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9 de novembro de 2005
O BÔBO DA CORTE EM MATEUS E GOLIAS
Ainda sobre atores. Mateus Nachtergale compôs seu personagem Carreirinha, na novela América, com um pacote completo de exageros, que funcionou. É um paradoxo em relação ao que falei ontem, de atores que nem precisam se mexer para convencer. Mateus correria o risco da enquadrar-se na mania recorrente de extrapolar para gerar caricaturas não fosse um ator cerebral ao extremo. Sua performance tem o melhor do teatro moderno, pois a todo momento chama a atenção para a criatura inventada e inmverossímel, ao contrário do que acontece na vida real: os loucos das cidades são também personagens de pessoas desesperadas, que acreditam na própria persona, enquanto Mateus denuncia o que mostra. O peão analfabeto tratado como louco procura sair da casca do enquadramento social a que foi condenado, projetando o que falta aos outros perdsonagens da novela: sensibilidade e senso de justiça. Esse bôbo da corte que não tem trava na língua, que se vinga da maldade enquanto os outros sucumbem a ela, faz parte de uma linhagem teatral que, transposta para o cinema, já nos deu o outsider interpretado por John Mills em A Filha de Ryan, de David Lean. A cena em que Mills fica ao lado de uma Sara Miles (ambos ganharam o Oscar) que perde repentinamente o chapéu para o vento é tocante e patética e um dos momentos maiores do cinema. Mateus é o Quasímodo apaixonado por sua Conchita/Esmeralda e sua atuação brilha pela competência. É diferente do que fez Ronald Golias a vida toda. Mateus não tem a marca de berço do comediante, antes é um ator que atualiza a tradição circense, ao contrário de Golias, que é sua encarnação.
REGINALDO - Outro destaque de América foi esse monstro chamado Reginaldo Farias, capaz de nos proporcionar no cinema um Brás Cubas sinistro e apático e que em América fez o caipira fazendeiro arregalando os olhos, carregando num sotaque convincente e vestindo camisa com golas viradas para cima. Reginaldo é um dos grandes atores brasileiros. Conheci-o pessoalmente, de vista e de longe, numa sala de espera do aeroporto. Usava um boné e tinha aquela cara de sonso que Deus lhe deu. Posso compará-lo a um Marcelo Mastroianni, que desliza pelo cenário como se estivesse com preguiça, mas que acaba nos impondo interpretações memoráveis. Quando fez Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia, ele explodiu como o bandido de olhos claros, algoz e vítima, legando ao cinema um dos seus papéis mais contundentes. A cena em que paga propina ao policial corrupto interpretado por Paulo César Pereio (sempre ele!) e diz: é um bom dinheiro para uma tarde na piscina, é uma situação premonitória. Hector Babenco, esse cineasta que tem a visão crua do Brasil que adotou, nunca fez concessões para os bons sentimentos e por isso acertou sempre. Mesmo quando faz uma viagem íntima pela sua memória, no magnífico Coração Iluminado, Babenco nos arranca da cadeira com seu olhar que parece ser pura maldade, mas é apenas a ética de um criador atormentado. Babenco é também um magistral diretor de atores. Nas suas mãos, emerge o talento de Maria Luisa Mendonça, atriz da novela Renascer, da Globo, que em Coração Iluminado e Carandiru interpreta de maneira brutal mulheres inesquecíveis.
MENOS - Temos chance em Belíssima, que conta com Fernanda Montenegro, Claudia Abreu e Irene Ravache. Fernanda é o que se sabe, ou achamos que todos sabem: a marca da atriz perfeita, que agora encarna uma vilã desbocada e de rosto duro. Posso colocar as novelas da Globo num sistema fechado de opressão do imaginário, já que faz parte de uma imposição que toma conta do país há décadas. Mas não podemos é fechar os olhos para o que os artistas fazem dentro delas, ilhas de talento que acabam grudando nosso olhar à telinha. O trágico em Belíssima são mistificações como o Gianechini, desastrado no seu paulistano pobre, ou Claudia Arraia, sempre deslocada no seu esforço em marcar presença. Menos é mais, a não ser que você seja Mateus ou Golias.
RETORNO - Meu ensaio sobre o romance Quando Alegre Partiste, de Moacir Japiassu e a biografia de Tarso de Castro, de Tom Cardoso, está no Comunique-se desde ontem.
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