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30 de novembro de 2005

O TEMPO FAZ UMA VISITA



A visita se anunciou com seu nome velho de guerra. Gorrinha! gritei e vi o mesmo Erci de sempre, o cara que foi trabalhar com meu pai aos 15 anos de idade, primeiro para cuidar da lenheira, o primeiro negócio criado depois que seu Ortiz deixou o Centro de Saúde. Depois, em todos os trabalhos inventados, desde despachar no balcão do Armazém Oásis, que ficava no fundo de casa, passando por inúmeros encargos e mandados. Sempre com sua boina preta e seu eterno bigode. Gorrinha, aos 73 anos, afastou-se de mim por uns instantes, para fazer o que nunca eu nunca tinha visto nele: chorar. Chorou para valer, enquanto relembrava meus pais, dos quais não guarda nenhuma foto. Lamentou também que não pôde comparecer aos dois enterros, eventos à luz do dia, momento em que ele nada sabia, pois dormia por exercer por muitos anos a função de Guarda noturno. Ao lado de sua bicicleta, Erci me informou que mora ainda no mesmo lugar e aguarda correspondência, pois costuma responder.

COBRE - Gorrinha: sua cor de cobre, seu rosto vincado guardam, apesar do Tempo, o ar de eterno menino. O brilho nos olhos denuncia sua qualidade mais explícita: a vivacidade, a vontade de viver. Nunca fumei ou bebi, nunca tive vício, diz, enquanto enxuga as lágrimas. Mas ele não foi a única visita que o Tempo fez na minha viagem. Um senhor me olhava firme no estande da prefeitura, com meu livro na mão. Pediu um autógrafo. O rosto me era familiar, mas assim mesmo perguntei seu nome (sou péssimo para lembrar nomes, apesar de guardar fisionomias). Quando se identificou, caí sentado. Dr. Batista Luzardo!, o chefe do Departamento onde minha mãe trabalhou toda a vida até se aposentar. O Dr. Edson era a pessoa que me receitava o remédio providencial para o garoto problemático. Suas histórias cruzaram minha infância. Minha mãe falava tanto nele que um dia houve reclamações em casa: era Dr. Luzardo demais! Pois lá estava ele, sorrindo, aos 82 anos, vitorioso, me contaram depois, contra uma doença braba. Ereto, firme, mantendo seu aprumo e sua simpatia. Sua aparição foi rápida, foi-se logo depois de me fazer algumas perguntas e se interessar pela revista onde trabalho, a Empreendedor, aqui de Florianópolis. Mas o Tempo haveria de me reservar uma outra surpresa.

FOTAÇA - O irmão mais novo de Julio e Luis Lhamby, cracaços do colégio Santana, chegou para mim pelas mãos do Fernando Pereira da Silva para me dar um presente. Era uma foto ampliada do time da segunda série ginasial. Inacreditável. Eu estou acocado, com minha célebre camiseta de goleiro que trazia o nome São Luiz no peito. Por muito anos contei a história daquele campeonato para meus filhos. Nosso time era bom demais, mas costumávamos empatar quase todas as partidas daquele torneio. Acho que foi nos Jogos da Primavera. Havia tempo que eu não comparecia no gol, estava meio afastado do futebol, devido às minhas asmas, gripes, provocadas pelo longo inverno. Mas aquela era a chance de me recuperar, retomar minha posição. No primeiro jogo, tomei um gol. O chato que se postava atrás da rede comentou: eu sabia que estavas fora de forma. Serviu para me concentrar. No resto do torneio defendi tudo e todas. Ajudei a classificar o time para a final, defendendo pênaltys decisivos. Está no romance Universo Baldio o truque que descobri para fazer essa defesa: olhava para o pé do batedor, e dependendo do lado que virava eu sabia para onde ia a bola. Era só me atirar no exato momento do chute. Foi assim que defendi (ou ataquei, pois na minha terra goleiro ataca) aquelas bolas. Só que no último jogo, a bola veio centrada e eu me atirei em cima do centro-avante, que teve sorte: seu chute pegou na veia e perdemos por um a zero. Fomos vice-campeões. Mas éramos, obviamente, muito melhores do que os adversários.

PAI - O time está lá, estampado, intacto, glorioso: Laranjeira, Teixeira, Julio Lhamby, Rubens Lenar Güez (que reencontrei na Prefeitura, onde é funcionário), Ulisses, Cheira-cheira e seu irmão Cheira-cheirinha (perdão por lembrar apenas os apelidos), eu, Chitoca (o Vicente Orcy Torre), José Luis Pons e alguém que não lembro, mas vou lembrar. Na foto, ainda estão, de terno e gravato, nosso elegante técnico Barreneche (o colega uruguaio que chegou com os olhos esbugalhados no primeiro dia de aula, pois não sabia falar português) e vestindo grande batina, o irmão Gotardo, professor e responsável pelo time. Quem não me conheceu antes da atual fase, perguntava: mas é tu, mesmo? Sim, todos concordam. Estou igual ao seu Ortiz. Foi o que disse a filha do Gorrinha quando me viu na TV: olha, pai, o Nei, igualzinho ao seu Ortiz! E foi assim que fui incluído, com meu peso atual e tudo: represento aquela pessoa inesquecível que marcou minha cidade com sua presença, sua generosidade, suas tiradas, seus gestos, suas histórias. É o que me orgulha ser: uma lembrança do pai, que se foi, mas que me deu uma vida de presente, a vida que tenho e onde faço questão de manter acesa a chama da sua memória.

29 de novembro de 2005

NO CORAÇÃO DA CIDADE

Ao reencontrar meus conterrâneos, fiz parte novamente da geografia urbana desse espaço majestoso que é a Praça Barão do Rio Branco, onde acontece até domingo a 31ª. Feira do Livro. Nele discursei e encontrei inúmeras pessoas, todas atraídas pela memória, que é o grande acontecimento desse evento. Nossos rostos de muito meninos estão estampados no livro de Moacir Bastiani (inspirado pela longa caminhada que fez, quase 700 quilômetros desde Porto Alegre, para comemorar os cem anos do nosso Colégio Santana). No stand da Prefeitura o que mais chama a atenção são as grandes fotos antigas, destacando-se uma que mostra a Praça Dom Pedro II. Houve polêmica sobre o lugar onde se situava. Até que um senhor, de cabelos brancos, disse: foi ali, descendo a Duque de Caxias, à direita, que brinquei na infância. E identificou todas as casas que aparecem na foto. Em outra imagem, uma seqüência do casario é totalmente identificada pelos visitantes. Memória e identidade: é preciso resgatar o que parece ser engolido pelo tempo. Não pela saudade, mas pela grandeza. Pelo que somos e ainda poderemos ser.


MONUMENTO - A praça principal é uma celebração da fronteira. Já foi batizada de Rendição, quando o general Bento Martins passou por ela num raid irresistível, retomando Uruguaiana para o lado brasileiro, em 1865. Hoje, um belo monumento de mármore coloca o Barão do Rio Branco em destaque sob o céu. Aos seus pés, a pedra lisa em diagonal serve de escorregador para inúmeras gerações. Ao redor da estátua, o miolo redondo e calçado com grandes bancos em curva. Desse centro, saem corredores largos, com farta sombra, avizinhados pelos canteiros. Em alguns pontos, as outras atrações: as duas pequenas pontes (ao passar por uma delas a primeira vez, senti vertigem) sobre um lago onde antigamente existiam os patos que vinham abocanhar as pipocas que lançávamos; a Branca de Neve e os sete anões, ao lado de uma pedra que vertia água; um chafariz que coloria os borrifos que despejavam sobre os passantes; uma gaiola de pássaros, hoje vazia.

BIBLIOTECA - No limite sul da praça, a imponente catedral que Fulvio Penachi tornou inesquecível com seus afrescos que misturam cenas da vida de Jesus com a paisagem da sua Itália natal (e que precisam de urgente reparos, apesar de ainda estarem intactos). No lado oposto, o Quiosque onde tomávamos, em turmas enormes, apenas um ou dois refrigerantes, pois o importante não era gastar (para desespero dos garçons) mas olhar as gurias que passavam em bandos. A oeste, o prédio que é agora da Prefeitura, mas que abrigava o Grupo Escolar Romaguera Correa, onde aprendi as primeiras (e únicas!) letras. Ao lado, o cine Pampa, antigo Cine Corbacho, onde vi John Ford e Orson Welles pela primeira vez, e o Clube Comercial, de inesquecíveis reveillons. A leste, comércio, destacando-se a antiqüíssima farmácia e uma grande loja com artigos de couro. Nas calçadas em frente à praça, há bancos, edifícios, hotel, o Centro Cultural (onde funcionava o Quartel General do Exército), e um velho casarão tombado (que precisa virar Biblioteca Pública agora!).

CAMINHADA - No clube Comercial acaba a quadra e de lá posso ver, em direção ao rio, a rua que um dia me desafiou. Olhei de novo: lá longe, o Colégio Santana. Em frente dele, o a esquina onde eu morava (numa casa que até hoje existe). Eu tinha quatro anos e fora esquecido. Era muita gente para ser apanhada na saída do colégio e eu ainda não atinava em ir sozinho. Quatro imensos quarteirões me separavam da acolhida materna. Mas já não havia mais ninguém e o sol estava a pino. Fui até aquela esquina e olhei pela Bento Martins, a rua inaugurada por uma investida de cavalaria. Decidi então ir até lá, pois se não sabia as artimanhas do quadrado, pelo menos a linha reta não me era totalmente estranha. Imaginei, baseado em experiências anteriores junto com os adultos, que se fosse sempre em frente, chegaria em casa, desde que tomasse cuidado em atravessar as ruas tranversais, também muito largas. Mas não existiam tantos carros e o perigo estava fora dos meus planos. Fui devagarinho, saboreando a caminhada e pensando no susto que iria dar quando chegasse. Ao chegar no portal, bati na porta. Abriu-se e lá estava minha irmã Védora, fazendo a maior festa:Ele veio sozinho!, gritou e foi nesse dia que eu comecei a ganhar asas, que mais tarde me levaram para longe desse lugar que reencontrei, cercado pela identificação e o reconhecimento, abraçado pelo que nos dá um nome de batismo. Somos uruguaianenses, cidadãos do Brasil soberano, que aqui resiste, como um soldado sitiado, garantindo a posição enquanto a libertação não chega. Sabemos que ela está a caminho. Podemos ouvir o barulho do vento atiçando a bandeira.

RETORNO - Sobre a inauguração da Feira do Livro, estão no Portal Uruguaiana as fotos de Anderson Petroceli (estás me devendo aquela costela prometida!) e o texto de Rubens Montardo Junior (que também tirou belas fotos do evento), poeta e assessor de imprensa da Prefeitura. Agradeço também o apoio logístico de Rosa Paes, da Secretaria de Cultura, que coordenou o evento, e a companhia gratificante de Ricardo Peró Job e Vera Ione Molina, que já têm engatilhada a nova edição da revista Fronteira Livre. Mas tem muito mais gente. Assunto para a próxima edição.

28 de novembro de 2005

DISCURSO NA PRAÇA

Pela primeira vez, discursei em praça pública. Foi na sexta-feira, na inaguração da Trigésima Primeira Feira do Livro de Uruguaiana, da qual sou patrono.As emoções, resgates e revelações desses três dias de ouro serão reportados aqui ao longo dos próximos dias. Por enquanto, vai o discurso.

Exmo. Sr. Prefeito Sanchotene Felice
Sr. secretário de cultura Miguel Ramos
Demais autoridades aqui presentes
Escritores e escritoras da minha terra
Queridos conterrâneos

É uma honra e uma alegria para mim ter sido convidado pelo sr. prefeito para ser o patrono da feira do livro de Uruguaiana, que inauguramos hoje.

Esta é a terceira feira consecutiva da qual participo e posso dizer que os livros me trouxeram de volta à minha terra.

Aqui nasci e me criei, nesta cidade que tem busto de poeta na praça, junto com pessoas que também abraçaram esta vocação, de expressar nos textos e nos poemas tudo aquilo que nos forma como cidadãos e habitantes deste tempo de mudanças.

o livro é memória e identidade, mas é também projeção para o futuro. o livro sobrevive a todas as ameaças e permanece firme no seu papel de difundir conhecimento, de seduzir, de encantar e de nos orientar.

Um livro faz a diferença numa formação e pode mudar o curso de uma vida. Ele nos acompanha em nossa trajetória com seu acervo de sonhos, informações, imagens e momentos baseados no que vivemos ou criamos.

A leitura é o que nos transcende, o que nos impulsiona, que nos dá referências,que nos abriga e nos estoca. por isso este ofício de escrever é muito mais do que uma profissão, embora exija a mesma concentração, estudo e esforço. É uma ponte com nossos semelhantes, são as águas infinitas de um rio que não morre, é alvorada e poente, é revelação e mistério.

Nada substitui o livro e seus conteúdos cevados no silêncio. O espírito precisa da leitura para não perder o fôlego, para desabrochar, para nos levar até onde devemos ir na missão a nós reservada.

