofagia e fusões, vêm atrapalhar um veículo até então lucrativo.


O conflito básico, no fundo, é entre redação e marketing. A garota que vira assistente da ditadora quer ser repórter, mas se conforma no emprego onde serve cafezinho para a chefe. Os textos da Runway são ditadas pela publicidade e a moda e as da Sports Illustrated correm o risco de ceder à tentação do merchandising, já que a poderosa corporação que a comprou possui produtos e serviços espalhados pelo mundo e quer encontrar na revista o estuário de suas governanças. A revista de esportes está consolidado e tem credibilidade e isso atrai anúncios, mas a nova ordem é aumentar a receita dos ovos de ouro matando a galinha. Isso provoca o famoso passaralho (é preciso cortar salário para maquiar as contas), com o qual o veterano Quaid precisa se submeter. Em ambos os filmes, a imposição da ditadura da sobrevivência impede que as pessoas dignas façam o que devem fazer, ou seja, mandar tudo à merda. Existe aluguel, hipoteca, filhos, universidades pagas. É preciso engolir, tentar se adaptar, acertar.


Nada mais atual. Vemos isso todos os dias no Brasil. A toda hora, o gracinha do marketing chega com seu discurso metido a revolucionário, que nada mais é do que sucatear as boas publicações e sair lucrando com isso, deixando para trás um rastro de indignação e ruínas. Não é por nada que muita gente resolve se vingar do velho emprego entrando armado na empresa que o chutou e fazendo grande estrago. É porque a indiferença, a brutalidade e a mentira tomaram conta do mundo corporativo tão cheio de discursos éticos.

Em Boa Companhia é mais radical: a mudança dá com os burros na água e o veterano volta ao seu cargo de origem. O emergente se humaniza e resolve ser outra coisa na vida. Em Prada, há mais cinismo. A assistente, depois de fazer inúmeras concessões, acaba assumindo seu sonho de ser repórter, enquanto a tirana, vencedora no processo que iria erradicá-la do poder, acena com alguma humanização ao recomendar a antiga funcionária para o novo emprego. Happy end, como sempre. Mas os filmes valem pelo que debatem, apesar de as fórmulas cinematográficas sempre se repetirem.


Ainda insistem em abordar o assunto jornalismo como se fosse um capítulo do marketing. Não é. O jornalismo é independente e não precisa nem de serviço (isso tem de sobra na internet), nem de qualidade ou cidadania, palavras contaminadas pelo discurso pseudo politicamente correto. O que o leitor precisa é de leitura e isso só o talento pode proporcionar. Erradicar o talento e transformar a redação num apêndice das vendas é coisa para amadores. O leitor só acredita em ética de verdade e não em operação casada.


Claro que esses temas jamais chegam ao cinema nacional. Aqui nos dedicamos a outros assuntos, como pelar as pessoas, “denunciar azelites”, reiterar a miséria. Parece que o filme de Cao Hamburger sobre o garoto que teve de se virar depois que os pais sumiram, na época em que a ditadura precisava dos militares, é ótimo. Li a sinopse, assisti o trailer e achei promissor. Estou louco para ver.


RETORNO - Imagens de hoje: a foto de cima é do filme sobre a Runway, com Merryl e Anna; a de baixo é do filme sobre a Sports, com Quaid (que faz também o papel de pai de Scarlet Johanssen, na luta para ser escritora) e Topher.

11 de fevereiro de 2007

MARIA CLARA, ANO DOIS


Vistas assim de longe, todas as crianças se parecem. Só com a proximidade do convívio, o privilégio de ter a infância por perto, é possível descobrir todas as nuances das criaturas recém chegadas. Há sempre o perigo de a criança ser vista de maneira superficial, tendo sua imagem formatada pelas observações alheias, que acabam definindo coisas nada a ver. O segredo é ver, não a miniatura de uma pessoa, mas uma pessoa inteira, com todas as suas nuances e diversidade. Com minha neta Maria Clara tenho participado desse desabrochar de luzes que é o crescimento infantil. Hoje, 11 de fevereiro, é seu aniversário. Dois anos de guriazinha.


