Blog de Nei Duclós. Jornalismo. Poesia. Literatura. Televisão. Cinema. Crítica. Livros. Cultura. Política. Esportes. História.
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30 de junho de 2005
OS OMBROS EM DENIS HOPPER
Denis Hopper é um transgressor que não mexe os ombros. Ele vive com os braços colados ao corpo, imobilizados por hábito, charme, mania, doença congênita ou simplesmente cordas. Com os ombros duros e braços caídos, Hopper assume a fala que brota de um rosto de pedra. O assustador Veludo Azul nos dá o modelo: aquela caratonha facinorosa do traficante torturador é mais do que uma interpretação, é uma vocação, que envolve Hopper mesmo à sua revelia.
DIÁLOGO - Sem movimento a não ser o das pernas que levam um tronco e um pescoço rígidos, Hopper adora fazer sua cena favorita, a da situação terminal, quando não há outra saída senão o desenlace. Diante de um algoz, seus personagens podem perder a vida mas não a piada. É célebre a cena em que o mafioso que precisa arrancar uma informação do policial Hopper tenta estabelecer um fingido diálogo amistoso, enquanto as armas dos capangas rondam por todos os lados. Nosso herói pergunta:
- Você é siciliano?
Diante do sim do bandido, ataca:
- Pois saiba que estudei história e os sicilianos são todos descendentes de negros. Isso quer dizer que sua recontra-tataravó fodeu com um negão.
A resposta do assassino é óbvia:
- Eu adoro esse cara.
E descarrega nele o revólver. É a única reação possível quando se enfrenta alguém que não tem nada a perder.
PASSOS - Enquanto os outros atores desenvolveram um ou vários andares em cena, todos voltados para a conquista amorosa ou a imposição da vontade, Hopper optou pelo não-andar. Quem pode apostar alguma coisa no sujeito que nem sabe caminhar em cena? Pois basta ele dar alguns passos curtos como se estivesse sentindo a câmara, carregando penosamente aqueles ombros um pouco levantados, como se sofresse pelo encargo de sustentar o pescoço e a cabeça, para o espectador saber de quem se trata. É o design de um gesto reconhecível em qualquer fotograma. Pacificada pelo registro, toda a atenção volta-se então para sua voz e sua expressão. A fala é rouca, sussurrada, o olhar é pura impiedade, as linhas da face, quando se contorcem, avisam que ele vai matar.
BRANDO - Quando tomou todos os ácidos em Apocalipse Now, seu histrionismo de início de carreira (quando ainda não tinha definido seu estilo da idade madura) irritou profundamente Marlon Brando, que estava fazendo exatamente o contrário. Talvez a performance magistral de Brando, que mostrou apenas a cara (e precisava mais?) enquanto arrastava algumas palavras roucas, tenha sido a inspiração de Hopper para compor personagens inesquecíveis, de extrema vilania e crueldade. Talvez seus ombros fixos sonhem em não ser filmados. Talvez seja ilusão do ator de que ninguém vai ou deve reparar nos ombros. Ele simplesmente anula essa porção do corpo e concentra tudo no rosto, como Brando com Coppola. O resultado é completamente diferente. Hopper não nos convence que está fazendo algo inesquecível. Parece que quer apenas exercer seu ofício, levantar uma grana e cair fora.
SINAL - Mas talvez seja esse seu principal disfarce. Quando dirigiu Easy Rider ou fez o tímido filho de Rock Hudson em Giant, Hopper talhou-se para ser um criador que deixa sua marca. Poderia ter feito apenas mais alguns filmes, mas trabalhou sem parar. Por isso é sempre um acontecimento quando o vemos em cena. Quando faz o gigolô que tem uma boneca inflável no porta-malas do carro, ou o xerife que enfrenta o matador em fuga pelo trem de carga, ou participa de alguma outra cena, saberemos que estamos diante de uma arte pouco identificada, que o cinema nos revela por meio de alguns protagonistas especiais. Eles são o sal da indústria que perdeu seu rumo e que com eles faz um colar de contas. Em espiral, esse objeto estranho e irresistível nos atinge como um raio. Trata-se de um risco de luz na tarde pacificada pelo sol, que parece o reflexo de algum espelho perdido. Mas é outra coisa e precisamos ter cuidado. É o sinal de que precisamos levantar imediatamente da cadeira para ver melhor o que está acontecendo.