Hoje a leitura está disseminada por fontes as mais variadas, graças à tecnologia que chega em todo lugar e leva a cultura universal para cada canto da terra. Com raras exceções, não podemos mais dizer: esse autor eu desconheço, ou deste livro não ouvi falar. Basta procurar na rede mundial de computadores que lá estará, disponível, acessível, algo sobre o que ouvimos de relance ou muito do que queremos aprender.

O livro é parte fundamental da história das nações. Serviu como insumo no desenvolvimento de um pequeno país como a Inglaterra, que difundiu o conhecimento técnico para todos os que trabalhavam na marinha mercante. Para cada tarefa existia um manual, para cada problema havia um livro à mão, como uma ferramenta indispensável, que levou os ingleses para todos os portos do mundo.

Assim foi com o Japão no radical movimento cultural e político do século 19, quando os livros disseminaram pela população os avanços do ocidente e foi assim que o Japão tornou-se uma potência.

Foi principalmente pelos livros que traziam as revelações do iluminismo, que os franceses aprenderam a romper barreiras e a mudar o curso da história da humanidade, com sua grande revolução.

No Brasil, ainda temos um longo caminho a percorrer. É duro reconhecer que temos ainda poucas livrarias, muita falta de leitura e escritores que lutam para publicar suas obras.

É por isso que uma feira como esta é fundamental para que haja esse encontro entre leitores, livreiros e autores, para que haja debate, identificação, para que possamos sonhar de olhos abertos e agir a partir dos planos que aqui surgirem.

Vejo em Uruguaiana o florescimento da prática do livro. Há movimento na cultura impressa, tanto na imprensa quanto nas livrarias e nas editoras. Precisamos de bibliotecas, públicas e privadas, pessoais ou coletivas e incentivo para que as novas gerações queimem etapas e possam emergir com toda a força graças à leitura que renova, o livro que transforma, o escritor que se manifesta e encontra acolhida no coração e no entendimento dos contemporâneos.

Esta feira, que existe há mais de 30 anos, é o símbolo desse renascer cultural. Baseado na história e na realidade atual desta cidade, desde a época em que poetas lutaram e morreram nas revoluções, até a presença hoje de tantos autores importantes, digo que Uruguaiana é uma terra de escritores e de leitores.

Pode não ter chegado ao patamar que idealizamos, mas é importante definir metas, acreditar no potencial que dispomos e desencadear as forças represadas.

Nada pode contra a força do conhecimento. o livro, como a alma, é eterno. Tudo o que foi produzido ao longo dos tempos está agora conosco, palpitando, como um pássaro de luz que nos convida para o amanhecer.

Vamos aceitar esse convite. Vamos nos orgulhar do que somos e temos. Vamos lutar para construir que há de melhor. O livro é a solução perfeita para acabar com o pessimismo, a desesperança ou o fatalismo.

Vamos aprender com os livros, aprender que vivemos num universo em movimento, e que devemos estar preparados para as transformações que estão em curso.

O que nos define não é raça, cor ou classe social. O que nos dá um rosto é a cultura que temos, o saber que compartilhamos, o sopro de vida que nos leva para frente.

Uruguaiana é, mais uma vez, a terra do livro, território da nossa cidadania, porta de entrada do Brasil soberano, esse país herdado, feito com o suor e o sangue dos nossos ancestrais, que aqui velam, de olho em nós, esperando de nós nada mais do que coragem para enfrentar as dificuldades e sair delas com a vitória nas mãos.

A vitória de um povo que vive, sofre e sonha. E que jamais foge à luta.

Está inaugurada a Trigésima Primeira Feira do Livro de Uruguaiana.

Muito obrigado

23 de novembro de 2005

NO MAR, VEREMOS


NO MAR, VEREMOS

Nei Duclós

Pescador de rio pequeno
coloca tudo nos eixos:
seu aço guardado em sótão
sua lança quebrada ao meio

Sabe o rumo da tormenta
o passo da palometa
o avesso de toda malha
o limo sob o sereno

Pescador de rio moreno
charrua de preta escama
seu barco já está a prumo
aguarda a voz do minuano

E se vier o mar
com séquito de sereias
a espuma em seu território
a carne suja de areia?

E se vier o mar
usando arpões de baleia
sargaços ardendo em febre
gáveas altas como estrelas?

Pescador tem a resposta
dobrada em lenço vermelho
que aviva os sonhos do sótão
de aço posto nos eixos

Pois o mar é uma lenda
cultivada pelo vento
a porta de um outro mundo
maré de água estrangeira

é uma espécie de terror
com batalhão de tridentes
generais do imperador
roubo de comerciantes

O mar, para um pescador
criado em água corrente
nos arames dos arroios
entre os moirões das fazendas

é uma dança pelo avesso
a trilha do formigueiro
metralha sob a vanguarda
canhão contra baioneta

Pois se vier o mar, veremos
o barco a remo do pampa
puxando um cordão guerreiro

para atiçar a batalha
para tingir os valentes
para costurar a mortalha
do sal que resseca a rede

que suga o sangue farrapo
com sua manha de peixe

Pescador vem do levante
e um milhão atrás dele

RETORNO - Este poema está publicado no livro do mesmo nome (Editora Globo, 2001) e é um dos poucos poemas meus que podem ser considerados "nativistas". Só que é focado nas águas e seus habitantes. Uma porção do Rio Grande que me banhou por muito tempo e é parte importante da minha literatura. No mar, veremos foi musicado e é interpretado pelo grande José Gomes, um dos maiores compositores e instrumentistas do Brasil, o que coloca este poema, que deu um trabalho danado para ser feito (durante longos meses no final dos anos 80) na antologia da música brasileira.

22 de novembro de 2005

UM EVENTO DA DITADURA

Lula escandiu ironicamente a palavra internet ao reclamar das denúncias de corrupção que circulam na rede. Já pensou se um investidor venezuelano ou argentino souber disso, como é que vai acreditar no Brasil como alvo dos seus investimentos? pergunta cândida e furiosamente o presidente, diante de uma grande platéia de empresários, todos sentadinhos e bem comportados, do mesmo jeito que acontecia quando os repórteres depositavam humildemente os microfones diante de Lula, quando era candidato, num sinal óbvio de que estavam abrindo mão da imprensa que representavam a favor de uma ilusão (nunca mais Lula precisou desses microfones, agora ele é o próprio auto-falante). O evento era para comemorar a tal MP do Bem. Lula aproveitou a migalha que acha ter jogado aos pombos para passar um pito na platéia, advertindo que vai continuar com sua desastrada política econômica de arrocho, a mesma que vem sendo seguida desde 1964, quando um golpe de estado interrompeu a construção do Brasil soberano (sintomaticamente, Delfim Netto diz que "reza" para Palocci continuar no Ministério da Fazenda). Fui procurar na in-ter-net (nunca vi Lula diante de um micro)e achei esse primor de artigo, publicado em julho deste ano, no site da revista Juristas. É tudo o que precisamos saber.

MP DO BEM E DO MAL

Kiyoshi Harada

A fúria tributária, alimentada por centenas de medidas provisórias, tende a crescer cada vez mais. O legislador palaciano vem utilizando desse peculiar instituto normativo, derrogador do universal princípio da legalidade tributária, com uma intensidade diretamente proporcional a velocidade com que os recursos financeiros arrecadados desaparecem, misteriosamente, nos escaninhos dos órgaos de administraçao direta e indireta. Aliás, muitos desses sumiços nao sao tao misteriosos assim; pelo contrário, sao notórios e ostensivos. Acontecem a luz do dia, em balcões de negócios. Só nao sao percebidos pelos que nao querem ve-los ou fingem não enxergá-los.
De há muito perdeu-se o senso ético na elaboraçao de instrumentos normativos. Normas traiçoeiras, opressoras e afrontosas aos direitos e garantias constitucionais dos contribuintes são elaboradas a toque de caixa como se fossem a coisa mais natural do mundo. A constataçao desse fato é assustadora e sumamente preocupante.
Não só confisco de riquezas dos particulares é perpetuada em caráter permanente, por meio de tributos espúrios, como também os mecanismos legais de defesa vem sendo manietados de n maneiras diferentes fazendo tabula rasa aos princípios do devido processo legal, do contraditório e ampla defesa.
Contra intimações computadorizadas da Receita Federal, por exemplo, não cabe impugnação ou recurso, mas apenas o tal de 'envelopamento', que consiste em envelopar e protocolar o documento comprobatório da quitação do tributo reclamado. Muitas vezes, o envelope só é aberto depois de ajuizada a execução fiscal, por conta do congestionamento burocrático. Outros institutos truculentos existem como o bloqueio on- line das contas bancárias de devedores, a indisponibilidade universal de bens por meios eletrônicos, o arrolamento de bens pelo fisco, a ação de depósito cominando pena de prisão do devedor, a inativação do CNPJ, a exigência de certidão negativa em situações cada vez mais numerosas, até para levantar o dinheiro do precatório judicial.
Ultimamente vem ganhando corpo a invasão armada de estabelecimentos para apreensão indiscriminada de documentos e bens da empresa, seguida de prisão dos administradores com vistas a futura e eventual constituição do crédito tributário pelo lançamento regular, em uma verdadeira inversão da ordem natural das coisas. Quando representantes do Poder, responsável pela correta aplicaçao das leis, tomam posição política a favor de invasões até de escritórios de advogados, que patrocinam os interesses das empresas visadas pelo fisco, tem-se a sensação de que o reinado do terror está próximo.
A teimosia do legislador palaciano, a deslealdade para com os cidadãos e a falta de ética no ato de legislar parece nao ter limite.
A tentativa de bloquear o acesso dos contribuintes lesados aos Conselhos de Contribuintes, feita pela MP 232, no apagar das luzes de 2004, nao deu resultado em virtude da violenta reaçao da sociedade civil, que provocou o enterro daquela medida provisória, conhecida como 'Tsunami Tributário' tamanho o seu efeito avassalador. De quebra, a cidadania conseguiu emplacar a Proposta de Emenda Constitucional no 371/05 , que proíbe o uso de medida provisória em matéria tributária.
Pois bem, aquela mesma idéia de torpedear o direito do contribuinte, abrigada no seio da sepultada MP no 232, de triste memória, vem embutida na MP no 252/05, denominada pelo próprio governo de 'MP do Bem' em tácito reconhecimento de que as demais representavam a 'MP do Mal'.
Refiro-me ao art. 68, onde consta delegação ilegal, inconstitucional, absurda e irracional ao Ministro da Fazenda, para criar 'Turmas Especiais' com a finalidade de julgar determinados casos que o Ministro houver por bem especificar, em funçao da matéria e do valor envolvidos. O Ministro ficou com a faculdade de criar essas 'Turmas Especiais' compostas de quatro membros 'pro tempore', designados entre conselheiros suplentes.
Ora, isso tem outro nome: chama-se Tribunal Administrativo de Exceção, para perseguir certos contribuintes, no interesse da rápida arrecadação, dentro do princípio amoral 'o fim justifica os meios'.
Esse renitente desvio ético é de uma gravidade ímpar, a medida em que revela uma arrogância e prepotencia inusitadas, em clara provocaçao aos sentimentos de justiça e de moralidade, externados pela sociedade, quando conseguiu banir a monstruosa MP 232, que continha o veneno traiçoeiro, ora transplantado para a 'MP do Bem'.
São medidas como a embutida na irônica "MP do Bem', que geram a falta de legitimidade do governo, raiz de toda a crise institucional em que se acha mergulhado o País.
É de se lembrar o que está prescrito logo no parágrafo único do 1o artigo da Constituiçao Federal: todo poder emana do povo. Significa que direitos e garantias fundamentais, consagrados pela Carta Política, porque resultantes da soberania popular, acham-se acima do poder político do Estado. Nenhum homem, governante ou nao, órgao ou Poder pode-se colocar-se acima deles.
É chegada a hora de a cidadania atuar para resgatar os valores informativos da sociedade e restabelecer a normalidade das instituições.

21 de novembro de 2005

TUNGA EM TINGA




Tinga, ex-gremista e agora no Internacional de Porto Alegre, entra na área perigosamente e é derrubado pelo goleiro corintiano. O arbitro Márcio Resende de Freitas não dá o pênalti, ainda expulsa Tinga e assim tira as chances de o Colorado ser campeão do Brasileirão, pois o desempate que viria do pênalti colocaria os dois times em igualdade de condições. É um escândalo com precedentes. Em 1995, o mesmo Marcio anulou um gol do Santos numa decisão contra o Botafogo, para desespero dos torcedores santistas, que enchem a internet de denúncias sobre esse jogo. Sem querer entrar em seara alheia, acredito que esse é um assunto para o "Ministério Público, que é a entidade responsável pela garantia da ordem jurídica, do regime democrático, da moralidade pública e dos direitos sociais e individuais. A instituição é independente, ou seja, tem autonomia com relação aos três poderes - Executivo, Legislativo e Judicial. A sua principal atribuição é a fiscalição da aplicação da lei e os seus membros - promotores e procuradores - atuam como defensores da sociedade perante os três poderes". O árbitro depois pediu desculpas. Tarde demais. Se foi crime, não adianta arrepender-se. Se não foi, é muita coincidência. Ou absurdo, como disseram os comentaristas esportivos. Absurdo não tem lógica. É preciso entender a lógica desse lance decisivo.

