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30 de novembro de 2005

O TEMPO FAZ UMA VISITA



A visita se anunciou com seu nome velho de guerra. Gorrinha! gritei e vi o mesmo Erci de sempre, o cara que foi trabalhar com meu pai aos 15 anos de idade, primeiro para cuidar da lenheira, o primeiro negócio criado depois que seu Ortiz deixou o Centro de Saúde. Depois, em todos os trabalhos inventados, desde despachar no balcão do Armazém Oásis, que ficava no fundo de casa, passando por inúmeros encargos e mandados. Sempre com sua boina preta e seu eterno bigode. Gorrinha, aos 73 anos, afastou-se de mim por uns instantes, para fazer o que nunca eu nunca tinha visto nele: chorar. Chorou para valer, enquanto relembrava meus pais, dos quais não guarda nenhuma foto. Lamentou também que não pôde comparecer aos dois enterros, eventos à luz do dia, momento em que ele nada sabia, pois dormia por exercer por muitos anos a função de Guarda noturno. Ao lado de sua bicicleta, Erci me informou que mora ainda no mesmo lugar e aguarda correspondência, pois costuma responder.

COBRE - Gorrinha: sua cor de cobre, seu rosto vincado guardam, apesar do Tempo, o ar de eterno menino. O brilho nos olhos denuncia sua qualidade mais explícita: a vivacidade, a vontade de viver. Nunca fumei ou bebi, nunca tive vício, diz, enquanto enxuga as lágrimas. Mas ele não foi a única visita que o Tempo fez na minha viagem. Um senhor me olhava firme no estande da prefeitura, com meu livro na mão. Pediu um autógrafo. O rosto me era familiar, mas assim mesmo perguntei seu nome (sou péssimo para lembrar nomes, apesar de guardar fisionomias). Quando se identificou, caí sentado. Dr. Batista Luzardo!, o chefe do Departamento onde minha mãe trabalhou toda a vida até se aposentar. O Dr. Edson era a pessoa que me receitava o remédio providencial para o garoto problemático. Suas histórias cruzaram minha infância. Minha mãe falava tanto nele que um dia houve reclamações em casa: era Dr. Luzardo demais! Pois lá estava ele, sorrindo, aos 82 anos, vitorioso, me contaram depois, contra uma doença braba. Ereto, firme, mantendo seu aprumo e sua simpatia. Sua aparição foi rápida, foi-se logo depois de me fazer algumas perguntas e se interessar pela revista onde trabalho, a Empreendedor, aqui de Florianópolis. Mas o Tempo haveria de me reservar uma outra surpresa.

FOTAÇA - O irmão mais novo de Julio e Luis Lhamby, cracaços do colégio Santana, chegou para mim pelas mãos do Fernando Pereira da Silva para me dar um presente. Era uma foto ampliada do time da segunda série ginasial. Inacreditável. Eu estou acocado, com minha célebre camiseta de goleiro que trazia o nome São Luiz no peito. Por muito anos contei a história daquele campeonato para meus filhos. Nosso time era bom demais, mas costumávamos empatar quase todas as partidas daquele torneio. Acho que foi nos Jogos da Primavera. Havia tempo que eu não comparecia no gol, estava meio afastado do futebol, devido às minhas asmas, gripes, provocadas pelo longo inverno. Mas aquela era a chance de me recuperar, retomar minha posição. No primeiro jogo, tomei um gol. O chato que se postava atrás da rede comentou: eu sabia que estavas fora de forma. Serviu para me concentrar. No resto do torneio defendi tudo e todas. Ajudei a classificar o time para a final, defendendo pênaltys decisivos. Está no romance Universo Baldio o truque que descobri para fazer essa defesa: olhava para o pé do batedor, e dependendo do lado que virava eu sabia para onde ia a bola. Era só me atirar no exato momento do chute. Foi assim que defendi (ou ataquei, pois na minha terra goleiro ataca) aquelas bolas. Só que no último jogo, a bola veio centrada e eu me atirei em cima do centro-avante, que teve sorte: seu chute pegou na veia e perdemos por um a zero. Fomos vice-campeões. Mas éramos, obviamente, muito melhores do que os adversários.

PAI - O time está lá, estampado, intacto, glorioso: Laranjeira, Teixeira, Julio Lhamby, Rubens Lenar Güez (que reencontrei na Prefeitura, onde é funcionário), Ulisses, Cheira-cheira e seu irmão Cheira-cheirinha (perdão por lembrar apenas os apelidos), eu, Chitoca (o Vicente Orcy Torre), José Luis Pons e alguém que não lembro, mas vou lembrar. Na foto, ainda estão, de terno e gravato, nosso elegante técnico Barreneche (o colega uruguaio que chegou com os olhos esbugalhados no primeiro dia de aula, pois não sabia falar português) e vestindo grande batina, o irmão Gotardo, professor e responsável pelo time. Quem não me conheceu antes da atual fase, perguntava: mas é tu, mesmo? Sim, todos concordam. Estou igual ao seu Ortiz. Foi o que disse a filha do Gorrinha quando me viu na TV: olha, pai, o Nei, igualzinho ao seu Ortiz! E foi assim que fui incluído, com meu peso atual e tudo: represento aquela pessoa inesquecível que marcou minha cidade com sua presença, sua generosidade, suas tiradas, seus gestos, suas histórias. É o que me orgulha ser: uma lembrança do pai, que se foi, mas que me deu uma vida de presente, a vida que tenho e onde faço questão de manter acesa a chama da sua memória.

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