RETORNO - O Livro de Visitas voltou ao site. Os autores do programa que gerencia esse espaço, pressionados por Miguel Duclós, resolveram o problema do ataque de mensagens com link para os vírus.
28 de junho de 2005
A COMPAIXÃO EM ANSELMO DUARTE
Nei Duclós
A cena que vai levar Anselmo Duarte para o céu do cinema é a da procissão, em que há identificação entre os rostos da imagem de Santa Bárbara/Iansã e do Zé do Burro/Leonardo Villar. O movimento nos degraus é a cidadania desamparada que ascende pela espiritualidade, única porta de acesso à justiça. Essa subida, feita ao sabor das ondas do andar, e que ajusta a sintonia entre as duas expressões, é o momento supremo deste filme maior que é O Pagador de Promessas (pai de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber, que em início de carreira foi assistir as filmagens feitas por Anselmo da única obra brasileira que arrebatou a Palma de Ouro de Cannes). O rosto do personagem transcende o pedido, já é uma confirmação da bondade que lhe assiste e que só existe fora da vida social, totalmente contaminada pela exclusão e a violência. Os dois rostos se encontram na inocência que gera a compaixão.
VELUDO - O pedido de Zé, a cura do animal que o serve e faz parte da família, é o sintoma de uma vida terminal. O que Zé quer (a salvação) precisa ser atendido, pela contingência da miséria. Uma santa, sem poder temporal, vai em socorro da vítima e a salva. O homem agradecido é impedido de entrar na Igreja porque cometeu um pecado: invocou a santidade intensificada por duas culturas diferentes, pois uma cultura isolada não forma uma nação, que é feita de somas e inclusões. Não haveria necessidade da santa se houvesse país, ou seja, se o Brasil realmente cuidasse dos seus filhos. Mas não há país e a porta do templo está fechada para a compaixão. A solução é a ruptura, o resgate da crucificação. A expressão usada pelo diretor quando viu a cópia do filme em Cannes, logo antes de entrar na disputa, serve para definir o filme: um veludo. É desse veludo que se alimenta Anselmo Duarte, o diretor que veio do Brasil profundo.
ATITUDE - O rosto de Anselmo Duarte personifica a inocência do cinema brasileiro quando ele era apenas um ator (foi quando aprendeu a filmar). Sua estréia como diretor, o perfeito Absolutamente Certo, mostra como outro cidadão desamparado, deste vez no universo urbano, tenta a ascensão social pela via lotérica, um concurso de rádio que testa a memorização. Ele se insurge contra a manipulação do concurso, pois não quer explorar a boa fé do povo, pois é nisso que reside sua principal abordagem cinematográfica. Anselmo vê o país como um fígado à mercê dos abutres num rochedo, e procura fazer a representação da revolta por meio da tomada de decisão, ou de uma palavra que virou moda, atitude. Zé do Burro, assim como os personagens de Vereda da salvação e o Crime do Zé Bigorna, são vítimas da própria determinação. São manipulados pela esperteza nacional, massacrados pelo sistema de opressão, assassinados por gosto ou opção. É um Brasil que veio do sonho feliz da urbanidade de cara limpa (as comédias da Atlântida), que tentou ser sério como o cinema da Europa (os filmes da Vera Cruz) e que deságua na obra de Anselmo Duarte como denúncia e como afirmação da nacionalidade. Ele mostra a compaixão necessária para que ainda exista país, e ao mesmo tempo abre as vísceras desse sentimento perdedor, que sucumbe diante da crueldade e da indiferença bem nutrida.
BALANÇO - O ressentimento de Anselmo Duarte tem razões de sobra para existir. Ele realizou um sonho: venceu todos os grandes diretores no festival de Cannes, levantou a Palma de Ouro como os capitães Bellini e Mauro ergueram acima das cabeças (sinal de auto-superação do país) a taça Jules Rimet nas copas do mundo de 58 e 62 (gesto midiático que ele fez de propósito, como referência) e foi alvo da mais pura inveja. Mas, por ser exatamente esse grande cineasta reconhecido internacionalmente, deveria enfim perdoar. Se a inveja não dá trégua, o problema é da inveja. Dói vê-lo ranzinza nos seus depoimentos. Mas sempre nos deslumbra com sua estampa impecável, sua cara de Brasil bem resolvido, e ouvir suas histórias maravilhosas. Sorte que terei acesso ao trabalho que o jornalista Wendel Martins fez para a UFSC sobre Anselmo. É sempre gratificante entrar em contato com tamanha personalidade, que nos deu pelo menos uma obra-prima e que merece o respeito da nação que ele tanto honra em sua longa e proveitosa vida.