CRAQUES - Polícia Federal desbarata quadrilha da Receita Federal que tungava empresas, dava o serviço, a partir de notas fiscais, para os assaltantes de caminhões, eliminava a terceira via das notas para arrancar propina dos devedores. Se o empresário se recusasse a entrar no esquema, qualquer coisa era motivo para multa pesada. Ponta de um iceberg? O sistema tributário, burocratizado e draconiano, é um convite para a tunga, como berra a sociedade há décadas. Tudo fica como está. Sai e entra governo e o embrulho continua. Nas fuças de todo mundo, a corrupção avança. Quem nos defende? Kia, o irariano dono do Corinthians, surgiu do nada e convenceu os torcedores, que passam por cima das denúncias para comemorar o título que já está no papo. A paixão corintiana, legítima, nacional e popular, não merece ser envolvida nisso tudo. A paixão colorada, que forra o Rio Grande de bandeiras vermelhas, não merece ser erradicada de suas esperanças em apenas um lance. O time gaúcho vai lutar com todas as forças. Mas, para mim, já está decidido. Este é o pior campeonato brasileiro de todos os tempos. O que se destaca é Romário, que ontem fez mais dois gols. Tem jogo? Romário está lá. Tem área? Romário ocupa seu espaço. Tem chance? Romário aproveita. Nunca vai parar de jogar. Irá de time em time, de gramado em gramado, com a bola na mão, convidando: o dia está glorioso, vamos jogar futebol. Quando o futebol nos falta, há Romário, o craque do Brasil soberano. O cara que ficou, misteriosamente, de fora, na copa de 98, aquela que entregamos de bandeja para a França, quando não tocamos na bola depois de um episódio obscuro envolvendo Ronaldo Fenômeno. Ontem, Ronaldinho Gaúcho comeu com farinha todo o time de estrelas do Real Madrid. É por isso que ele foi embora. Estaria como Tinga, sendo tungado. Mas está lá, brilhando como nunca. Lá, onde os juizes corruptos pegam uma cana braba.

FUTURO - A manhã clara e sem vento nos inunda com brisa quase fria e a primavera enfim dá as caras. Talvez por um ou dois dias. Mas já vale a pena. O mar, calmo, convida à praia. A areia faz barulho sob pressão dos nossos passos. As gaivotas se enquadrilham em cima do poste de luz e caem como kamikases nas ondas promissoras. Velhos, crianças, mulheres, atletas, todos estão na beira da divindidade salgada. Os morros verdes ficam de sentinela. O sonho é possível, na paisagem cheia de promessas. As palavras nos chegam como presentes neste final de ano. Escrevo sem parar diante do país em sobressalto. Quando teremos paz na diferença, equilíbrio e distribuição de renda? Conseguiremos sim, num certo dia, aquele que conseguirmos criar sem violência, apenas com nossos braços, abraçados a um futuro enfim aninhado em nosso exausto coração. Será um dia glorioso.

20 de novembro de 2005

REINVENÇÃO PERVERSA DA CULTURA POPULAR




O alemão Herder, no século 19, inventou o folclore. A idéia era registrar as manifestações da cultura popular ameaçadas de extinção. Só que esse registro nunca foi isento. No momento em que pessoas letradas se debruçaram sobre o assunto, as canções, a arte, as danças, a dramaturgia geradas pela população anônima vieram à luz sob o filtro dos pesquisadores. Há, portanto, no berço do conceito de cultura popular, a mão dos seus descobridores. Quando essa intervenção é transparente, ou seja, quando um criador erudito dá crédito às suas fontes para trabalhar o que vê e ouve de forma livre, temos grandes momentos da criação, de Dvorjak a Villa-Lobos. Quando essa intervenção se confunde com a fonte em que bebe, todos juram que é uma autêntica manifestação do povo. Aconteceu com Martin Fierro, o grande poema épico do pampa, decifrado em curto e magistral ensaio de Jorge Luis Borges. Tudo conspira para que Martin Fierro tenha sido escrito por um gênio iletrado. Mas é apenas um personagem criado por um jornalista argentino, Jose Hernandez. O folhetim, concessão literária para o consumo fácil das narrativas, faz parte desse assunto. Foi inventado para atrair a massa de leitores de jornais. Hoje, com os dois pés nas novelas, é o instrumento chave para a audiência na televisão. Só que...

VISCONTI - No ensaio publicado neste sábado no caderno Cultura, do Diário Catarinense, Maria Cecília de Miranda N. Coelho, doutora em Letras Clássicas pela USP, pesquisa as fontes da inspiração da atual novela Belíssima, de Silvio Abreu. Ela coloca que esse é o título de um filme de Visconti, que vi uns anos atrás. O filme faz uma denúncia: o uso do talento infantil na indústria do show business. Mas, para mim, há uma diferença: Visconti denuncia, desconstrói o sistema opressor, revela a ética dos personagens por baixo da crosta de indiferença e interessses; já Silvio Abreu, na pretensão de denunciar, celebra a situação. No fundo, a novela apenas se alimenta das boas intenções (revelar a grande sacanagem do mundo das aparências), para no fim se entregar à perversidade. O drama é que os autores e atores que fazem parte da trama acham que estão fazendo o bem (será?), conscientizando a massa sobre os perigos das manipulações. Mas como fazer isso sem usar a desdramatização em cena? A justificativa é que não se pode contrariar o gosto popular, como se isso fosse algo sagrado e imutável. Não se arrisca nada, para que no fundo tudo continue como está. Há uma ilusão que as pessoas sairão mais lúcidas da novela. Mas acredito que isso seja um tremendo papo furado. O que há é apelação e cópia.

CORAGEM - A professora Maria Cecília, no seu brilhante artigo, faz uma comparação entre a mãe e a filha em Visconti com a avó e a neta em Abreu. Acredito que a inspiração de Abreu se revele na dupla Claudia Raia e a filha candidata a modelo. A veterana que se acha gostosa se projeta na possibilidade de carreira da filha adolescente e isso é puro Visconti (que tinha a Anna Magnani no papel da mãe). As citações da novela são para cinéfilos iniciantes. O solteirão que mora na casa rica, a troda hora cita algum clássico. É mais uma perversidade. Pois a TV aberta só programa porcaria, deixando os grandes filmes para a madrugada, e isso de vez em quando. Tira do povo a possibilidade de ver obras importantes em horário nobre e entope todo mundo de porcarias. Depois vende caro o charme da cultura, tanto na cortina musical (bossa nova, que nunca aparece no resto da programação) quanto na seleção de filmes (ontem foi citado Aventura na África, de John Huston). Trata-se de comércio puro e simples. Os grandes autores do cinema tinham não apenas liberdade (conquistada) para criar, tinham coragem. Fizeram suas carreiras tensionados pela indústria e a censura. Venceram, mas deixaram nessa luta a vida. Não é brincando de citar clássicos ou achando que se faz denúncia com dinheiro subsidiado que as novelas brasileiras vão fazer história. Ficarão como exemplos de extrema crueldade, pois seduzem pelo que dizem denunciar, reproduzem o parecem demolir, festejam o Mal que alimenta seus enredos e imagens, chupados de filmes que mudaram nossas vidas.

19 de novembro de 2005

DEBATE E BATE-BOCA




2005 poderá ser lembrado como o ano do Grande Bate-Boca. Os xingamentos mútuos, gerados pela crise política, que engolfou o plebiscito sobre o desarmamento, multiplicaram-se em rede. A presença dos leitores nos comentários, onde é possível esconder a identidade, pôs mais lenha na fogueira. Personalidades públicas perderam a compostura e sobrou para todo mundo. Desqualificar o intrerlocutor e acusá-lo de corrupto ou desonesto faz parte da guerra das palavras que convive hoje com a violência física. Em ambos os casos, o objetivo é eliminar o Outro. O rescaldo disso é que os ídolos caíram por terra. Todo mundo se igualou no amplo bate-boca nacional. Protagonistas culturais acima dos mortais tiveram que pegar a unha o touro da mutação permanente da realidade. Como a idolatria foi criada, ao longo do tempo, devido à exclusão da maioria das vozes, agora que essa discriminação praticamente acabou, graças à Internet, é possível ver como ficam igualados os espíritos, como os gênios pagam pau para a mediocridade, como os seres olímpicos engalfinham-se na lama, como nosso colunista preferido revela-se, enfim, um animal. É tempo de insights, de assumir publicamente o que se pensa e de contribuir com todas as forças para que o bate-boca chegue ao nível do debate democrático verdadeiro, aquele em que aprende a conviver com a diferença sem cair na tentação de chutar o traseiro alheio. Vamos a alguns exemplos.

RASCUNHO - Por inúmeras edições, Fabricio Carpinejar compareceu no jornal Rascunho, de Curitiba, o mais importante veículo brasileiro sobre livros e autores, tanto como ensaista quanto como poeta e cronista. Mas há algumas edições ele, que se retirou do jornal por motivos que desconheço, está sendo atacado pesadamente por textos anônimos. Na edição mais recente, numa série de saraivadas onde a expressão "bardo gaúcho" se destaca, Carpinejar é achincalhado por manter uma coluna de aconselhamento poético amoroso na Superinteressante. Esse é um exemplo torpe de bate-boca, confinado a esse espaço do jornal, que de resto presta grande contribuição ao debate cultural. O que invoca é que alguém que era considerado no veículo acaba sendo sua vítima. Fabrício é um poeta forte, importante, que abriu seu espaço com talento e persistência. É um dos agrandes agitadores culturais do país. Criou eventos polêmicos, no seu esforço de tirar a poesia dos redutos tradicionais e levá-la para a comunicação de massa. Estará um dia na televisão com programa próprio e isso só vai contribuir para o País. Assocá-la com violência verbal tentando desmoralizar sua pregação não é o melhor caminho. Pode-se contestá-lo, mas se for assim, por que não confrontá-lo, no lugar de usar a ironia pura e simples, o deboche, a paródia? Não acredito, pela força que tem, que Fabrício precise de alguém que o defenda, mas fica o registro. Na mesma edição, Domingos Pellegrini denuncia a Companhia das Letras, que colocou nas orelhas dos livros de Milton Hatoun que ele, Hatoun, teria vencido o Jabuti em 2001. Foi Pellegrini o vencedor e não Hatoum; este ficou em terceiro lugar. O que significa isso? Se não há um mínimo de lisura entre as pessoas que lidam com a cultura, o que resta para a política e os negócios? Ou tudo, como prova o marxismo, não passa da mesma coisa, ou melhor, de vasos comunicantes por onde trafegam merdas gêmeas?

SILÊNCIO - Num outro debate, que se transformou em bate-boca, no Comunique-se, J. Carlos de Assis faz primoroso texto sobre coluna de João Ubaldo, discordando do colunista do Estadão e seu pessimismo contra a nação brasileira. Nos comentários, houve defesas dos dois lados. Eu me coloquei a favor de Assis. Pois surgiu no debate a idéia de que discordar de João Ubaldo era sinal de desonestidade intelectual, coisa de intelectualóides metidos a politicamente corretos. Normal, dirão, isso faz parte do debate. Discordo. Isso é bate-boca, é xingamento. Há uma tentação para cair de garras afiadas nas costas alheias, como se fôssemos paradigmas da virtude, enquanto os outros são todos uns farinhas do mesmo saco. É importante que tenhamos em mente que a informação e a reflexão estão disseminadas, e que precisamos nos respeitar mutuamente, pois é possível que saibamos da missa apenas a metade. O que impressiona é que apenas essas duas opções são as que pegam. Fora disso é o silêncio, a moita. Escreva para seu editor, ele não responderá. Defenda um ponto de vista com alguém, ele ficará mudo. Tenta retomar aquela velha amizade, nem eco se ouvirá. Não podemos ficar confinados entre a balbúrdia onde todos se desclassificam e o silêncio mortal da indiferença.

DESTAQUES - O debate teve suas estrelas em 2005. Mino Carta é a estrela maior, com seu texto primoroso e sua insistência nos valores democráticos republicanos, na defesa de princípios jurídicos clássicos e na independência editorial diante da avalanche golpista que tomou parte de alguns grandes veículos. Mauro Santayana também é um destaque, especialmente pelo resgate de exemplos históricos para lançar luzes sobre a situação atual. Na política, temos as ruinas do discurso. Ou os politicos se reiventam profundamente, ou teremos golpe de estado. Na mídia, os grandes boquirrotos contundentes do ano foram Diogo Mainardi e Roberto Jefferson. Na ironia, Elio Gaspari brilha (seu texto sobre Lula, o urso que devora os donos, é um marco). Na Internet, Noblat é a estrela maior, com seu blog imprescindível, agora de armas e bagagens no Estadão. Noblat criou um espaço onde há muita informação, que gera mais informação, debate e bate boca, tudo convivendo democraticamente. Prefiro só informação e debate. Mas sei que é impossível. O certo é manter o bate-boca sob controle, para que não ajude a instaurar o que mais tememos, o fim da liberdade de expressão. Controle em termos, pois quando há liberdade, nada fica sob controle. Mas pelo menos, como diria Vicente Matheus, nos incluam fora disso.

