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29 de novembro de 2005

NO CORAÇÃO DA CIDADE

Ao reencontrar meus conterrâneos, fiz parte novamente da geografia urbana desse espaço majestoso que é a Praça Barão do Rio Branco, onde acontece até domingo a 31ª. Feira do Livro. Nele discursei e encontrei inúmeras pessoas, todas atraídas pela memória, que é o grande acontecimento desse evento. Nossos rostos de muito meninos estão estampados no livro de Moacir Bastiani (inspirado pela longa caminhada que fez, quase 700 quilômetros desde Porto Alegre, para comemorar os cem anos do nosso Colégio Santana). No stand da Prefeitura o que mais chama a atenção são as grandes fotos antigas, destacando-se uma que mostra a Praça Dom Pedro II. Houve polêmica sobre o lugar onde se situava. Até que um senhor, de cabelos brancos, disse: foi ali, descendo a Duque de Caxias, à direita, que brinquei na infância. E identificou todas as casas que aparecem na foto. Em outra imagem, uma seqüência do casario é totalmente identificada pelos visitantes. Memória e identidade: é preciso resgatar o que parece ser engolido pelo tempo. Não pela saudade, mas pela grandeza. Pelo que somos e ainda poderemos ser.


MONUMENTO - A praça principal é uma celebração da fronteira. Já foi batizada de Rendição, quando o general Bento Martins passou por ela num raid irresistível, retomando Uruguaiana para o lado brasileiro, em 1865. Hoje, um belo monumento de mármore coloca o Barão do Rio Branco em destaque sob o céu. Aos seus pés, a pedra lisa em diagonal serve de escorregador para inúmeras gerações. Ao redor da estátua, o miolo redondo e calçado com grandes bancos em curva. Desse centro, saem corredores largos, com farta sombra, avizinhados pelos canteiros. Em alguns pontos, as outras atrações: as duas pequenas pontes (ao passar por uma delas a primeira vez, senti vertigem) sobre um lago onde antigamente existiam os patos que vinham abocanhar as pipocas que lançávamos; a Branca de Neve e os sete anões, ao lado de uma pedra que vertia água; um chafariz que coloria os borrifos que despejavam sobre os passantes; uma gaiola de pássaros, hoje vazia.

BIBLIOTECA - No limite sul da praça, a imponente catedral que Fulvio Penachi tornou inesquecível com seus afrescos que misturam cenas da vida de Jesus com a paisagem da sua Itália natal (e que precisam de urgente reparos, apesar de ainda estarem intactos). No lado oposto, o Quiosque onde tomávamos, em turmas enormes, apenas um ou dois refrigerantes, pois o importante não era gastar (para desespero dos garçons) mas olhar as gurias que passavam em bandos. A oeste, o prédio que é agora da Prefeitura, mas que abrigava o Grupo Escolar Romaguera Correa, onde aprendi as primeiras (e únicas!) letras. Ao lado, o cine Pampa, antigo Cine Corbacho, onde vi John Ford e Orson Welles pela primeira vez, e o Clube Comercial, de inesquecíveis reveillons. A leste, comércio, destacando-se a antiqüíssima farmácia e uma grande loja com artigos de couro. Nas calçadas em frente à praça, há bancos, edifícios, hotel, o Centro Cultural (onde funcionava o Quartel General do Exército), e um velho casarão tombado (que precisa virar Biblioteca Pública agora!).

CAMINHADA - No clube Comercial acaba a quadra e de lá posso ver, em direção ao rio, a rua que um dia me desafiou. Olhei de novo: lá longe, o Colégio Santana. Em frente dele, o a esquina onde eu morava (numa casa que até hoje existe). Eu tinha quatro anos e fora esquecido. Era muita gente para ser apanhada na saída do colégio e eu ainda não atinava em ir sozinho. Quatro imensos quarteirões me separavam da acolhida materna. Mas já não havia mais ninguém e o sol estava a pino. Fui até aquela esquina e olhei pela Bento Martins, a rua inaugurada por uma investida de cavalaria. Decidi então ir até lá, pois se não sabia as artimanhas do quadrado, pelo menos a linha reta não me era totalmente estranha. Imaginei, baseado em experiências anteriores junto com os adultos, que se fosse sempre em frente, chegaria em casa, desde que tomasse cuidado em atravessar as ruas tranversais, também muito largas. Mas não existiam tantos carros e o perigo estava fora dos meus planos. Fui devagarinho, saboreando a caminhada e pensando no susto que iria dar quando chegasse. Ao chegar no portal, bati na porta. Abriu-se e lá estava minha irmã Védora, fazendo a maior festa:Ele veio sozinho!, gritou e foi nesse dia que eu comecei a ganhar asas, que mais tarde me levaram para longe desse lugar que reencontrei, cercado pela identificação e o reconhecimento, abraçado pelo que nos dá um nome de batismo. Somos uruguaianenses, cidadãos do Brasil soberano, que aqui resiste, como um soldado sitiado, garantindo a posição enquanto a libertação não chega. Sabemos que ela está a caminho. Podemos ouvir o barulho do vento atiçando a bandeira.

RETORNO - Sobre a inauguração da Feira do Livro, estão no Portal Uruguaiana as fotos de Anderson Petroceli (estás me devendo aquela costela prometida!) e o texto de Rubens Montardo Junior (que também tirou belas fotos do evento), poeta e assessor de imprensa da Prefeitura. Agradeço também o apoio logístico de Rosa Paes, da Secretaria de Cultura, que coordenou o evento, e a companhia gratificante de Ricardo Peró Job e Vera Ione Molina, que já têm engatilhada a nova edição da revista Fronteira Livre. Mas tem muito mais gente. Assunto para a próxima edição.

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