27 de junho de 2005
ISSO É VERDADE
A verdade é o que as pessoas querem ouvir. A literatura de auto-ajuda, o marketing, as religiões emergentes, as consultorias, todos esses nichos vivem da verdade sob encomenda. Não se meta a contrariar verdade tão cristalina. Tente para ver: terás pela frente a falta de atenção, diálogos internos que jamais te incluem, dedinhos levantados, indiferença. Ficarás então com o que aprendeste na marra do que se trata a verdade: um processo pantanoso, que migra de cabeças e posições, que se transmuta a cada época, que faz justiça à complexidade do humano, que te lava a alma quando te abraça. Estarás só como um túnel, na imagem imortal de Pablo Neruda. Cansado, jogarás essa evidência no lixo para pegar carona no que não se pode contrariar. Dirás, como todos, a expressão com certeza, que é o carimbo da verdade empacotada.
TORCIDAS - O silêncio divino diante da pergunta de Pôncio Pilatos significa que nele (no silêncio) habita algo que nos escapa numa só frase, num enunciado geral, numa síntese suprema. Você cala quando te colocam contra a parede, pois no fundo a pergunta é uma pegadinha. Ninguém quer saber o que é verdade, apenas provar que você está errado. Você cala não porque precisa escapar da armadilha, mas porque a ética, essa deusa de braços frios, te impede de seguir em frente. Uma resposta dessas precisa ser compartilhada com o interlocutor, jamais confrontada. É como jogo para arquibancadas vazias, a nova invenção da CBF. Não faz sentido um jogo sem a torcida. Fica uma pelada, uma briga de arestas, um mecanismo encarquilhado. A torcida é o combustível de um embate. As jogadas, acompanhadas pela multidão, se realizam plenamente e o que conta é a confluência de percepções, as verdades coletivas sendo puxadas de um lado para outro, as probabilidades se amontoando na cabeça do juiz, que decide o que é a verdade do jogo a cada apito. Cada torcedor quer o óbvio: a vitória, prova de sua hegemonia sobre os outros. Quando é contrariado, ele vira as costas (não aceita a evidência) e ainda quebra os bancos do estádio, como fizeram os argentino do Boca Juniors no Morumbi.
SELEÇÃO - A seleção brasileira é um time provisório, com atletas em rodízio, que nos prega um susto por partida. Dependemos de Adriano, que tem se atrapalhado com a bola, mas no último jogo deslanchou; de Ronaldinho Gaúcho, para não errar pênalty, já que não consegue nem dez por cento do que costuma fazer no Barcelona; de Cicinho, que agora parece estar à vontade; e de Robinho, que custa a engrenar fora do seu Santos. Faz falta, no miolo, Ricardinho ou Alex, eternos ausentes nas preferências de Parreira, que prefere o tosco Emerson. Na zaga, não temos nada. Roque Junior é uma ameaça constante e Lucio é totalmente irregular. Quando Kaká enfim consegue se sobressair, é substituído. Tostão explica a lógica dessa decisão, mas como vejo o jogo de outra forma (aos pedaços), fico apenas contrariado. Temos pela frente nosso único adversário, a Argentina, que não nos deixa jogar (não combina antes que somos os melhores). Ou seja, temos a nossa sombra, o nosso vizinho, aquele que sempre está de olho em nós e nos conhece como ninguém. Nosso futebol jogado ao pé da letra vai dançar se não soubermos consolidar selecionados competentes, que expressem o futebol que jogamos no Brasil, e não apenas uma costura episódica de craques que não se entendem em campo.
VISITA - Como não entendo de futebol, arte de probabilidades que jamais se entrega às artimanhas do texto, prefiro falar do inverno tépido que forra de areia de veludo algumas partes da praia, onde passeamos crianças que dormem ao som das ondas. Ou da visita surpresa que o Conde Herr Holderbaum nos brindou no domingo, quando caminhamos pelo Capivari como se o tempo não existisse, escoltados por montanhas verdes e falando sobre o assunto mais empolgante de hoje, o da proletarização em massa da população, na qual nos incluímos.