18 de novembro de 2005

O MELHOR DA AMÉRICA




O que os Estados Unidos têm de melhor? Aqueles filmes clássicos, de John Ford a Nick Ray, e a gestão intenacional da Internet. Imaginem a rede de computadores cair na mão de um gestor Brasil, com plenos poderes. Haverá censura e aumento draconiano de preços. O melhor da América é também seu Judiciário, que não teme presidentes da República, e parte de seus jornalistas, que investigam mesmo e não fazem como aqui, em que dúzias de repórteres foram atrás do Eduardo Suplicy para reportar o óbvio: arranjar novas testemunhas para o caso Celso Daniel. É humilhante para a imprensa omissa e preguiçosa (que se limita a reproduzir dossiês) que alguém, a pé pela rua onde ocorreu o assassinato, tenha identificado gente que estava pronta para decifrar o crime. Dezenas de microfones iam para cima do senador. E depois chamam o Suplicy de songa monga, de paradão e pancada. É uma pessoa de coragem, apesar de adorar a mídia. Com a gestão isenta americana, é possível hoje fazer jornalismo na Internet, o que seria impossível se os espertalhões de sempre dominassem este espaço construído com diversidade e despreendimento, janela aberta para nosa livrar um pouco do sufoco.

TESOURO - Ontem, a novela Bang Bang tentou imitar outra coisa que os americanos tem de melhor: os grandes musicais. Dançar numa rua do faroeste apenas mostra a falta de soluções para esta novela, que seria uma boa idéia se houvesse alguma coisa nela, a não ser uma descostura permanente protagonizada por nomes como Yoko, Locomotive ou Ben. Nunca o faoroeste foi tanto desperdício. Já que chupam tanto, porque não copiam o magistral Sergio Leone que em o Feio, o Mau e o Bruto, com Clint Eastwood e Eli Wallach, tece a trama ao redor de um tesouro escondido num gigantesco cemitério, do qual um dos pistoleiros sabe onde fica, e o outro, o número da cova onde foi enterrado o dinheiro (o que cria um conflito permanente, de grande carga dramática, pois um não pode matar o outro, sob pena de perder a bufunfa)? Daria um pouco de sal à trama, fora daqueles picuinhas onde se sobressai o tesão da Marisa Orth, a viadagem de Sidney Magal e os dois travecos inverossímeis. Mauro Mendonça, mais um que se acha um grande ator, não passa de bochechas barbudas metido a valentão. A modelinho que faz a mocinha é de uma pobreza dramatúrgica de dar dó. No fundo, copiam o que há de pior na América, como se o Império só tivesse gerado porcarias. Os italianos, com seu faroeste macarrônico, fizeram uma versão barroca do faroeste, fundada no exagero, que extrapolou os limites do gênero e colocou-o nas águas da arte medieval popular, aquela que ia de cidade em cidade com seu aparato circense para divertir e denunciar a platéia. Clint se fez na Italia e voltou para criar, na sua América, filmes magníficos que o tornam um dos maiores cineastas vivos, apesar de bobagens e patriotadas como aquele faroeste do cosmos.

CABEÇA - Bill Clinton tem culpa de todas as suas ações imperais nos oito anos que esteve no governo, mas não há dúvida de que se trata de uma grande cabeça. Toda vez que o vejo e ouço numa entrevista, fico impressionado. Acho que ele, no poder, não optou pelo que tinha de melhor, essa lucidez up-to-date. Talvez estivesse de mãos amarradas ou é possível que esteja aprisionado pelo círculo de giz da América, aquele reduto poderoso do imaginário que não deixa ninguém escapar das garras imperiais. Mas, comparem com o Bush, esse tosco e falso estadista que pôs fogo no mundo. Bush é o pior da América e está pagando caro pelos seus erros. Torcemos pelo impeachment e a volta de pessoas esclarecidas na Casa Branca, como tivemos com Jimmy Carter, apesar dos pesares. Carter está em todas as boas causas e foi responsável, no Brasil, pelo fim da fase mais terrível da ditadura. O que não podemos ter é uma Condoleeza Rice, que agora está sendo elogiada como grande negociadora internacional. É conivente com o massacre do mundo, portanto deve ficar de fora. Precisamos do humanismo letrado, limitado pelo que resta de ética nas relações internacionais.

PAZ - Utopia? Depois de Bush, temos o direito de sonhar. Aumenta o risco de guerra na América Latina, com esse Chávez pontificando, essa Colômbia conflagrada, essa Amazônia invadida. Precisamos de paz no continente. Para isso, contamos com o que a América tem de melhor.

17 de novembro de 2005

O CAMPEONATO DO MENSALÃO




O campeonato brasileiro chega ao fim junto com a CPI do Mensalão. Foi o pior campeonato de todos os tempos. Onze jogos (ponta de um iceberg?) anulados por corrupção de um juiz, times tradicionais, como Atlético Mineiro e os times baianos, rolando escada abaixo, montes de pernas de pau sem proteína na primeira infância se esbagaçando em campo (enquanto o filé mignon é arrancado do país pela força da ditadura financeira internacional), o monopólio da televisão nos empurrando goela abaixo o caça níqueis da pay-per-view ou a porcaria de suas transmissões na TV aberta (com o auxílio de uma rede clone), com narradores anódinos e comentaristas corporativos (como se o jornalismo não fosse uma especialização de linguagens e sim uma propriedade das profissões reportadas, como jogar futebol ou apitar).

O time ainda líder é cacifado por um fundo que está sob suspeita, seu principal executivo não fala a língua do país, num ambiente onde brilham alguns jogadores estrangeiros, diante da pobreza dos quadros nacionais que restaram da expropriação. A seleção brasileira é o retrato da superconcentração de renda que há no país, a ascensão social lotérica (a velha escolha de Sofia, quando se decide quem vive e quem morre) e a entrega da soberania, já que pegamos o que de melhor produzimos aqui para entregar para os estrangeiros. Aqui, nos estiolamos em estádios caindo aos pedaços, torcidas repletas de meliantes e assassinos, falta total de segurança, bancarrota dos times. Na rodada de ontem, o Colorado de Porto Alegre conseguiu colocar o nariz na reta de chegada e merece ser o campeão, para evitar que a máfia eslava saia gargalhando desse evento sinistro que emporcalhou o futebol brasileiro.


RUÍNAS - O que mais me dói nos gramados brasileiros é ver craque rolando por times variados, longe da época em que tiveram glória suprema, como é o caso do Edilson e o Marcelinho. Também me incomoda quando vejo alguns jogadores se sobressaírem, como o Gustavo Nery, pois já antevejo a compra pelo Exterior. Vi num domingo desses o Silvinho no banco de um jogaço na Europa. Tinha esquecido do Silvinho. Se tivéssemos todos esses magníficos jogadores aqui no Brasil, com estádios novinhos e organizados, em campeonatos eficientes e honestos, venderíamos para todo o mundo a cobertura dos jogos, como fazem os europeus. Ganharíamos muito mais dinheiro. Mas escolhemos o normal: a expropriação de recursos pátrios a troco de banana (para a nação, não para os espertalhões). Formamos nossos grandes jogadores aqui e exportamos. Eles chegam lá com fama de favelados e acabam assumindo cidadania estrangeira. Envelhecem longe de nós e ficam para sempre no coração de torcidas distantes. Ficamos nós com esse monturo, as ruínas de campeonatos estaduais e nacionais, tendo que participar em coisas como a copa sul-americana, de onde fomos escorraçados por falta de competência. Essas ruínas são vendidas a peso de ouro, na publicidade, na televisão, na cartolagem. É um grande negócio, o de destruir a soberania nacional.

CRAQUES - Leio esse bom susto editorial que é Caros Amigos, que vale pela edição de Sergio de Souza, o jornalista top que a grande imprensa não conseguiu mais assimilar, pelos textos de Gilberto Felisberto Vasconcellos, sempre lúcido e contundente, pelas fotos do garoto viajante Gabriel Corrêa, maravilhosas, sobre suas viagens pelo Brasil, e por matérias como Virados para a lua, de João de Barros, sobre o esquema nas loterias da Caixa Federal. A capa é com Marilena Chauí, e sua longa entrevista sobre a crise política. Participa da edição o Emir Sader, que me abasteceu de resenhas durante anos na revista Senhor nos anos 80, quando tinha acabado de chegar do exterior, com seu corpo magro, sua bolsa a tiracolo e cabelo comprido. Sader tornou-se um case nacional com sua briga de cachorro grande contra a Veja e o senador Jorge Bornhausen. Lá estão também Leo Gilson Ribeiro (o jornalista craque na cobertura de livros, exemplo de como se deve fazer nesssa área), o Palmério Dória com uma coluna exclusiva, entre outras atrações. Acumulando vários prêmios, a revista existe desde 1997 e tem uma redação daquelas que deveriam continuar existindo por toda parte, composta dos melhores profissionais e com a coragem que falta a muitos veículos.

16 de novembro de 2005

OS TIPOS E AS PESSOAS




Num só dia tive a oportunidade de me defrontar com duas manifestações do escritor de sucesso Arnaldo Jabor. A primeira foi de manhã, no Estadão, onde ele compara o Brasil a Portugal do século 19, sem tirar nem pôr, via Eça de Queiroz, que teria decifrado todas as nossas mazelas ao achincalhar com os tipos que formam o imaginário ancestral, que estaria vigente até hoje no Brasil. O país da triste figura seria assim uma cópia do que Portugal tem de pior, velha tese dos que odeiam o chamado brasileiro (das qualidades portuguesas poucos falam, a não ser para destacar nosso papel subalterno diante da Metrópole). Nesse texto, liso com suas facilidades de um guru de auto-ajuda, o autor revela as convicções que orientaram mais tarde seu cinema, todo ele fundado no horror da vida nacional e na falta de caráter das pessoas que aqui habitam. À noite, no seu espaço cativo na TV Globo, a coisa mudou. De toda a canalhice nacional, se sobressai essa figura que é o ministro Palocci que, segundo Jabor, não pode ser vilipendiado por antigos assessores cheios de inveja, dos quais ninguém teria coragem de comprar um carro usado (imagem roubada da campanha contra Nixon). Palocci é um homem de bem, diz o animador cultural, e se cedeu à caixa 2 não fez mais do que todos os políticos fazem. O Brasil deveria agradecer a esse portento, que manteve o arrocho contra o povo, contrariando assim o dito bolchevismo de gente como José Dirceu e José Genoino, definidos por ele como malucos. Quer dizer que só temos tipos, nunca pessoas, somente caricaturas das mazelas brasileiras? Com exceção, claro, de Palocci, esse homem que arranca aplausos entusiasmados do privilegiado colunista global, que ao proferir suas gracinhas costuma cantar, imitar vozes, fazer gestos significativos com as mãos, tudo sob a capa protetora do penteado grotesco de um palhaço Bozo tratado em cabeleireiro de madame.

SACANAGEM - Jabor é o pensamento prêt-a-porter a serviço do poder (a ditadura financeira). Foi o arauto maior do neo-liberalismo da era FHC e hoje se locupleta com as denúncias contra o PT, tentando salvar a imagem de membros do governo que estejam de acordo com seu figurino imutável. Eça é um gênio da língua, mas entendia mesmo era de Portugal. Deu seus pitacos sobre a América Portuguesa, tendo inclusive deitado e rolado sobre nossa Proclamação da República. Não somos Portugal, apenas sua herança, transformada por uma vida complexa, que levou gerações definindo um outro país. A idéia da existência do brasileiro, essa criatura do mal que ousa atrair o conceito de Brasil soberano, costuma provocar arrepios na canalha entreguista, que adora a divisão do país em grotões federativos, muito mais fácil de manipular. Os guetos étnicos estão mais fortes do que nunca. Nunca fomos tão italianos (a festa da dupla cidadania), espanhóis (a começar pelo Ronaldo Fenômeno, que acaba de jurar a bandeira espanhola), alemães (meus Deus, como trabalham!), japoneses (que feras, como são eficientes), americanos (como é bom fazer parte do Império). Enquanto isso o brasileiro, e principalmente a brasileira, são seres prostituídos e preguiçosos, que não merecem o país onde vivem. Acho que é preciso acabar com essa sacanagem. O Brasil é uma obra magnífica de nacionalidade, síntese de muitos povos e nações, e que adquiriu identidade própria depois de séculos de guerra e suor. Seja nacionalista para você ver. Terás como companhia o ranger de dentes tanto da direita (que se apropriou da idéia de Nação) quanto da esquerda (que adora eliminar fronteiras).