O vocabulário é silábico, com cada conjunto de letras servindo para inúmeros significados. Estes, são insistentemente invocados, pois é preciso reproduzirmos a palavra inteira que a sílaba sugere. Assim, se ela aponta para a pata do ursinho branco que ganhou de presente e diz pá, pá, precisamos comparecer com é, é a pata do ursinho. Já passamos da fase intensa da flor, em que flô/flô era dito a cada miliseguindo, durante horas. Mas temos o go, que é o iogurte, o babão, que é o balão, o Mô, que é tanto música, melancia quanto o boneco da sua casinha que ganhou de Natal. E por aí vai. É um longo aprendizado, esse da linguagem, que começou com o treinamento das várias possibilidades de som emitido pela garganta, isso quanto tinha meses. Agora a linguagem assoma para língua e dentes e estamos prestes a ouvir frases inteiras, que se esboçam, quando estamos distraídos (as crianças gostam de ter seus segredos).


Na praia há a engenharia da areia, com muros, canais e bolos. E grandes buracos para que a onda chegue com sua providencial armazenagem de água, onde ela se atira ou molha uma de suas Tatás. Sim, as bonecas de pano, de várias cores, são todas Tatá. Ontem a brincadeira era colocar uma das Tatás, das grandes, embaixo do cobertor e perguntar onde ela estava. Quando a brincadeira está no auge, os adultos costumam roer a corda, prestar atenção em outra coisa. É hora da manha: sobrolho carregado, biquinho, choramingação forjada, coisas que se desmancham bastando ceder um pouco.


Mas sua vocação, parece , é a dança. A música realmente mexe com ela. Ontem fez uma coreografia impossível: em volteios, foi se abaixando ao som do que ouvia, até quase encostar no chão. Mas não caiu nem nada. Voltou à posição normal, em curva, numa graça só. Num de seus passeios favoritos, na calçada do centrinho aqui da praia, ela se apresentou num espaço iluminado, enquanto escutava a pequena banda do restaurante tocar. Ela sabe que lá existe mô. Então vai sempre para aquela direção, onde coreografa vários passos inéditos.


Ritmo, melodia (tem uma berceuse tocada ao piano que ela adora) e água são suas paixões. A onda (má é mar), a piscina, e todos seus brinquedos dentro dela fazem parte da paisagem de verão. Santo verão, que já começa a se despedir com algumas rajadas de vento frio e chuva fina. É cedo para o outono. Estamos ainda no início de fevereiro (e já no seu final, mês tão escasso esse). Dai-nos a bênção, Senhor, do clima ameno e da infância feliz.


RETORNO - Imagem de hoje: Maria Clara e a flor, foto de Juliana Duclós.

10 de fevereiro de 2007

A LUTA E O LUTO

A democracia é o álibi perfeito para a ditadura. Os políticos não prestam? Foram vocês que escolheram! Não foi o jogo de cartas marcadas, a corrupção, a imposição do rodízio de quadros, sempre os mesmos, a manipulação da opinião pública, as legendas de aluguel, as traições, as falsas campanhas, nada disso. Foi você eleitor, trouxa, que votou neles e os caras são esses aí que vocês, e não a ditadura, escolheram.

O esquema então fica perfeito. Se continuar isso que chamam democracia, então a democracia se desmoraliza. Reabre as comportas para a “volta” da ditadura. Mas a ditadura continua, desde 64! Para que voltar, se ela está aí? O grande perigo seria mesmo a democracia, mas para isso deveria haver luta bem sucedida. E de luta todo mundo cansou. Hoje a moda é o luto.

A população clama por justiça. Quer acabar com a fábrica de facínoras, e com a política de segurança, que é idêntica ao cinto que prendeu o garoto arrastado por sete quilômetros no Rio: só serve para atrapalhar. Aí vem esses energúmenos com cadeira cativa na rede nacional de televisão para dizer que diminuir a maioridade penal não vai resolver nada. Crime hediondo não deveria ter limite de idade para a punição. Ninguém poderia ter o direito de matar pelo menos uma pessoa, como acontece na atual legislação. O cara tem dois metros de altura, um esporro de cinco metros de alcance, tem pé tamanho 46, umas manoplas que servem para carregar dez fuzis e é dimenor? A falta de lógica extrapolou todos os limites. No fundo a ditadura quer que o país se exploda. E é o que está acontecendo.