RETORNO - 1. Quem matou as duas adolescentes do Recife? Os suspeitos de sempre, claro, como sugere uma fala famosa de Casablanca e como reza a cartilha dos criminosos. Urariano Mota tem dúvidas. Nas várias versões de um crime, ele aborda esse tema escorregadio, mas tão explícito, que é a verdade. 2. Garcia Lorca e as canções de ninar: acompanhe esta pesquisa que Ida Duclós está fazendo e publicando no seu caprichado blog, que acaba de estrear.
24 de junho de 2005
A DITADURA ETERNA
Não há democracia no Brasil. Há, desde 1964, ditadura. O estágio atual da ditadura caracteriza-se pelo arrocho salarial, a entrega da soberania (inclusive do território conquistado a ferro, fogo e diplomacia por cinco séculos), a manipulação da opinião pública, o voto de cabresto (conhecido por voto útil), o rodízio de candidatos jamais identificados verdadeiramente com as necessidades populares (a caixa preta que encaminha criaturas nefastas para a representação política), a corrupção, a miséria e a violência. A ditadura deu as cartas em 1985, com o projeto bem sucedido dos golpistas de 64, de transformar o regime que instauraram pela força (ao derrubarem um presidente eleito pelo povo e confirmado por plebiscito) em instituição por meio de uma falsa democracia. Essa falsa democracia já existia antes de 1985, com o Congresso e os governadores submissos (mas eleitos pelo voto direto).
DESPREZO - Já existia a experiência de transformar o voto numa representação sem força para mudar o essencial, que é a centralização das decisões mais importantes e o total desprezo à nação. Hoje, assistimos a mais uma vitória da ditadura: a esquerda insuflada pelos golpistas, que assumiu o poder porque baixou as calças já na campanha presidencial (como expôs brilhantemente Mario Maestri no La Insígnia), e que finge que governa manietada pela pirataria internacional e os ditames dos imperadores do mundo, enreda-se no esquema de corrupção existente, expondo a disputa pelo butim, o Tesouro Nacional, entre quadrilhas de todos os vernizes. A direita assoma com sua cara limpa de um governador anódino, o sr. Alckmin, que tem a cara de pau de aparecer apontando o dedo espichando o braço em obras, como se fosse o grande fazedor que todos esperam. Esse malufismo com botox encobre as verdadeiras intenções dos entregadores do país e assume o que o deputado do PT gaúcho Adão Villaverde chamou de lacerdismo ilustrado . Estamos fritos, com essa esquerda que alimenta os abutres como Jair Bolsonoro, que quer ver sangue e acha que o regime militar matou pouco . Estamos fritos, com a possível derrubada de Lula para preparar a volta dos tucanos ao poder. Estamos fritos, com o governo tentando mostrar as mãos limpas quando todos enxergam o quanto se aprofundou na lama. Estamos fritos, com a imprensa fazendo papel de moleque de recados dos ditadores de todos os quadrantes. Estamos fritos, com essa ditadura eterna, que não constrói uma escola, que não reativa os trens, que não permite a distribuição de renda, que nos mata de todo o jeito. Estamos fritos, mas ainda estamos vivos.
CAOS - O arrocho primeiro nos proletarizou e hoje nos transformou em mendigos. Estamos na rua da amargura, agarrados como carrapatos aos nichos de sobrevivência que restaram, tendo que aturar essa perda de tempo sem fim que é o tráfego intenso de malas de dinheiro. O caos se instala por todo o canto. Meus vizinhos em São Paulo vão à polícia para peitar os marginais que transformaram uma aprazível rua ao lado da USP no inferno sobre a terra, com barulho de máquinas o dia inteiro e libação ao vivo até altas horas da madrugada, sem falar nas tardes do fim de semana assoladas pelo sambão jóia. Na televisão, os lugares que ainda tem empregos, segundo o noticiário, estão nas multinacionais e nos centros onde se planta muita soja, ou seja, onde o dinheiro subsidiado deita e rola fazendo a alegria dos novos e velhos ricos, atraindo alguns milhares de beneficiados, enquanto o resto da população disputa cada palmo do espaço disponível para arrancar uma merreca que permita a sobrevivência. Estamos fritos, em plena ditadura. A falta de educação, saúde e cultura joga o povo no braços dos oportunistas metidos a espirituais, que nada mais são do que o braço furioso dessa direita que chega com tudo, louca para matar mais.