CHUPA-CABRA - Silvio Abreu, o autor da novela Belíssima, cometeu mais uma. Ontem, o famigerado Tony Ramos fez uma longa preleção sobre iniciação sexual masculina para um pobre pivete, baseado integralmente em Fellini (Amarcord e Oito e Meio). Ele descreve a cena dos garotos que queriam comer a gigantesca mulher que se oferecia na cama. Abreu não cita, chupa. Parece que isso é normal em televisão. A Diarista de ontem, vi pelo trailer (não aturo mais aquela série), foi integralmente copiada do filme O Recruta Benjamin, com Goldie Hawn. O monopólio se circunscreve a poucos autores, que ganham milhões e não deixam ninguém entrar. O círculo de ferro exclui autores emergentes, que poderiam renovar a dramaturgia da telenovela. Como quem está na mamata é limitado, a saída é copiar quem quer que seja. Vimos recentemente como a série Carga Pesada se repetiu com a situação da mulher espetacular que quase consegue conquistar um dos dois caminhoneiros, mas sempre dança diante do casamento indissolúvel de Pedro e Bino. Eles são o verdadeiro casal e tocam-se por meio das mulheres que encontram na estrada. Fazem confidências conjugais. Agora é a vez de outra dupla, Acerola e Laranjinha, numa tal Cidade dos Homens. Na Globo, todo homem é um banana a serviço das neuras femininas e vice-versa. São só tipos, caricaturas. Não há gente de verdade. Eles não acreditam no brasileiro.

14 de novembro de 2005

A CONSOLIDAÇÃO DA REPÚBLICA




Tenho evitado falar na crise política. Prefiro aguardar o desfecho de alguns episódios, pois me custa seguir a procissão de más notícias. O que me assusta mesmo é o império da bandidagem, se espalhando pelas instituições e nas rotinas da população. Não consigo atinar com tanta incompetência e defaçatez. Querem implantar uma usina de álcool no Pantanal, desviar as águas do São Francisco, construir mais usinas nucleares. Soltam homicidas, que voltam a matar. Marmanjos bem fornidos pegam meninas pobres na saída da escola. Personagens das novelas pagam prostitutos e acham a maior graça. É preciso andar com cuidado em todo lugar, pois sempre tem alguém querendo te acusar de alguma coisa. Como não se respeitam as leis, tudo tem que ser negociado a cada minuto. Aprendi a ter paciência, a não me meter em encrencas. O verão está chegando e a infra-estrutura do litoral é o caos diante da avalanche de pessoas. O que vai dar tudo isso? Prefiro aproveitar o feriado do dia 15 de novembro e falar sobre o início da República, que foi consolidada depois de uma longa guerra. Dizem que o Brasil faz tudo na base do acerto, mas não é verdade. O pau sempre correu solto. Vamos ver do que se trata.

PARAGUAI - A República foi decretada em 1889 a partir de um desfile militar, assistida pelo povo bestializado, segundo um cronista da época. Essa é a imagem que ficou, graças à pobreza da nossa historiografia. O movimento foi deflagrado depois de décadas de militância republicana e veio à tona a partir de um erro grave do Império, o de não solucionar de maneira competente a Questão Militar. Quando Deodoro deu início à parada, fiel aos seus hábitos, dizem, gritou: Viva o Imperador! E derrubou-o. Para evitar que a gafe fosse ouvida, Quintino Bocaiúva teria mandado dar uma salva de tiros. Os militares não queriam que o Conde D'Eu tomasse o poder, via casamento com a princesa Isabel. Tinham provado do seu estilo quando, depois de vencida a Guerra do Paraguai pelo Duque de Caxias, o então príncipe D'Orleans e Bragança desencadeou o genocídio, acabando assim com a imagem da campanha militar, que custou sangue, vidas e dinheiro ao Brasil, que foi invadido primeiro (em Mato Grosso e em Uruguaiana). Gostam de dizer que guerra foi invenção da Inglaterra. Pode até ser. Mas quem lutou foram os brasileiros. Hoje, em plena época de desconstrução da soberania, sobram exclamações dos amadores que adoram vilipendiar a participação do Brasil no conflito. É preciso respeitar a experiência dos que nos precederam. Uma guerra não é feita apenas de sanguinolência e covardia. Há bravura. Longe de nós qualquer guerra, mas nosso pacifismo não deve servir de insumo para caluniar os guerreiros, que foram à luta pressionados pelas circunstâncias.

BRAVATAS - É preciso falar sobre essas coisas. Vemos Chávez com suas bravatas contra os Estados Unidos, armando-se até os dentes com a indústria militar eslava, dizendo que se for invadido sustentará uma guerra de cem anos. A Venezuela pode ser tomada pelo telefone, como gostava de dizer o Paulo Francis sobre arroubos semelhantes. Há uma ilusão de Nuestra America, com o Maradona, que despreza o Brasil, à frente, mas lutamos contra os hispânicos por 400 anos. Disputamos território palmo a palmo e hoje existe paz porque há fronteiras. Mas até quando? É bom lembrar o quanto nos custou ter uma República num país imenso como o nosso. Sua implantação custou uma guerra de quase dez anos. Foi assim: o Marechal Deodoro, eleito pela Assembléia Constituinte (que depois da posse virou o Parlamento regular) desentendeu-se com os políticos e deu um golpe de estado, dissolvendo o Senado e a Câmara. Esse ato foi saudado por todos os governadores das províncias, que enviaram telegramas apoiando o golpe. Mas o movimento fez água. O Almirante Custódio de Mello, que fazia parte do governo, apontou os vasos de guerra contra o Rio de Janeiro. Deodoro recuou e seu vice, o Marechal Floriano Peixoto, assumiu o poder. Quando isso aconteceu, as oposições dos governos provinciais invadiram os palácios e derrubaram os governadores que tinham apunhalado a República. O que fez Floriano, segundo Custódio? Deu força para quem tinha saudado Deodoro. Teria seus motivos, pois não poderia compactuar com a derrubada dos poderes provinciais. Isso conflagrou o país.

TIROTEIO - Houve luta de norte a sul e várias cidades foram bombardeadas. Julio de Castilhos, no Rio Grande do Sul, que tinha apoiado o golpe, foi derrubado. Sucedeu-se então uma procissão de governichos, até que Castilhos voltou ao poder. A guerra então instalou-se no Sul, com a participação inclusive de mercenários hispânicos. Só em 1895 houve paz novamente. Mas prefiro contar os anos de conflito até a revolta de Canudos, já bem no final do século, quando o Exército precisou deixar de lado o improviso e sustentar uma guerra gerenciada com competência para acabar com as insurreição. Foi um massacre, como nos conta Euclides da Cunha no capítulo de História Militar, A Luta, de Os Sertões. O resultado da longa guerra foi a instalação de uma ditadura civil, a chamada República Velha. Pontuada por instabilidades, especialmente na época do Salvacionismo Militar nos anos 10, acabou depois de outra longa guerra, de 1922 a 1930, quando então Getúlio Vargas assumiu o poder. A Revolução de 30 foi uma perfeita conspiração política aliada a uma bem sucedida estratégia militar, liderada pelo então-tenente coronel Gois Monteiro. Foi o início de novo período de revoltas, como a de 1932, a guerra paulsita, a de 1935, a tentativa de golpe de estado por parte dos comunistas e a de maio de 1938, o putsch integralista de Plinio Salgado, que cercou o Palácio do Catete a balaços. O problema é que todas essas guerras são encaradas de modo isolado, não fazem parte dos processos históricos, quando se presta atenção em outras coisas, igualmente importantes, mas não hegemônicos. Para mim, História é tiroteio. O resto é armazém de secos e molhados.

12 de novembro de 2005

LIVROS DE MEMÓRIAS




Tenho predileção pelos livros de memórias, sejam quais forem. Meu Érico Verissimo favorito é Solo de Clarineta, apesar de O Continente ocupar o pódio das minhas leituras mais importantes. Mas meu favoritismo se inclina menos para os grandes memorialistas. Gosto mesmo é de memórias de pessoas que sumiram do mapa da memória coletiva, principalmente os que enfrentaram alguma guerra (e como tem guerra na História do Brasil, é impressionante). Sinto grande sensação de vitória quando consigo um exemplar de um lutador muito oculto, tenha alcançado a fama um dia ou não. Gosto de lembrar o dia em que minha professora da USP (e mais tarde, minha orientadora do doutorado) lamentava que não existia mais em lugar nenhum as memórias de João Alberto, o militar revolucionário dos anos 20 e mais tarde interventor em São Paulo e ministro da Era Vargas. Como eu freqüentava os sebos que existem perto das Arcadas, no centro de São Paulo, garanti que eu possuía o tesouro. A professora Nanci é uma das mais brilhantes e contundentes historiadoras do Brasil (seu livro, jamais publicado devidamente, Forças Armadas no Brasil Colonial, é um clássico). Vi como, com sua figura pequena e aparentemente frágil, ela esmagou com argumentos os historiadores militares de um seminário, sem confrontá-los, apenas exibindo a força do seu conhecimento. Pois bem: ela fez pouco do que eu disse sobre João Alberto. Deves ter o livro do João Neves da Fontoura, falou, certa de si. Esse eu também tenho, repliquei. Então me mostre, disse, me desafiando.

SETEMBRINO - Na aula seguinte levei um xerox vistoso daquelas andanças de João Alberto, o cara que se despediu da esposa e do filho pequeno em Alegrete, onde estava servindo, no ano de 1924, e foi fazer a revolução fora da cidade. Era da Artilharia e apontou o canhão para a cidade, tendo o cuidado para que as balas chegassem bem longe da família. Guardei o xerox na pasta e mostrei o original para ela. Você tem mesmo o livro! exclamou a professora. Você me empreste que eu vou xerocar. Não precisa, já xeroquei, disse eu, enquanto pegava de volta o livro precioso. Quanto custou? perguntou, objetiva. Nada, respondi, fazendo pose de cdf. Esse é um presente para a senhora. É um dos meus orgulhos. Depois de anos procurando, li, a partir do xerox de um exemplar existente no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da USP (lá tem tudo!), Memórias: apontamentos para a história do Brasil, do uruguaianense Marechal Setembrino de Carvalho, o ministro da Guerra da República Velha. Sua descrição da estratégia que usou no Contestado é uma aula de História Militar. Gosto também de livros de viagem que são, praticamente, memórias, como Viagem ao Rio Grande do Sul, do Conde D'Eu, que fala detalhadamente sobre a paisagem uruguaianense antes da rendição da cidade, na guerra do Paraguai. A viagem de navio pela Lagoa dos Patos, depois a pé e a cavalo, os detalhes do percurso de Dom Pedro II (que depois usei num poema), tudo é extremamente saboroso, pois o município é visto ali de uma maneira única, e vale a pena ser lido hoje, especialmente pelos conterrâneos. Li um livro de viagens de um estrangeiro que visitou São Paulo, de onde tirei a informação que no Jaraguá, nos arredores da cidade, foi descoberto ouro no Brasil pela primeira vez. São informações que vemos ali, naquelas páginas antigas, pela primeira vez.

REVOLUÇÃO - As memórias de João Neves, que citei acima, é um esplendor: tudo sobre Porto Alegre no inicio do século vinte e final do 19, quando se formou portentosa geração de estadistas. As memórias do Almirante Custódio de Mello são exemplares na descrição de fatos que eu nunca tinha entendido antes direito. O que houve afinal na década de noventa do século 19, quando irrompeu a guerra da degola? Custódio decifra o engima. Um pequeno livro, que me custou uma nota, com fotos sobre a revolução de 1924, escrita por um padre, é uma das minhas raridades. Sob a metralha, narração tendenciosa sobre o mesmo evento, escrito por dois jornalistas, também com fotos incríveis, é outro destaque. Um dia ampliei essas fotos e fiz um seminário na Licenciatura da USP sobre essa guerra. Ninguém sabia de nada. Todo mundo acha que no Brasil nada acontece, é tudo arreglo. Houve guerra adoidado. E as memórias, tão esquecidas, daqueles guerreiros, ainda pulsam, como um sol obscuro irradiando um passado pouco compreendido.

LUSARDO - Faltou dizer o mais importante. Em 1980, quando li primeiro volume de Lusardo, o Último Caudilho, de Glauco Carneiro, é que comecei a ir atrás das memórias. Foi fácil: rastreei a bibliografia do livro de Glauco, a quem agradeci anos mais tarde pelas revelações contidas naquela obra. Para mim, Lusardo inaugura minhas leituras sobre fatos históricos. Descobri nesse livro o quanto eu nada sabia de Brasil. Glauco dá uma bela aula sobre o país na primeira metade do século 20. É claro que quando li Joseph Love em O Regionalismo Gaúcho, citado por Glauco, entre outros livros, entendi melhor o processo revolucionário que levou Vargas ao poder. Mas Lusardo é um livro fundamental, porque descreve com minúcias, num texto maravilhoso, aquele tiroteio todo. Foi muito criticado, claro. Bons escritores, que são grandes repórteres e que se debruçam sobre vidas valorosas, acabam batendo de frente na parede nua da indiferença e da idéia pronta. Mas existem nós, os leitores, gratificados por trabalhos como esse, e é isso o que conta.