Quem disse que todos somos culpados pelo que aconteceu no Rio de Janeiro? Ele, Pablo Conejo, no seu blog na Globo (claro). Quem disse que não vai adiantar enquadrar o mandiocão assassino dimenor reduzindo a idade penal? Ele, o senador que vivia pontificando na época do Collor e depois de tantas denúncias virou coisa no Congresso. O trágico é que a pauta nacional é definida por quatro garotos da favela que resolvem roubar um carro. Vejam a fragilidade da nação entregue à sanha de todas as quadrilhas.

O acinte toma conta da primeira página. José Dirceu luta por anistia no país em luto. Tudo o que foi denunciado em 2006 está enterrado. A nação, pelo menos as gerações que estão vivas, sabem agora porque nós brasileiros somos tão escaldados, por que dizemos tanto não adianta. Não por sermos acomodados ou pacíficos, mas porque a violência é grande e profunda demais.

Quer dizer então que somos inocentes? Não há inocência quando atingimos a idade da razão. Mas é como diz a canção: nem virgem nem puta. Não é o povo que elege, é o sistema engendrado pela ditadura. Eles se perpetuam no poder, assumindo posições no front ou nos bastidores. São sempre os mesmos e seus clones. É armadilha fatal: estamos em plena ditadura exaustos da tal democracia; estamos em pleno luto exaustos da luta; estamos em plena indignação exaustos de tanta lucidez. Estamos de mãos amarradas. Presos ao cinto de insegurança que nos transforma em judas malhados pela crueldade.


RETORNO - Imagem de hoje: cena de "O encouraçado Potemkin", de Sergei Eisenstein.

8 de fevereiro de 2007

EXPRESSÕES ENIGMÁTICAS


Não entendo uma série de expressões de uso muito corrente e que jamais são contestadas em seu sentido ou na sua real função. São elas:


DAR UM BASTA - Toda hora alguém está dando um basta ou pedindo para dar um basta. Nada deixa de acontecer só porque alguém decidiu dar um basta. Não sei porque continuando querendo dar um basta, ou pior, reproduzindo isso como se fosse a solução definitiva para tudo aquilo que merece mesmo um basta. Alguém precisa dar um basta nisso tudo.


ESTADO DE ALERTA - É assim o estado de alerta: todo mundo fica de olho parado. Puxa, cidade tal ficou em estado de alerta. Todo mundo foi dormir, mas oficialmente estão de alerta. Tem alguém de prontidão? Houve exercício, treinamento, para que o alerta funcione na hora agá? Há recursos, funcionários, cultura específica implantada, percepção real do perigo em sintonia com as soluções emergenciais? Ou estado de alerta é apenas um estado de espírito, ou pior, uma campanha de marketing?


FORÇA TAREFA – É apenas a composição de duas palavras fortes. Não faz sentido: é uma força que pegou algo para fazer? Que força é essa? Força militar, intelectual, de prestígio? E a tarefa é fazer o quê? Resolver o problema, solucionar o impasse, dar uma resposta efetiva imediata? Ou serve só para ocupar o noticiário? Tem força tarefa para tudo. É a resposta mais comum de quem não sabe o que fazer. Monta a força tarefa e pronto, está limpo, já se pode assistir televisão tranqüilo.


SAIA JUSTA - Parece que todo marmanjo adora uma saia justa. É o que o noticiário costuma difundir. Fulano provocou uma saia justa em sicrano. Numa época em que ninguém mais usa saia, a não ser o Príncipe Charles quando vai se roçar numa tuna na Escócia, fica estranho essa chuva de saias justas para tudo que é situação. Saia justa é do tempo em que elas eram afuniladas no joelho e costumavam gerar algum tropeço. Saias de verdade usadas por mulheres. A cintura era finíssima, apertada por grossas cintas. Ficava aquela saia bem justa nos quadris, para o deslumbre da moçada.