RETORNO - 1. Não queria falar nada disso, mas as circunstâncias me obrigam. 2. Lembrei, claro, do discurso imortal de Caetano Veloso em 1968: "Então é esta a juventude que quer tomar o poder? Se formos em política o que somos em estética, estamos fritos" . A juventude que queria tomar o poder, tomou, como prova a presença de José Dirceu e seus camaradas no poder. Vimos no que deu. 2. Como notou Miguel Duclós, a música de Caetano, Soy loco por ti América, referia-se à América Latina. Como cortina musical da atual (bleargh) novela da Globo, refere-se ao sonho de fazer a América imperial lavando pratos e rebolando na pista. Um sinal claro de que uma parte da criação cultural que nos deslumbrou em décadas passadas entrou na roda. Chico Buarque: "e eis que chega a roda viva e leva o destino para lá".
22 de junho de 2005
MAIS ALMANAQUE DE BORDO
A lua tem luz própria. De sua esfera brota o dia noturno, enquanto ela fica fixa no céu como a porta para um outro mundo. Se rouba sua iluminação das estrelas, como dizem os cientistas, é porque gera dentro de si uma fonte misteriosa, capaz de soldar o céu com sua goma de puro néon. Lua cheia do inverno é véspera de dia claro e firme. O silêncio envolve o corpo como um colchão de espuma. Nenhum brilho despenca e o sonho cai como o sereno.
Carlos Castilho, jornalista veterano e no front da mídia digital, dá aulas de informação no seu obrigatório blog Código aberto. Castilho, a quem tenho o prazer de conhecer (já me trouxe de carro aqui em casa e comentou que não moro, me escondo) trabalha no Observatório da Imprensa e fez uma análise importante sobre a chuva de comentários do eleitor indignado nos blogs políticos. É bom sempre lembrar que blog é mídia e portanto pode ser qualquer coisa. Não se trata apenas de diário íntimo ou reflexões sobre tudo. É ferramenta poderosa a favor do espírito democrático.
José Dirceu (eu não disse?) declara que sai do governo com as mãos limpas. Ninguém pode contestar sem prova. Mas pode-se perguntar: se está com as mãos limpas, por que saiu do governo?
A xenofobia contra os migrantes (aqueles que ousam ficar depois do feriadão) aqui em Florianópolis está atingindo um patamar problemático. Qualquer arruaça que exista, culpam-se os visitantes, os que não são daqui. Enquanto os nascidos aqui tornam-se paradigmas da virtude e dos acertos. Todos são migrantes neste país que não pode regular a paisagem para os habitantes da nação soberana. É por isso que estou aqui, pleno de Brasil, trabalhando e morando no investimento de toda uma vida que fiz na ilha.
Lula fala, fala e ameaça: não sabem com quem estão lidando. Enquanto isso, a direita, com a cara limpinha e no maior desplante, exibe sua pseudo competência em inúmeros comerciais. A irresponsabilidade pol?ítica de quem ocupa hoje os cargos mais importantes da República criou essa situsação. O povo que agüente. Não tenho comentado política porque o Diário da Fonte já falou sobre tudo isso antes de estourar na mídia. Sr. Alckmin: limpe o Pinheiros e o Tietê e depois fale em competência.
Fomos obrigados a erradicar o Livro de Visitas do site porque centenas de mensagens por dia atulharam de links suspeitos esse espaço que deveria ser de compartilhamento com os leitores. Por que fazem isso? Porque sim, porque gostam. Não toleram que exista um lugar onde os medíocres não tenham vez. Quem quiser escrever para o site, é só enviar mensagens para meu e-mail (nei@consciencia.org). Infelizmente vai ser assim, até pelo menos passar esse ataque despropositado.
A Editora Globo me informa que vai negociar com o melhor preço o reparte de meu livro No Mar, Veremos, primorosa edição de 2001, com apresentação de Mario Chamie, e que foi brindado com o pesado silêncio da grande imprensa, que nem sequer noticiou que o livro existia. Sei de dezenas de pessoas que querem comprar e não o encontram na livraria. Deve ter muito mais, mas quem saberá? Participei de três Feiras do Livro para lançar No Mar, Veremos, fiz três lançamentos em dois estados, dei entrevistas de meia hora para dois canais de televisão, coloquei link permanente no ar na Internet. Mas é assim mesmo. Este é um duro ofício que aos poucos vai se impondo, apesar de todos os obstáculos. E preparem-se que vem mais coisa por aí. Lugar de poeta é na praça, diante do público. Conquistei esse espaço na marra. Vou continuar.