RETORNO - Coincidindo com o assunto de hoje, recebo mensagem de Graça Lisboa Pereira da Silva anunciando lançamento na Feira do Livro de Uruguaiana: : "Vou lançar no dia 1º/12 às 20horas o meu livro Nos Caminhos do Mundo. Neste nº1(terei mais outro) será sobre alguns países que visitei e trabalhei com causos de viagens sobre pessoas interessantes que convivi e conheci". Graça é irmã de Fernando, que já nos deu livros saborosos de histórias e memórias da nossa cidade.

11 de novembro de 2005

AS CIDADES E OS LIVROS

Nei Duclós


Não precisamos incentivar o fetichismo dos livros, como se fossem algo sagrado, fora do alcance dos mortais e mereceredores de estantes de luxo, encadernações douradas ou, pior, demonstrações de erudição do proprietário ou do autor. O livro também não pode ser tratado pelo avesso dessa abordagem, como lixo, como se fosse um apêndice qualquer das nossas vidas de consumidores, facilidades de uma vida cheia de quinquilharias descartáveis. 

Livro é o que aprendi nas bibliotecas: a pequena coleção de alguns volumes da minha família; o bom acervo disponível no Colégio Santana, que fica em frente à casa onde me criei, em Uruguaiana; a reveladora e transformadora biblioteca da faculdade de Filosofia, Ciências Sociais, História e Jornalismo da Ufrgs, em Porto Alegre; a vasta rede de bibliotecas da USP; e a quantidade de livros que acumulei ao longo da vida. 

O livro faz parte de nós, seres culturais, como se fosse pele, coração e cabelo, como notou na Folha, numa crônica, o poeta Ferreira Gullar. Somos nossas leituras, e se não lemos pensamos pela cabeça dos outros, que escreveram e leram. Não tem escapatória: ou você interage com os livros ou os livros que você não lê vão dominar você, por meio dos outros.

MANUAIS - Livro não é só literatura. A Inglaterra deve sua vitória à popularização dos manuais técnicos da Marinha Mercante, que fizeram de um povo uma comunidade gigantesca de especialistas de todos os tipos. América é um nome que surgiu da leitura das aventuras de Américo Vespucio, que pelo livro sobre navegações conquistou o lugar que caberia a Colombo. Um livro didático pode salvar ou destruir uma geração. Lembro da cartilha onde aprendi a ler. Era o método que começava com as vogais, ia para as consotantes e as sílabas, diferente do que veio logo a seguir, quando colocavam na frente do pobre aluninho palavras completas para ele decifrar o sentido. O convívio com minha neta Maria Clara, de oito meses, prova que o processo silábico é natural. Ela começou com vogais e ditongos e já colocou na roda duas consoantes, o b e o m, véspera da linguagem que está por vir. Um bebê demora para treinar todos os hábitos que levam à primeira palavra. Observa, imita, cria, articula. Nada é automático ou mecânico. Leva tempo e dá trabalho. A luta pela linguagem, é , portanto, parte indissolúvel das criaturas humanas. Por isso somos seres culturais. A raça ou a origem não importa. O que vale é a estrutura mental voltada inteiramente para captar sons e dar-lhes sentido. Por isso o livro é um instrumento básico de sobrevivência. Não se trata de luxo ou penduricalho. É seu sangue que está ali.

DIVERSIDADE - Felizmente, tive acesso a todo tipo de autor. Mesmo estudando em colégio católico, que não recomendava a leitura do ateu Monteiro Lobato, me esbaldei no Sitio do Picapau Amarelo em toda a minha infância e adolescência. Comecei com Reinações de Narizinho, onde aprendi a viajar na imaginação para todo tipo de mundo. Depois foi a vez das aventuras, as Caçadas de Pedrinho ou as Histórias de Tia Nastácia. Aí pelos dez anos A Grécia entrou com tudo: os Doze trabalhos de Hércules. Mais tarde, o assustador A Chave do Tamanho (seu melhor livro, na minha opinião), e os mais intrincados e didáticos, Gramática da Emilia, Geografia de Dona Benta e o Poço do Visconde. Na biblioteca do Santana, li Emilio Salgari adoidado, viajei pelos sete mares em navios carregados de insurrectos (era essa a palavra usadas naquelas traduções, possivelmente portuguesas). Chegando em Porto Alegre, descobri Fernando Pessoa e Garcia Lorca, Mario e Oswald de Andrade, e isso foi a porta escancarada para a grande literatura universal. Entendi que os grandes autores são os mais acessíveis, os mais cristalinos, os mais saborosos. No fundo, não existe nada intrincado quando você tem vontade. Ler o que se gosta é fácil, o importante é também ler o que se acha que não se gosta. Quebrei a cuca para entender Ezra Pound, T.S. Elliot, os irmãos Campos. Mergulhei em autores complicados como alguns (poucos) filósofos, especialmente Michel Foucault, meu favorito. Mas saí de cada leitura melhor do que entrei. Isso acontece com todo mundo.

SUSSURRO - É bom ler. E não apenas livros. Lembro das magníficas edições da revista Cruzeiro, Manchete, Seleções, Revista do Globo, Alterosa, Billiken, Para Ti e tantas outras. Líamos de tudo, o tempo todo. E dê-lhe gibi: faroeste, Bolinha, Disney. Tínhamos longas sessões de leitura coletiva, ao lado de pilhas de revistinhas. Havia também coleções como O Mundo da Criança, de capa dura, sobre assuntos variados, que acho ter lido inteirinha. Ler é como respirar. Se falta o ar, podemos entrar em fase de catatonia ou desespero. Acredito que o vazio cultural, a falta de leitura, gera almas vazias e violentas. Um livro conforta e faz companhia. Quando tudo parece estar perdido, um autor chega para nós e nos sussura o segredo de estarmos vivos.

10 de novembro de 2005

ANTHONY QUINN, O BRUTO QUE AMA




Empurrado para papéis subalternos, devido à sua origem (mexicana com irlandês), Anthony Quinn confirma o que me disse Miguel Ramos: não existe papel coadjuvante. Basta vê-lo em Viva Zapata (papel que lhe valeu o primeiro de dois Oscar), onde convence que é irmão de Marlon Brando; ou em Lawerence da Arabia, quando dá aquele bocejo espreguiçado ao lado do reflexo da lua cheia, ou quando mantém uma negociação guerreira memorável com Peter O'Toole antes da invasão de Akaba. Quinn é o bruto que se arrepende de não ter demonstrado seu amor. Isto está explícito em La Strada, de Fellini, quando ele, Zampano, descobre que a maldade era apenas uma máscara e que no fundo jamais poderia viver sem ela, Giuleta Masina, que tinha se ido para sempre. Se existe solidão verdadeira no mundo, esta é a de Quinn na praia desolada, no final do filme, onde se comporta como o lobo que uiva para o caos. Em Duelo de Titãs, faroeste de John Sturges de 1959, ele é o malvado que se arrepende, na hora da morte, de não ter criado direito o filho assassino. O que significa essa queda, essa reversão da caratonha, essa lágrima que sai a muito custo, depois que tudo está perdido? O que é Anthony Quinn, o ator que nos asssustou com sua gargalhada vinda de uma gruta?

MESTIÇO - Quinn é o bruto que ama. Ele encarnou o papel que lhe impuseram, o do mestiço ameaçador num mundo de branquelos. Fez isso como ninguém, em inúmeras bobagens, especialmento no início de carreira. Acabou conquistando a filha de Cecil B. De Mille, Katherine, um dos seus três casamentos. O bruto tinha charme e, o que era mais importante e que poucos viam, inteligência que valorizava o talento. Tinha carisma, mas isso não lhe bastava. Ele precisava introjetar aquela persona maldita, dar-lhe vida verdadeira, dizer que era um ser injustiçado, capaz de uma reação violenta, de um gesto que mudasse o destino. Seu sobrolho era o sinal de que a rocha produzia pensamento. Mas isso também não era suficiente. Quinn também precisava mostrar que para ser humano não precisava posar de galã nem fingir que era uma criatura privilegiada pela riqueza ou a raça. Poderia ser alguém do povo, conformado e fatalista e que oferecia seus serviços a um inglês empolado. Visto assim, esse interpretação poderia ter tudo de caritcatura, mas ele nos deu Zorba, o Grego, sua melhor performance. Ele inventou aquela dança, que tornou-se marca registrada da nação que representou. Nunca se viu isso antes. Vimos ao vivo como se constrói o folclore, que sempre foi uma ciência de letrados que reinventam as manifestações populares. Quinn inventou a marca registrada de um povo. Quem não é do ramo, acha que aquilo é Grécia pura. É porque Quinn assim decidiu. Esse é o criador magistral que de 1915 a 2001 passou pela terra como uma tempestade no deserto.

VULCÃO - Hoje, quando vivemos a época da idiotia cultural, em que só há maldade pura e simples (porque os politicamente corretos querem ser verdadeiros), em que tudo é pão-pão-queijo-queijo, em que atores e atrizes são produzidos em massa pelo mercado da carne da moda e da televisão, tempo de metrossexuais e gângsters em todos os negócios, Anthony Quinn se sobressai como a imagem completa de uma arte que não sucumbiu às imposições do tempo, apesar de fazer parte dele (ninguém está na frente ou atrás da sua época). Sua sofisticação se agiganta diante dos maneirismos cool da atualidade, em que todos se parecem e nada tem mais do que um milimetro de profundidade. Quinn fechava uma geladeira com os pés, batia em todo mundo, rosnava, e foi assim que mostrou todas as nuances do humano, sem se render à pasteurização, à modorra. Ele era um lugar comum: um vulcão em cena. Contracenou com todos os grandes atores e tornou-se um deles. Duvido que seus parceiros de tela não tremessem diante da sua fúria. Foi assim que ele tornou-se inesquecível, com seu grande coração oculto sob uma avalanche de granito.

RETORNO - O Diário da Fonte ganha mais uma janela na mídia impressa. Everaldo Jacques, diretor de redação do jornal A Cidade, de Uruguaiana, vai começar a publicar alguns textos deste espaço numa coluna exclusiva. A acolhida dos conterrâneos é a melhor notícia que um escritor pode esperar.

9 de novembro de 2005

O BÔBO DA CORTE EM MATEUS E GOLIAS




Ainda sobre atores. Mateus Nachtergale compôs seu personagem Carreirinha, na novela América, com um pacote completo de exageros, que funcionou. É um paradoxo em relação ao que falei ontem, de atores que nem precisam se mexer para convencer. Mateus correria o risco da enquadrar-se na mania recorrente de extrapolar para gerar caricaturas não fosse um ator cerebral ao extremo. Sua performance tem o melhor do teatro moderno, pois a todo momento chama a atenção para a criatura inventada e inmverossímel, ao contrário do que acontece na vida real: os loucos das cidades são também personagens de pessoas desesperadas, que acreditam na própria persona, enquanto Mateus denuncia o que mostra. O peão analfabeto tratado como louco procura sair da casca do enquadramento social a que foi condenado, projetando o que falta aos outros perdsonagens da novela: sensibilidade e senso de justiça. Esse bôbo da corte que não tem trava na língua, que se vinga da maldade enquanto os outros sucumbem a ela, faz parte de uma linhagem teatral que, transposta para o cinema, já nos deu o outsider interpretado por John Mills em A Filha de Ryan, de David Lean. A cena em que Mills fica ao lado de uma Sara Miles (ambos ganharam o Oscar) que perde repentinamente o chapéu para o vento é tocante e patética e um dos momentos maiores do cinema. Mateus é o Quasímodo apaixonado por sua Conchita/Esmeralda e sua atuação brilha pela competência. É diferente do que fez Ronald Golias a vida toda. Mateus não tem a marca de berço do comediante, antes é um ator que atualiza a tradição circense, ao contrário de Golias, que é sua encarnação.

REGINALDO - Outro destaque de América foi esse monstro chamado Reginaldo Farias, capaz de nos proporcionar no cinema um Brás Cubas sinistro e apático e que em América fez o caipira fazendeiro arregalando os olhos, carregando num sotaque convincente e vestindo camisa com golas viradas para cima. Reginaldo é um dos grandes atores brasileiros. Conheci-o pessoalmente, de vista e de longe, numa sala de espera do aeroporto. Usava um boné e tinha aquela cara de sonso que Deus lhe deu. Posso compará-lo a um Marcelo Mastroianni, que desliza pelo cenário como se estivesse com preguiça, mas que acaba nos impondo interpretações memoráveis. Quando fez Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia, ele explodiu como o bandido de olhos claros, algoz e vítima, legando ao cinema um dos seus papéis mais contundentes. A cena em que paga propina ao policial corrupto interpretado por Paulo César Pereio (sempre ele!) e diz: é um bom dinheiro para uma tarde na piscina, é uma situação premonitória. Hector Babenco, esse cineasta que tem a visão crua do Brasil que adotou, nunca fez concessões para os bons sentimentos e por isso acertou sempre. Mesmo quando faz uma viagem íntima pela sua memória, no magnífico Coração Iluminado, Babenco nos arranca da cadeira com seu olhar que parece ser pura maldade, mas é apenas a ética de um criador atormentado. Babenco é também um magistral diretor de atores. Nas suas mãos, emerge o talento de Maria Luisa Mendonça, atriz da novela Renascer, da Globo, que em Coração Iluminado e Carandiru interpreta de maneira brutal mulheres inesquecíveis.