EU ESTOU CONVENCIDO - Quando alguém decidia contar alguma vantagem era chamado de convencido. Hoje todo mundo está convencido de alguma coisa. É porque não passam de um bando de convencidos. Enchem o peito, enrugam a testa, torcem os ombros, sacodem os dedos e tascam: Eu estou convencido...É a maneira de dizer: a opinião de vocês não interessa. Já me convenci, portanto vou fazer como bem entendo. Vocês, que não são convencidos, agüentem.


CONSULTAR A SOCIEDADE - Como se a sociedade fosse alguma médica ou consultora. A sociedade, que eu saiba, é a máfia. O resto é um bando de pessoas sem ter onde cair vivo, na mão das mais variadas organizações. Quando dizem que vão ou foram consultar a sociedade, é batata: já roubaram, ou vão roubar; já decidiram ou vão decidir; vão cobrar pela pesquisa; vão adiar o problema; vão dar um basta na semana e ir para a praia; e ainda por cima ficarão em estado de alerta sobre o teu dinheiro; por isso já criaram uma força tarefa que vai deixar na maior saia justa todos os inadimplentes, ou seja, a cidadania em pânico que os sustenta e os atura.

RETORNO - Imagem de hoje: a versão da saia justa por Helcio Toth.

6 de fevereiro de 2007

APOCALIPSE DE RESULTADOS



Lembram da vaca louca? Foi o fim do mundo. E o bug do milênio? Ia foder tudo. E a gripe aviária? Muito pior do que a gripe espanhola. Teve mais: a fase dos asteróides que iriam se chocar contra a terra; a hecatombe nuclear; a iminente era do gelo. Agora mudou, a moda é o aquecimento global. O inverno, onde moro, é rigoroso. Há anos falam em aquecimento global e sempre congelo por longos meses. Mas parece que agora a pauta é séria. Vão derreter as calotas polares e babaus cidades à beira mar, vai ficar tudo embaixo da água. A salvação será emigrar para terras altas, como São Paulo. Opa! Ou São Joaquim, onde neva. Ops: está frio? Com certeza, está frio. Puxa, está frio aqui em São Joaquim. Só para ter uma (jamais duas) idéia, está calor aqui na praia. É com você, Bonner.

O Apocalipse parece ser um bom negócio, senão não seria tão incentivado. Graças a Deus passou a época do milênio, essa palavra execrável que encheu os tubos de todo mundo. Milênio é a senhora sua mãe. Porque completava três zeros e pronto, assim falava Zaratustra, ou Nostradamus, ou Nicodemus. Tudo estava escrito. E o mundo acabava assim de uma hora para outra. Já acabou? Cut!, como diria John Ford.

Como o troço é resistente e não há o que o acabe, o Apocalipse acaba virando moeda de muito valor, gerando resultados, como dizem as consultorias. Soube que o medo da gripe aviária abriu o mercado de marrecos, por exemplo. E que a crise da vaca louca acabou quando sepultaram um trilhão de toneladas de proteína e deixaram de dar carne para os coitados do bovinos vegetarianos comerem. E que o efeito estufa é asneira perto do que a terra pode aprontar. Como se tivéssemos algum efeito sobre esse gigante boiando no éter.

Mas vocês já viram esse troço de créditos de carbono? É assim: a indústria poluidora do país rico compra seu direito de poluir. Compra de quem? das empresas não poluidoras dos países pobres. Mas, caceta, se o objetivo é não poluir, então basta pagar para cometer o crime? Ou seja, o objetivo é bufunfa e não o tal desenvolvimento, um argumento que considero insustentável. Ninguém quer desenvolver nada. Querem é pila, grana, money, dóla. Seja de que jeito for. Para isso dizem e falam qualquer coisa. O que tem de matéria, capa, noticia sobre o novo apocalipse do aquecimento global não está no gibi.