21 de junho de 2005
O SEGUNDO INVERNO
O inverno voltou esta madrugada e me trouxe o início de um resgate: o hábito de conviver com o frio que chega com vento, o gelo que acumula casacos nas paradas de ônibus, as mãos que se esfregam, os rostos vermelhos, as frestas escondidas, as manhãs e noites geladas. Ainda é só o começo, mas agradeço que desta vez ele tenha chegado na hora datada, pois o ano passado o frio deu as caras em maio e só saiu lá por dezembro. Leio ainda por cima a conferência do Vitor Ramil em Genebra, A estética do frio (da editora Satolep, presente de Luciano Dutra), livro bilíngüe (também tem a versão do texto em francês) que catequiza os europeus sobre essa especificidade da nossa região e que por isso exige uma percepção mais completa do Brasil, de imagem hipertropical que nada tem a ver com esta época do ano. Sempre que falo que estou em Florianópolis as pessoas suspiram e falam na praia. Muito longe da Bahia, somos uma ilha voltada para o interior, de face para a montanha e vales que se estendem pela paisagem. É difícil entender, mesmo para quem mora em São Paulo e também enfrenta o frio. Aqui o inverno é uma criatura mais sólida, que nos reúne em volta do que somos de especial, sem deixar de ser exatamente iguais aos outros.
INFÂNCIA - A presença em casa da minha neta Maria Clara intensifica o resgate. Ela está plena de si com seu casaquinho tricotado pela bisavó, a tôca de lã cobrindo toda a cabeça e as mãos segurando agora os pezinhos (excelente exercício, que experimentei imitando-a, e que dá grande alívio à coluna). A voz já articula melodias completas, véspera da linguagem, e os gestos inquietos experimentam o derrubar de coisas, o pegar transitório, tudo acompanhado por um olhar atento. Há seriedade em bebês, um ofício que não é essa festa que imaginam. Os dentinhos que rasgam as gengivas por longas horas do dia, o arroto difícil de sair, a elaboração de mistérios como a chegada da noite (ué, não estava tudo claro até há pouco?). Lembro da minha infância na cidade do pampa, que cruzava a família como um evento definitivo, que nos embrulhava em grandes pulôveres de lá, tricotados por minha mãe, sempre maior do que éramos, pois crescíamos como palmeiras e não havia energia para acompanhar o ritmo. Quando a roupa enfim cabia nos braços longos e finos, o pulôver já era. Começava endomingado, para ir ao cinema, acabava na cama para arredar a friaca e terminava num canto qualquer, exausto do uso. As coisas eram feitas para durar. Lembro de um sapato Vulcabrás que usei por dois anos e que não acabava nunca. Acabei jogando futebol com ele e o bicho, firme. Era só dar um lustro e já servia para ir ao colégio. Acabei abandonando o par indestrutível no pátio chuvoso, pois queria ganhar sapato novo. Maria Clara segue o ritmo dos nenês de hoje: roupa de um ano aos cinco meses, corpo que espicha e embochecha sem parar, o meio sorriso evoluindo para a gargalhada, a festa quando acorda e o silêncio de todos para fazê-la dormir. A infância é quando o tempo é a palavra coração.
CAFÉ - Não gosto, como sempre, das idéias prontas sobre o inverno. O tal do vinho ou da lareira, coisa para revista da moda e casas abonadas. O inverno popular é feito de outra natureza. A continuidade da abnegação diante dos rigores da vida, a necessária concentração para se aprofundar em alguma coisa, o estudo como companheiro e o sol tímido que é sempre uma celebração, salpicando no pátio a claridade maravilhosa pontuada de folhas e algumas flores que resistem. É tempo de mirar nos olhos e no rosto, nas falas e nos pensamentos, nas leituras e nos projetos. O frio sempre chega e nós, deste pedaço de terra, sabemos que nada pode contra ele. Agradecemos o calorzinho que fez em maio e junho, que chegou até a dar praia em alguns dias. Mas agora é hora de esfregar as pernas, de pensar muito antes de lavar o cabelo, de perseguir chocolate quente e café feito na hora, de abordar caldos enfumaçados e de tirar da vista as defesas grudentas geradas pela noite. Um acolchoado pesado, um cobertor fino de lã pura, umas orelhas que jamais esquentam e lá vamos nós, ano adentro, em comunhão com esses raios que nos chegam em diagonal da estrela-dia. Onde se esconde teu coração neste inverno que começa e não sabemos quando termina?