MENOS - Temos chance em Belíssima, que conta com Fernanda Montenegro, Claudia Abreu e Irene Ravache. Fernanda é o que se sabe, ou achamos que todos sabem: a marca da atriz perfeita, que agora encarna uma vilã desbocada e de rosto duro. Posso colocar as novelas da Globo num sistema fechado de opressão do imaginário, já que faz parte de uma imposição que toma conta do país há décadas. Mas não podemos é fechar os olhos para o que os artistas fazem dentro delas, ilhas de talento que acabam grudando nosso olhar à telinha. O trágico em Belíssima são mistificações como o Gianechini, desastrado no seu paulistano pobre, ou Claudia Arraia, sempre deslocada no seu esforço em marcar presença. Menos é mais, a não ser que você seja Mateus ou Golias.

RETORNO - Meu ensaio sobre o romance Quando Alegre Partiste, de Moacir Japiassu e a biografia de Tarso de Castro, de Tom Cardoso, está no Comunique-se desde ontem.

8 de novembro de 2005

A IMAGINAÇÃO APRISIONADA



O aprisionamento da imaginação é a tragédia maior do nosso tempo. Ela é fruto do engessamento da ascensão social (quando todos estão condenados) , que hoje só é possível, pelo menos em sua maior parte, por via lotérica (golpe ou sorte). O fogo que se alastra na França e já atinge a Alemanha é o sintoma desse círculo de ferro, que encarcera todo mundo e transforma a juventude em refém da violência e do terror. As drogas fazem parte do esquema: a grande demanda vem exatamente da falta de saídas oferecidas pela dita realidade. Drogar-se é a maneira de sair da prisão, mas isso significa exatamente o contrário, pois acaba consolidando a situação da pessoa que tentou escapar. Mas a droga maior é a mídia. Do colunista à primeira página, do noticiário à novela, do programa de auditório aos filmes escolhidos, tudo está voltado para o aprisionamento da imaginação, criado e mantido para subjugar a maioria em proveito de uma minoria que, esta sim, pode iludir-se de que pode sair do esquema e viver a grande vida prometida pela publicidade. Esta, avançou em direção ao conteúdo, erradicando os livros (suplementos culturais têm pouquíssimos anúncios e não existe, com raras exceções, progama culturais na TV). No lugar do livro, os comerciais os substituem inventando historinhas, com enredos e personagens-minuto, que tentam ocupar o grande vazio deixado pelo massacre da imaginação.

GLOBO - Se o aprisionamento da imaginação for encarado como um sistema, de camadas superpostas como uma cebola, ao tirarmos uma fatia teremos a Rede Globo. Vejam o noticiário: o apresentador pede a informação para o repórter que está no front. Este, fala para o apresentador, jamais para o telespectador. Eles conversam entre si, fechando o círculo. Quando um programa chama o outro, é o Galvão para o amigo Faustão e vice-versa. Somos, literalmente, espectadores. Os bastidores da nova novela obedecem a hierarquia: os atores menos votados vão para o programa da Angélica, os mais iimportantes para o Domingão. A novela das nove é o ápice do encarceramento. Trata-se de uma imposição, a convivência conflituosa de classes sociais, que nunca muda seu perfil. As defecções (a a ex-menina de rua que casa com o herdeiro) confirmam a imposição de uma sociedade dividida para sempre em classes sociais. O que é a cidadania na novela das nove? Empresários ou empresárias são vilãs, os homens são uns bananas na mãos das poderosas, as mulheres jovens são totalmente oferecidas (como o trio de bundudas em América e agora, no primeiro capítulo de Belíssima, a garota que se atira sobre o borracheiro). A fantasia sexual é a mais escrota possível: é baseada nas aparências, na brutalidade, nos interesses. Os milionários são apresentados como frios e calculistas e o povo como outra caricatura (para isso servem atores como Lima Duarte e Tony Ramos, horrendo na sua imitação de Anthony Quinn em Zorba, o Grego). O autor de Belíssima costuma chupar histórias, como fez com Matrimônio à italiana, de Vittorio de Sicca e neste primeiro capitulo, levado ao ar ontem, com Zorba. Tudo indica que o segundo está baseado no filme de sucesso, O Casamento Grego, recentemente apresentado pela Globo.

FINGIMENTO - Tony não é do ramo. Ele acha que atuar é fingir. Ele bate as mãos espalmadas, estende os braços e tenta ser grego e (cruzes!) dançar. Anthony Quinn não era dançarino, era ator. Se fosse preciso dançar, ele dançava como ninguém. Tony não sabe atuar, portanto imita de maneira tosca o que viu no cinema. Falaram horrores do Murilo Benício, mas eu discordo. Acho Murilo um ator de primeira. Ele sabe do que se trata. Sua extrema contenção como o cavaleiro trágico que enfrenta a morte (numa seqüência memorável, que salvou a novela da ruína) é um dos momentos maiores da televisão brasileira. Dizem que ele não movia uma linha do rosto. Não precisa! Foi o que disse Billy Wilder para Jack Lemmon, vindo do teatro e que estreava o primeiro papel no cinema: Você não quer que eu atue? gritou Lemmon. Exatamente, replicou Wilder, o gênio. Atuar não é fazer micagens nem gestos grandiosos. Charlton Heston é um exemplo. Sua gigantesca figuração de Moisés e Ben-Hur é pura implosão. Jamais esqueceremos sua grandeza em cena. Quando Marlon Brando abriu os braços em O Grande Motim era para tirar sarro dos canastrões. Marlon Brando tornou-se o maior ao não se mover, como comprova sua interpretação em Apocalipse Now. É um mistério. É a arte. É a imaginação solta de espíritos livres, coisa que não dispomos mais, com honrosas exceções. A invasão da Globo (atores, estética, dinheiro, tudo)no cinema é outro sintoma dessa tragédia. Tudo fica no Mesmo, quando deveríamos apostar no Outro, na Diferença.

RETORNO - Atenção Rosa Paes, da Secretaria de Cultura de Uruguaiana: enviei meu currículo, mas o e-mail volta. Publico então aqui:
Nei Duclós é autor de três livros de poesia:
-Outubro (1975), editado pelo Instituto Estadual do Livro do RS/ Editora A Nação, quando foi considerado por Mario Quintana um dos quatro melhores poetas do Rio Grande do Sul (ao lado de Armindo Trevisan, Carlos Nejar e Walmir Ayala). Outubro, obra considerada cult por Tabajara Ruas, traz alguns poemas que tinham sido expostos nas praças de Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro, quando fizeram parte de duas antologias pioneiras da poesia da minha geração: Tombam os primneiros homens nos trigais e Eu Digo (junto com outros escritores).
- No Meio da Rua (1979), editado pela L&PM, com prefácio de Mario Quintana
- No Mar, Veremos (2001), lançado pela Editora Globo, com prefácio de Mario Chamie, fundador da Poesia Praxis e um dos mais importantes poetas do Brasil.
É autor também de um romance:
- Universo baldio, editado pela Francis, de São Paulo, com apresentação do escritor paulista Raduan Nassar, considerado um dos maiores romancistas do país.
Tem quatro livros que serão publicados em 2006:
"Esperando John Wayne", romance, em co-autoria com Tabajara Ruas
"Diogo e Diana na Ilha das Bruxas", infanto-juvenil, em co-autoria com Tabajara Ruas
"Partimos de Manhã", poemas "As ruinas do discurso", ensaios literários, junto com "Todo filme é sobre cinema", ensaios sobre a Sétima Arte.
É formado em História pela USP (1998), tendo entrado para o doutorado (ainda incompleto), para defender a tese sobre o papel das Forças Armadas no período 1922-1935. Tem trabalhos publicados sobre o tema no site pessoal.
É jornalista profissional desde 1970. Foi repórter, redator, editor e resenhista
de inúmeros veículos de comunicação: Folha de S. Paulo (redator, cronista e crítico musical), IstoÉ (editor e resenhista), Veja (resenhista), Senhor (editor de Livros e Cultura), Bravo! (repórter cultural e ensaista), Estado de São Paulo (resenhista), Zero Hora (resenhista).
Atualmente é Editor Executivo de duas revistas: Empreendedor (mensal) e Empreendedor Rural; (semestral), de Florianópolis. É cronista e resenhista do Diário Catarinense.
Tem ensaios, poemas, crônicas e contos publicados em vários espaços virtuais importantes, como La Insignia, de Madrid, Cronopios, Bestiario e Maquina do Mundo.
Mantém um espaço diário na Internet, o Diário da Fonte(http://outubro.blogspot.com)
e o site http://www.consciencia.org/neiduclos
Sua obra foi resenhada por Fabricio Carpinejar, Luis Fischer, Sergio Caparelli e Tailor Diniz
Participou de várias antologias, como Há margem; Teia 2; a antologia organizada por Dilan Machado sobre poetas do Rio Grande do Sul; A Terra dos Longos Olhares, da editora Holoedro, organizada pela professora Lucia Silva e Silva.
Tem poemas musicados por Zé Gomes, Muts Weyrauch, Bebeto Alves e Raul Elwanger.

7 de novembro de 2005

CHEGA DE SAUDADE




Memória não é saudade, é resgate e parâmetro. Saudade é achar que o tempo antigo era melhor e por isso deve ser restaurado, o que é impossível e serve de porta de entrada para regressões perigosas. Memória é relexão e identidade, é dizer que muita coisa não deve ser esquecida, e precisa ser melhor entendida, pois serve de referência para os dias de hoje. Cada época dispõe de tudo, desde o horror à maravilha. Hoje enfim a mídia está tentando se guiar por exemplos históricos, enxergar melhor o que foi desconstruído por interesses vis (como é o caso da soberania; há um acordar tardio para o perigo, depois de décadas de deslumbramento diante da invasão). A crise é tão vasta e profunda, que todos se viram no mato sem cachorro. Longe das muletinhas que sustentaram muitos jornalistas por décadas, chegou a hora de abordar a realidade com mais preparo e estudo. A crise foi um golpe na arrogância principalmente dos colunistas, que sempre pontificaram, sem serem contestados, sobre política e economia, e viram agora seus barcos fazerem água. É hora de autocrítica sincera.

FUTEBOL - Errei algumas vezes aqui no Diário da Fonte neste ano. Primeiro, achei que Tevez era um jogador tosco. Antes de exoplodir como artilheiro, Virson Holderbaum já tinha me chamado a atenção para o jogador veloz e objetivo que o argentino é, o que agora está mais do que provado. Fica ainda o rescaldo do Kia, que manda no Corinthians a partir desse fundo MSI, sob investigação. A saída de Passarela me devolveu ao Corinthians, mas ainda estou desconfiando de tantas vitórias. Pelo menos uma, acho que contra o Paysandu, achei que tinha coisa no meio. Mas deixa para lá. Errei também ao me impacientar com o Roberto Carlos, que acabou acertando mais do que errando nos seus jogos daqui e d'além mar. Gim Tones também tinha me alertando que eu estava exagerando na crítica ao tremendo lateral (ou volante, ou não sei quê; nunca entendo nada dessas posições, depois que desmontaram o sistema fundador do futebol, o imortal WM, ou o 2-3-5, quando havia beque, ponta direita, meia esquerda, centro-avante e goleiro com joelheiras; até hoje não entendo o fim das joelheiras: como eles não se machucam?).

CHICO E VEJA - E, apesar de continuar achando que tenho razão, errei ao destacar o Chico Buarque, a quem admiro, como todo o resto do planeta, na campanha do sim e do não, que nos tomou tempo precioso este ano. Chico errou como todos os outros artistas que vieram nos admoestar sobre o sim, mas eu jamais poderia ter mandado Chico Buarque, gênio, plantar batatas. Como ele não lê isto aqui e não se importa, esta autocrítica fica para mim e os fiéis leitores. Em relação à revista Veja, que revidou esta semana contra a críticas que recebe da imprensa, acho que continua sendo um panfleto, pois mesmo que tenha base a denúncia sobre os dólares cubananos, não se faz uma capa daquele jeito com toda a pinta de golpe de estado. Veja finge inocência, diz que não julga e não pune, que isso é coisa das CPIs e Justiça, mas sabemos que é papo furado. Uma matéria de capa julga e pune. Por isso Carta Capital desta semana revida, colocando o PSDB na berlinada nessa história horrenda de corrupcão que assola o país.