Esse negócio de fim de mundo é pura cultura pós segunda guerra, logo depois que os americanos torraram 400 mil civis no Japão com bombas nucleares. Todas as histórias em quadrinhos, os tais comics, é de malévolos apocalípticos que queriam destruir o mundo mas o capitão Marvel não deixava. Shazam! É com você, Fátima. Mas as pessoas ficam brabas se você se você tentar desmoralizar o apocalipse delas. Finja que você acredita. No fundo, você acredita. Só não suporta que só se fale nisso em toda a mídia e que isso vire uma commodity qualquer.

5 de fevereiro de 2007

EM TORNO DE VÉSPER

DIÁRIO DA FONTE




Converso com Vésper, toda vez que assoma no céu do país que eu amo. Faço sempre um pedido, às vezes dois, que são atendidos. Porque Vésper é anunciadora de estrelas, farol de um anoitecer extremo. Tantas vezes náufrago, dela me sirvo para orientar o rumo. Navego o olhar em sua direção, balão de promessas, e acato suas decisões, inspiradas por visões noturnas.

Ainda é branco o céu, pálido diante do dia exangue, quando ela vem tomar seu posto, acima do horizonte do verão. É talvez um gesto seu que faz desencadear as constelações, rastro luminoso de duendes ocultos, os que se fazem representar pelas nuvens roxas do ângelus. Passaporte para o veludo salpicado de brilhos, ela forra o teto do mundo antes de diminuir de tamanho e se confundir com tudo.

Onde está Vésper depois que anoitece? Na corte da lua cheia, sem dúvida, onde divide posições de semeaduras. De lá ela providencia marés e chuvas, e talvez, glória suprema, mais um dia perfeito desenhado na prancha grávida de futuros. Ela fecha o ciclo do dia onde encontramos paz e promete a manhã seguinte com seu carimbo de sonhos.

Balanço na varanda tomado pela visão de Vésper, deusa soberana que encerra o diamante do amanhecer. É sempre a mesma, a primeira que surge, quando o tempo duela consigo mesmo e reparte os momentos como Deus em pleno gênesis. Mas ela não quer poder e sim o manso rio de sua própria aventura. Lição de coisas, torre de abismos, sutil princesa sem sustos. Vejo-te quieta como um sinal de vidas eternas, almas que não somem, carnes que ressuscitam.

Somos palavras engatilhadas como soluços, que contigo cruzam o mar de enigmas. Nosso discurso precisa de ti, vagalume ao redor de cíclopes. És o olho aberto para quem precisa viver mais uma vez para que os acertos definam o destino. Reestudamos teu curso como os antigos sábios abriam mapas de pergaminho. Adaptamos nosso fruto, como árvore que aprende segredos. Sabemos pouco e isso nos serve de alimento, desde que possamos vê-la, presente com suas algemas de prata, a prender a atenção como um redemoinho.

Converso com Vésper, luz de uma eternidade em suspenso. Só por um instante, pois não há catedrais que te religuem. Flutuas na imensidão de nossas dúvidas e recolhes as folhas que deixamos no chão de tanta espera. Aguardamos a música que descreves em curvas acima da montanha encantada pelo calor da estação. E ela vem, como um véu de faíscas imaginadas, envolvendo a paisagem com um novo estribilho. Canto contigo, estrela nua. Escuto a mocidade do amor, vitória régia. Pouso em ti como um pássaro na gruta. E faço uma oração para continuar aqui, no país que construo, longe do ruído que tenta nos enganar.

Vésper, cupido que usa flor e lança perfumes. Atenda minha oração, soberana que chega até nós com seu séquito de trunfos. Fique ao meu lado, estrela que adormece entre sussurros.

RETORNO - Imagem de hoje: Vênus, na melhor versão, a do mito.

4 de fevereiro de 2007

DIÁRIO DA FONTE



SE EU FOSSE PRESIDENTE

Não é megalomania, é exercício de imaginação, muito comum entre nós, brasileiros, já que não fomos bem servidos, nas últimas décadas, por estadistas na capital da República. Bastava que um desses ocupantes do Planalto fizesse o mínimo, construir uma ferrovia, como fez Dom Pedro II. Mas como não fazem nada, a não ser produzir papel, planos que jamais são cumpridos a não ser no marketing, então sobra para o pobre cidadão comum sonhar em fazer melhor. O que é preciso decidir se você ocupar a cadeira número 1 do país? Eu começaria fazendo um up-grade na malha ferroviária. Deixaria nos trinques, pronta para ser usada para passageiros e carga. Nem precisaria cair na armadilha das licitações.Como a rede já existe, ou existiu, é só caprichar em cima dela, refazendo tudo com ajuda de mão de obra fixa, contratada e os serviços de voluntários. Duvido que não existam milhares de brasileiros dispostos a ajudar na reconstrução da ferrovia do país continente.

