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18 de fevereiro de 2007

REDUTOS DA LUCIDEZ ESCANCARADA

Nei Duclós


A indiferença funciona como um vírus. Se espalha pelo país continente como pandemia. Mas ao contrário de outras doenças, não encarna o Mal com todas as formas da feiúra. Vaidosa, jogo o xadrez das exclusões, iludindo, pela aparência, de que não há motivo de pânico. Na literatura, funciona assim: meia dúzia de autores citáveis ocupam todo o espaço das atenções do país oficial. O resto fica restrito ao limbo. É para provar que não existem, ou se existem, não têm nenhuma importância. O Brasil não consegue suportar a própria diversidade, por isso encarcera seus talentos numa redoma de chumbo. Finge que não vê. E quando não há remédio, quando alguém oculto explode em luz, se assenhora da evidência colocando-a no jugo do dèja vu. Ou então, deixa o tempo passar para tudo voltar ao normal.


Dentro desse ambiente de horrores, medram a frustração e o delírio megalômano. É difícil focar, na multidão de criadores pouco vistos e lembrados, os que resistem e mantêm intacta a missão a que se destinam. Eles também se rebelam, se desesperam, mas conseguem cultivar, nos redutos a que foram empurrados, a fonte escancarada de uma lucidez sem trégua. Jamais perdem seu perfil de guerreiros sem sombra. Lá eles lutam, aguardam, sonham, e continuam publicando, mesmo que isso reforce o veredicto de que não devam aparecer muito. Eles desmoralizam o cânone e desvelam, para os leitores ermos de literatura de verdade, aquilo que mais nos faz falta: o espírito livre, o ofício em estado de arte e a denúncia maior, a de que a vida, breve, é uma espécie de loucura engendrada pela morte.


É o que nos diz Emanuel Medeiros Vieira, com 16 livros publicados, em "Os Hippies Envelhecidos" (UFSC, 100 páginas), de 2002, onde encontra o lugar sagrado do equilíbrio entre memória e literatura, entre invenção e resgate. Nesse cruzamento das evidências mais nobres da existência humana, ele se coloca no foco crepuscular de uma abordagem irada e poética. Seu cuidado é não cair no vazio, no artificialismo, na tautologia. Por isso mói a narrativa de todas as formas, libertando-a dos vícios por meio de exemplar domínio do seu ofício. Os contos dessa pequena amostra de seu vasto talento jorram de um improvável (e revelador) Diário de Outono, que é, ao mesmo tempo, a reflexão do escritor sobre o que narra e a carne que oferece à leitura. Os contos fazem de Emanuel esse feixe de luz que cruza a tempestade como um arco de esperança e susto e revela o que o Brasil guarda no estoque. Seu brilho já pertence, há tempos (desde 1972, com a estréia em "A expiação de Jeruza") à literatura reconhecida, mas sua obra ainda não obteve a amplidão necessária da visibilidade. Por isso, seu trabalho funciona como denúncia, e é nessa embarcação que navegamos.


Um dos contos é “O Cabalista Tardio”, onde as lições de Franz Kafka assumem o espectro de um conselheiro, um acompanhante em praças públicas. Lá está o sopro do desespero contido que se apresenta no tom clássico e enxuto da linguagem. Lá está a ética de escrever por necessidade, jamais para fazer carreira. Lá está o personagem diante da morte, que se socorre no seu ancestral literário, iluminador de uma liberdade fecunda e dolorosa. Em “Quando Fulgêncio foi Papai Noel”, temos a reconstrução da identidade perdida da infância, da comunidade destruída mais pela incúria da burocracia do que pelo tempo. Esse resgate é feito com a plena consciência de que inventamos a infância, mas que, se não fizermos isso, estaremos condenados à pior das mortes, ao esquecimento de nós próprios. É para reencontrar-se que o autor experimenta a epifania de sua gênese. Esta, não surge do acaso ou do nada, mas da vivência, com suas ruas antigas, a família quebrada e amorosa, a fantasia que medra em folhas breves e caules firmes.


E na obra-prima que é “Obsessivos-compulsivos”, Emanuel faz a ponte entre a tragédia pessoal de um ser agônico, com a vida que não se conforma com o aniquilamento. Luta vã, essa de palavras, dirão, mas isso é só mais uma ilusão, talvez a pior a qual podemos nos submeter. O velho que se apaixona pela loira da joalheria e a segue como um maníaco enquanto imagina explodir tudo é a representação dessa pena perpétua duplamente qualificada, tanto por parte do destino, quanto por parte dos contemporâneos. É para alertar os vivos sobre a verdadeira morte (a indiferença, pura e simples) que Emanuel assesta suas baterias de insurgência. Não que essa batalha nos conforte com sua inutilidade, mas exatamente porque a luta reacende o que nos disseram estar morto.


Em “O grande amor da sua vida”, que fecha o volume, Emanuel reata os fios soltos desse crime a que chamamos existência. A paixão da juventude volta no momento terminal para dar seu recado: enquanto estivermos vivos (e é bom lembrar que somos, sim, eternos) precisamos não nos conformar com qualquer forma de condenação. Para obter alguma resultado, é preciso fazer como Emanuel: desenvolver até a insanidade os recursos de uma literatura que se liberta, tanto pela violência de estar vivo, quanto pelo amor (virado ao avesso) ao semelhante. E, principalmente, pela dureza dos espíritos que não fazem concessões na hora de escrever, aqueles que ficam misturados às salas de espera, mas são os verdadeiros talentos que permanecem.


Mistério e graça suprema: para isso foram feitos e de sua têmpera se abastece o mundo onde podemos enfim viver.


RETORNO - Imagem de hoje: Florianópolis antiga, tão bem resgatada pelo catarinense Emanuel (que vive hoje em Brasília) em vários dos seus contos.

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