FEIRA - Ainda sobre a Feira do Livro em Porto Alegre. Analisei a exclusão de autores e livros a partir de um triunvirato: mídia impressa, universidade e cargos públicos na área cultural. Há um círculo de ferro colocando no pódio algumas obras e escritores e no pó muita gente de valor. Isso tem se rtefletido nas grandes premiações. No fundo, revela a superconcentração de renda, problema endêmico do país que não avança. A mesa redonda serviu para expor a síntese das minhas reflexões aqui no Diário em 2005. Depois do evento, fomos assistir ensaio de espetáculo com poemas e debatemos com outros autores e os atores os rumos que ele deve tomar. Tanto o evento na Feira quanto o espetáculo são iniciativas do novo Instituto Machado de Assis, que Celso e outros agitadores culturais fundaram em Portinho. Celso tem feito palestras e seminários e colocou caixas de papelão nos shoppings pedindo doação de livros para serem distribuídos. Muita coisa vai rolar com a nova ong, inclusive edição de autores e obras hoje excluídos. No final do ensaio, um ciclone se abateu sobre os estandes da Feira. Junto com Tailor Diniz, Carlos Eduardo Caramez e Celso, me refugiei num restaurante e ali continuou valendo a pena essa curta mas proveitosa viagem à cidade da cultura.

LONGEVIDADE - Na conversa com a platéia, insisti que somos escritores contemporâneos e não somos peças saudosas do passado, como parte da crítica quer fazer valer. Tipo: veja, eles são dos anos 70. Somos muito mais do que isso. Num poema do livro No Meio da Rua, digo: "Para quem rir das minhas pretensões, adianto: no ano dez mil, ainda estarei cantando". Enterrar vivo escritores contemporâneos colocando-os numa gaveta esquecida é um crime, e faz parte do esquema de violência a que estamos submetidos.

6 de novembro de 2005

MISTÉRIO NA BEIRA DA ESTRADA




Voei para Porto Alegre, a cidade da cultura, onde participei de mais uma Feira do Livro, na mesa redonda com Marco Celso Viola, Claudio D' Almeida (que me presenteou com seus trê livros) e mais uma sala cheia de talentos, desde o poeta Mario Pirata, que eu não conhecia pessoalmente, passando pelo poeta Oliveira Silveira, sempre gentil, civilizado e afetivo, o grande jornalista cultural e amigo especial Juarez Fonseca, mais meu primo, escritor e compositor Victor Hugo Berenhauser de Aguiar, entre muitas outras pessoas, todas envolvidas num debate que foi filmado e gravado pelos alunos da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (Uergs), e que estará proximamente publicado na internet.

Voltei pela BR-101, onde em apenas 250 quilômetros vi as obras da duplicação em ritmo de tartaruga, enquanto milhares de veículos de carga se espremiam em poucos centímetros de asfalto. Há muitos Brasis, mas destaco dois: o que vivemos nas cidades e esse mistério que vejo ao longo da estrada, com paisagens sempre iguais, imutáveis desde que eu trafego por elas há décadas. Que terras e águas são estas, com seus bois e pastos? A única coisa esplendorosa no ambiente visual triste eram as placas coloridas de "Esta é uma obra do governo federal" colocadas às dúzias, para lembrar quem são os grandes empreendedores. Essa defasagem entre prática e discurso é o tema da minha crônica deste domingo no Diário Catarinense, como vemos a seguir. Resolvi levantar alguns lugares comuns da linguagem corporativa, que é assombrada pelo desemprego que rola nas ruas. A Feira do Livro é tema para mais um post, que será editado depois.


O VENDEDOR DE MORANGOS

O que não conseguimos dominar é esse craquejar incontornável do vendedor de morangos. Ele não parava um segundo (Crônica pubicada hoje, domingo, no caderno Donna, do Diário Catarinense)

Nei Duclós

- Vou matar o vendedor de morangos - disse ela, já pegando a bolsa e saindo em direção à esquina em frente ao prédio.

Tentei evitar aquele gesto, mas era tarde demais. Ela sumira escada abaixo. Tínhamos tentado conversar a tarde toda sobre um projeto, mas o cara lá embaixo não parava um segundo. Era pior do que o vendedor de mega-sena acumulada, que triplicava o preço e o tom de voz durante horas. É que o vendedor de morangos tinha um diferencial: ele estava há dias com sua arenga, ao contrário do seu colega de profissão, que nos atormentou só por algum tempo.

Na nossa conversa, eu procurava argumentos positivos para justificar o bordão repetido sem parar naquela melodia vocal criada para nos enlouquecer. Disse que deveríamos entender a falta de emprego, e que é um direito repassar papeizinhos nas ruas, abordar com alguma demanda. Falei do capitalismo de farol das grandes cidades, que existe há tanto tempo que muita gente está requerendo aposentadoria. Nesses casos, tudo volta ao normal quando chegamos em casa. Basta ligar a televisão para nos expor a duras noites de comerciais com alguns minutos de programa no meio. Mas mesmo a tevê dispõe de zap e podemos então relaxar.

O que não conseguimos dominar é esse craquejar incontornável do vendedor de morangos. Nossa colega estava surtada porque não conseguira explicar direito o objetivo do seu projeto. Sabíamos só que o troço agregava valor. Ou tinha algo a ver com qualidade de vida e meio ambiente. Parece que o importante era a transparência e não sei mais o quê. Concordávamos com ela, apesar de não entendermos patavina, só pelo alívio que poderia gerar nosso assentimento diante do seu nervosismo.

A assessora (este era seu cargo) começara a falar de maneira pausada, sacudindo a cabeça afirmativamente depois do fim de cada frase. Conheço o expediente: as pessoas fazem isso porque aguardam a velocidade do ouvinte chegar às alturas da autoria da locução. Mas o vendedor de morangos não dava trégua. Ela então começou a ficar fanha. A estridência alcançou decibéis insuportáveis e, de repente, quem estava em volta, decidiu atender o celular.

O celular trouxe o escritório e o lar para qualquer canto do miserável planeta. Todos resolvem seus pepinos por meio da conversa sem fio. Não conseguimos captar o fio da meada, mas sabemos sempre que se trata de algo intransponível, uma entrega que foi parar em Jacarta e não em São Francisco do Sul, que talvez a repetição de palavras como "tá, estou chegando" poderá resolver.

Mas nada resolve. Certamente os usuários de celular chegarão em casa e o cachorrinho Bob já deve ter mastigado mesmo o sofá, onde o marido tenta ver o jogo, mas parece que vai ser repetido, pois foi roubado. O problema é que temos todas as soluções à mão, mas tudo fica num impasse. Vemos pelo noticiário que basta você acoplar um chip amigável wireless na banda super larga da infonet viabilizada pela Nasa que poderá então trabalhar remotamente, vivendo numa ilha do Pacífico. Se não houver tsunami, nem furacão, você poderá desfrutar a vida colhendo lagostin com sua rede de nylon com qualidade ISO um milhão. Não há perigo de aparecer um vendedor de morangos.

Foi só falar nisso para lembrar da minha colega de trabalho, que voltou suada, toda vermelha, da cabeça aos pés.

- O que aconteceu? - perguntei, assombrado, já cavocando com o polegar o número da Emergência.

- Falei para ir vender em outro lugar - disse ela, decidida.

- E...? - perguntaram todos.

- O cara falou que já tinha vendido tudo. Só estava ali para segurar o ponto. Se um concorrente aparecesse, ele daria uma rasteira competitiva. Perguntei como funcionava. Ele fez uma demonstração prática. Fiquei vermelha, de raiva, e não pelo tombo em cima dos restos de morango que estragaram com o mormaço de hoje. Rasteira competitiva foi a mesma coisa que aprendi no curso da consultoria, especializada em informações privilegiadas para assessores da diretoria. Só não me disseram que a gente ia encontrar esse tipo de encrenca na rua.

RETORNO - 1. Ricardo Peró Job em fechamento de mais uma edição da revista Fronteira Livre me pede crônica aqui do Diário da Fonte, indicada por Vera Ione Molina Silva. 2. A revista virtual Cronopios, editada por Edson Cruz, publica meu ensaio sobre "A Viagem", livro de contos de Cicero Galeno Lopes. 3. Jesús Gómez capricha no La Insignia (link ao lado) e ainda publica dois textos meus: a resenha sobre Japiassu e Tarso e outro sobre Roman Polanski.4. O Segundo Caderno da Zero Hora de ontem, sábado, publica resenha ótima, assinada por Marcio Pinheiro, sobre a biografia de Tarso de Castro, de Tom Cardoso.

2 de novembro de 2005

VOAR É COM OS POETAS




Estarei na Feira do Livro de Porto Alegre nesta sexta-feira, dia quatro, às 16h30min, a convite do poeta Marco Celso Viola para debater o tema, na Sala O Retrato - CCCEV, "A Poesia Marginal e a Geração Mimeógrafo Numa Cidade Sem Memória, As Razões Do Esquecimento - em debate, as origens das primeiras publicações realizadas entre 1969/1972, em mimeógrafo no país, que posteriormente dariam origem a chamada geração mimeógrafo e poesia marginal". Na mesa estarão presentes também Cláudio D'almeida e artistas convidados que declamarão alguns poemas. É importante esse resgate e a projeção que faremos para o futuro do trabalho ainda erradicado das análises e antologias, quadro que já está tendo uma reviravolta, graças à militância reinauguranda por Celso em Portinho. Vou ao sabor do vento, não tenho nada preparado. O importante é trabalhar o assunto a partir do que será posto em pauta. É colocar o espírito de inclusão literária e a dialética recorrente que sempre desemboca em vanguarda e ruptura, volta ao ponto de partida, reinício e retomada. A viagem cíclica que as gerações assumem ao longo do tempo precisa da contrapartida da crítica e da análise, sob pena de selecionarmos apenas alguns itens dos movimentos literários, que assim ficam à mercê de idiossincrasias e interesses. Romper com esse vício é um trabalho para poetas longevos como nós, sempre atentos ao que está pegando no país da exclusão.

VANGUARDA - Por indicação do jornalista Marlon Assef visito o blog de terrorismo poético de Ari Almeida (pseudônimo), que participa de um grupo de Curtitiba que joga poemas de estilingue nas vidraças, reproduz sons de bois no matadouro em churrascarias e veste-se de travecos em dia de missa para peitar a tolerância católica. O blog traz links arrasadores no mesmo tom e merece ser visitado, não para sermos incluídos neles, mas para sabermos como está a disposição na meninada nesta época de trevas. As performances do grupo estão a anos luz do que fazíamos. Éramos até muito comportados, pois colocávamos poemas em cartolina na praça e fazíamos livros mimeografados. Hoje com a internet, em que teoricamente há muito mais espaço para a inclusão, a barra pesada sobre novos autores continua firme e ainda mais sofisticada. O tom dos blogs citados é radical e não espere nenhuma consideração. Não finja que você é do movimento, porque não é. Uma coisa que precisamos reiventar é o respeito ao espaço alheio, não querer regular tudo. Na intenção de agradar os que estão em crescimento ou, maduros na faixa dos vinte anos, estão loucos para romper com tudo, projetam-se ações que acabam intensificando a distância entre uma cultura assimilada e outra emergente. Ari Almeida escreve com absoluta liberdade. Seu texto sobre nanotecnologia, que está na primeira página, é manifestação de um espírito livre, sem nenhuma concessão de linguagens. Escreve sobre assunto sério sem abrir mão de palavras que lhe dão na telha. Seria bom que os jornalistas lessem o que ele escreve, e como escreve, para sacar o que é produzir uum texto com absoluta liberdade. Mais não digo porque não quero cair na boca do povo radical. Eles propõem colocar som alto para incomodar a vizinhança, por exemplo, coisa que me expulsa de qualquer simpatia pelas propostas. Mas há vida ali e literatura sem algemas ou falsas esperanças.

EXCLUSÃO - Acredito que o verbo convencer é um dos mais importantes hoje. Nos discursos, os estadistas costumam dizer que estão convencidos disso ou daquilo. Na crítica, há convencimento total, pois faça o que você fizer, se não estiver na área dessa certeza, jamais terá espaço. Foi isso que deixou Celso invocado e foi por isso que ele foi à luta e preparou-se para falar sobre poesia política, coisa que já está fazendo em conferências e num futuro livro, e sobre nosso pioneirismo na poesia marginal da época braba da ditadura civil-militar. Não me considero totalmente excluído, pois consegui publicar em editoras importantes (apesar de não merecer resenhas na grande imprensa) e sou cronista de um jornal importante, o Diário Catarinense, que estreou nesta terça-feira um novo visual. Além disso, fui convidado para ser patrono da Feira do Livro de Uruguaiana. Mas tudo é muito misturado, pois não consegui publicar os vários livros que preparei este ano, a começar pelo meu novo livro de poemas. Mas, como disse Moacyr Scliar, é preciso paciência, não só por parte das novas gerações, mas dos veteranos. Publicar em livro no Brasil é sempre uma complicação. Venceremos.