Uma das coisas que me invoca é como qualquer meliante consegue acesso ao dinheiro público. Intervir na boca do caixa não me parece tão complicado assim. Ou seja, você corta no varejo a grossa bandalheira do atacado. O cara pode fazer a estripulia que quiser, mas na hora de sacar, receber, transferir dinheiro para sua conta, não conseguiria. Por que? Acho que nem precisa da tal vontade política, um software seria suficiente. Vai sacar? O sistema não permite, só com ordem direta da presidência. Nos Ministérios, não haveria políticos exercendo cargos, mas técnicos qualificados com vocação de estadistas. Isso daria um rolo federal com o Congresso, você não poderia governar, dirão. Poderia sim. Tirar a palavra negócio da política é moleza, basta não receber os negociadores. Vão negociar a véia. Querem trocar apoio por verba? Filmo tudo e coloco no You Tube. Mas aí não liberariam as verbas. Só a grana grossa que rola na presidência sem que precise prestar conta nenhuma, que dá para comprar um tonelada de azeitonas e creme de leite, ou remodelar os móveis do Palácio, já daria para fazer um monte de coisas.

A idéia é governar por um só mandato, nada de reeleição, que você não terá chance depois de contrariar tanta gente. Mas uns quatro ou cinco anos bastam. Você acaba com a besteirada na educação, por exemplo. Acaba com a aprovação compulsória e traz de volta o primário e o ginásio. Quem não estudar, será reprovado. Quem reprovar duas vezes, fora. Outra coisa que não entendo porque não fazem é saneamento. Construir uma rede de esgotos em todo o país não me parece grande coisa. Desde que você não terceirize, não coloque na mão de empreiteiras. Aliás, eu nacionalizaria as grandes empreiteiras. Acabava assim a dívida que se tem com elas. Já faturaram demais. Tem empreiteiro trilionário, para quê? Você implanta a rede de esgotos e institucionaliza o bom e velho DLP, Departamento de Limpeza Pública, em todos os municípios. Acaba com a farra do lixo. Gera empregos fundamentais na Limpeza e nas ferrovias. Emprego de massa, em rede, de verdade, com carreira profissional nelas. Linha terceirizada de metrô? Pára com isso. Só serve para inventar crateras.

Na segurança, basta coragem. Você corta o fornecimento de armas, contrabandeadas ou não (haveria intervenção obrigatória nos arsenais disponíveis da União e dos Estados) e cerca a bandidagem com a pertinácia militar que é o abastecimento perene de armas, munições e retirada de feridos (como se faz com a guerra) nos campos de batalha. Você não dá moleza também para consumidor. Não adianta perseguir traficante se os boyzinhos querem consumir. Você dá um cagaço na gurizada. Precisa assustá-los com a presença marcante de um Estado soberano e fundado na ética. Faz uma limpa nas polícias e em comum acordo com o Judiciário, faz também uma reformulação dos quadros nos tribunais e cadeias. Limpa os presídios, investe no espaço físico e nas políticas públicas de reinserção social.

E te cerca de bons elementos, de gente capaz, brilhante, hoje atirada aos quatro cantos. Governe para o andar de cima das capacidades intelectuais e morais. Não faça concessões à mediocridade, hoje reinante. Não faça concessões aos idiotas. Desmoralize-os. Não permite que o dinheiro público financie a putaria na cultura. Implante em todas as regiões um grande estúdio para produzir cinema de qualidade, garantido por um esquema de distribuição que passe ao largo da atual situação, em que tudo está na mão de quem adora disseminar porcarias. E bata forte na programação da TV. Pelo menos, não sustente com grossa dinheirama um esquema que faz pregações religiosas na TV aberta, bigbrothers , programas de auditórios e outras baixarias. Não, nada de Chávez, que quer fazer a televisão obra da sua ideologia fajuta. Simplesmente impeça que a mediocridade tome conta de tudo. Estoque os imbecis num canto. Amedronte-os. E gere um novo paradigma para o país em ruínas.

E proteja-se, porque eles não vão deixar barato.

RETORNO - Imagem de hoje: ferrovia na Finlândia. No Brasil, o imaginário em relação às ferrovias é o mesmo que existia no século 19, quando o Império brasileiro implantou a rede, destruída a partir de JK. Imaginar algo novo fica difícil quando tudo vira ferro velho.

2 de fevereiro de 2007




ROMPER COM A INDIFERENÇA



Comigo acontece muito. No momento em que você encontra algo realmente importante para dizer ou contar, imediatamente a boca do interlocutor se abre vagarosamente no início de um longo bocejo. Parece de propósito. Talvez o objetivo seja cortar o mal (teu entusiasmo, o prazer de falar) pela raiz. Talvez nossa intervenção seja só um acidente do percurso verdadeiro, que é a fala de quem domina a conversa. Nada existe fora das pessoas. Tudo se reporta a cada uma delas. Ontem mesmo no ônibus uma mulher engatou a primeira, a segunda, e todas as marchas numa história interminável sobre sua vida, enquanto a pobre da companheira de banco olhava de maneira exausta aquela narrativa sem fim.


A única coisa mesmo que chama a atenção e que reúne as pessoas em estrondosos bandos de falas interessadíssimas é a violência. Acidente, assassinato, briga doméstica que acaba na polícia, tudo isso faz com que a humanidade se reconheça como espécie. Acho que nem é tanto o fato de celebrar a desgraça alheia, ou nela se reconhecer integralmente. Mas sim a constatação de que a cultura, que deveria ocupar as cabeças e mentes, está totalmente ausente, e só existe a barbárie como referência. O Outro, essa criatura anti-natural (por se situar fora do mundo conhecido), depende de formação cultural para ser identificado.


Vejo o belo filme de Roger Donaldson sobre Burt Munro, o neozelandês que em 1967 cruzou o mundo para bater recordes de velocidade com sua velha moto. Quando vi o trailer, tive péssima impressão do filme. Achei que era sobre corrida de moto, essas besteiras. Mas é sobre a saga de alguém determinado, um velho que decide fazer algo grandioso da sua vida. Anthony Hopkins está magistral no papel. O roteiro, do próprio Donaldson, foi escrito em 1980. O cara leva uma vida para realizar um sonho, o filme sobre o esportista veterano que colocou a Nova Zelândia no mapa. Aí vem o marketing e o embala como se fosse uma besteira qualquer.


Trata-se de um road movies, em que o protagonista vai interagindo com pessoas ao longo do caminho. Pessoas isoladas pela indiferença ambiente, que vêem no viajante uma oportunidade de interagir. São cenas tocantes de Munro com o velho índio (que lhe presenteia testículos moídos de cachorro para curar a próstata), a viúva (que o convida para uma noite de sexo), a drag (que se encanta com seu cavalheirismo) e o soldado do Vietnã, brutalizado pela guerra e que vê em Munro a passagem de uma vida dedicada à paz e à alegria.


O herói vai rompendo a indiferença, inclusive dos organizadores da corrida onde ele quer bater o recorde. A todos encanta com sua sinceridade e sua força de vontade. E vence porque não enxerga nos seus semelhantes motivos para detestar a vida. A sorte conflui para ele, atraída pelo charme do cara que enfrentou a indiferença e o descrédito para chegar onde queria. Maravilhoso filme que merece ser visto. É de 2005. O título em português é uma bobagem: Desafiando os limites.


RETORNO - Imagem de hoje: Anthony Hopkins no papel de Burt Munro.

1 de fevereiro de 2007

O VENDEDOR DE LIVROS



Recebo visita apenas de evangélicos que querem me ler a Bíblia. Eles passam no domingo, quase que uniformizados, com chapéus e pastas e têm aquela certeza de que estão disseminando a boa nova ao gentio. Costumo invocar a Virgem Maria para fazê-los desistir. Mas eles voltam, insistem. Lembro da abordagem dos vendedores de enciclopédias, agora mais raros, mas que continuam na ativa. Os professores estão exigindo fontes impressas, para acabar com o plágio tirado da internet. Então os vendedores continuam oferecendo seus volumes de luxo. Eu também entrei na roda. Ofereço meu livro de conto e crônicas para os que passam, para a vizinhança, para os trabalhadores do comércio, para conhecidos e até mesmo alguns turistas, esses mais avessos à leitura, pois preferem sorvete e cerveja, o que está nos seus direitos.


Um livro não é necessário, ainda mais um que publiquei. Preciso convencê-los de que estão adquirindo uma seleta de crônicas que têm tudo a ver com o mundo que os cerca. É uma relação poética com a paisagem, digo em meus argumentos. Para quem exibe uma reação avessa logo no primeiro olhar, nem insisto. Mas para quem oferece dúvidas, entro com minhas palavras sobre o livro. Por que eles teriam que adquiri-lo? Porque é bom e o autor está na sua frente. Isso tem grande poder de persuasão, pois muitos nunca viram um autor ao vivo. Normalmente há gentileza, mesmo na recusas. E um certo entusiasmo quando se convencem. É bom conquistar leitores.


Enquanto isso, alguns exemplares que deixei em livrarias continuam lá, concorrendo com todos os best-sellers do mundo. Um autor veterano e ainda emergente não tem muita chance diante da avassaladora presença de títulos variados, apelando para as necessidades do leitor. Quem roubou meu queijo? Maria Madalena é o Santa Graal? Jesus, o maior psicólogo que já existiu. Sexo é prosa, amor é poesia (ou algo assim). Não há perigo de melhorar. Em compensação, aperto a mão do poeta e artista Rodrigo de Haro, filho do pintor maior Martinho de Haro, que me confessa ter perdido duas noites de sono lendo O Refúgio do Príncipe. Elogiou as imagens vivas e fortes e isso me deixa feliz, pois Rodrigo é poeta excelente e importante e tem uma erudição transbordante, que nos cativa na conversa.


É a segunda vez que saio à luta para vender meu peixe. Fiz isso antes, com poemas em cartolina, expostos na Praça da Alfândega, em Porto Alegre, junto com Marco Celso Viola, em 1969. Cada poema, escrito em pincel atômico sobre cartolina branca, custava um cruzeiro. Vendíamos um e íamos tirar a barriga da miséria. Um bom café, pão e manteiga. É assim a vida de escritor no Brasil. Hoje, tenho uma edição caprichada, com capa de Juliana Duclós, que fisga no primeiro olhar. Falo que o livro tem histórias da Lagoa, dos Ingleses, do morro da Cruz. Há a tentação da curiosidade. E, claro, o reconhecimento que o autor está ali, pagando o maior mico, só para levar adiante o que sonhou e trabalhou por anos.


Sou o vendedor do meu livro. Trago imagens debaixo do braço que ficarão na tua cabeceira, na rede onde descansas as retinas. Alguém da tua família poderá ler também. O livro assim cumpre seu destino e vai se disseminando aos poucos, como água da fonte vinda da montanha que pela primeira vez experimenta a planície. Há ruínas pelo caminho. Há indecisões, arrependimentos, medos. Mas há também penhascos à beira mar, quando enfim as palavras deságuam no grande estuário da humanidade. É muito para um livro feito aos poucos, nessa minha providencial mudança para Florianópolis, cidade que amo entre várias outras. Sou o vendedor do meu livro. Faço preço especial para quem compra direto de mim. São meus direitos autorais que tiro em exemplares. O best-seller novinho e caro tem seu charme. Mas o que te ofereço é pura poesia e essa deve ter um lugar especial na sua mente e no seu coração.


RETORNO - Imagem de hoje: Fada Madrinha, pintura de Juliana Duclós.