FUTURO - Quando as nuvens pesam e o vento sul se manifesta, pensamos que estamos perdidos. Mas surge a manhã com sua neblina e tudo se resolve com a mesa familiar onde há amor, núcleo resistente deste país aos pedaços, quando nos unimos diante do futuro, esse sonho que não nos deixa, esse estranho que, de tanto insistir, torna-se nosso amigo.
20 de junho de 2005
POETAS POR TODO O CANTO
Leio poetas em livro, enviados por um deles, Paulo Bentancur, hoje na Bertrand Brasil, e na internet, e descubro que o país procura um pouso na avalanche assassina. Recebo a visita de Luciano Dutra, de passagem para a sua Islândia, e ele me informa que está preparando um dicionário islandês-português e quer traduzir sagas nórdicas ainda inéditas por aqui. Leva na sua mala meu romance Universo Baldio. Há uma postura de poeta em cada escritor que procura abrir caminho por conta própria. Acompanho essa viagem com os olhos atentos. São muitas palavras que recomeçam a tomar o rumo da tormenta. Eduardo Frizzo me envia quatro textos, que são pura poesia deste tempo duro, e eu anuncio que ele está pronto para estrear em livro. Celso Brito me escreve dizendo que é meu novo leitor e me convida para ler seus poemas no Jornal da Poesia. Marco Celso Viola me pede alguns poemas para serem ditos em voz alta no evento que está preparando em Porto Alegre. Envio os que vão a seguir:
SENHA
Nei Duclós
Somos nós, os pescadores
que fizemos do rio uma casa
e de todos os rios, uma pátria
Somos nós, os pescadores
que cruzamos cidades amargas
com os remos fora d?água
e o rosto lavado em sal
Somos nós, os pescadores
Que nos reunimos em silêncio
ao redor do amanhecer
com o sol preso na mão
e a rede tensa
Somos nós o horizonte
onde aportarão os exércitos
sem direção
Levantar um braço, então
será o bastante
TARDE
Lá longe no horizonte
nasce a força da vogal sem nome
Voz do sobrenatural encontro
entre Deus e seu espelho
Imagem torta de espontâneo corpo
que interrompe o vôo permanente
Sombra não revelada pelo olho
colhida como flor para si mesmo
Surpresa do Criador quando se cansa
da infinita paz de estar atento
Lá nasço eu na minha fonte
De janela aberta e rádio aceso
LETRA
Talvez
escrevendo
alguma coisa amanheça
Talvez
o poema
desperte o pássaro
Talvez
a palavra
te incendeie
Talvez
a sílaba
grite
Talvez
a letra
crua
Talvez
soletrando
amor
a noite se despeça
TRÉGUA
Quem fala em amor numa noite dessas
quando nem o tempo se encoraja
de surgir no horizonte amordaçado
Quem falou em amor que te apedreje
porque a pedra afagou antes da mágoa
e isso já te basta
Qualquer migalha de amor serve de alimento
qualquer frase de amor, qualquer fermento
faz crescer o pão inaugurando a trégua
PEGADA
Sou folha no ar
não faço alarde
Grito uma vez
depois me calo
Voz de ninguém
tombo de orvalho
Sou fole de mar
eco de praia
Vento alto
na noite solar
Luz de nenhum
lugar
Sou louco luar
de torna-viagem
sopro mortal
silêncio amargo
Trouxe o bolso cheio de balas
Pólvora do coração ao largo
Volta, que eu entendi a rosa
Fica, antes que eu te estrague
RETORNO - Dois brasileiros comentam a situação política no terminal do ônibus. Estou imediatamente atrás deles, na fila. Um diz: "Soubeste da pesquisa? O Brasil está em último lugar na distribuição de renda". O outro replica: "No Brasil não há distribuição de renda porque não dá tempo". Bingo.
18 de junho de 2005
A ARTE DOS ENCAIXES
Rodrigo Schwarz é uma dessas surpresas que aportam na literatura com força total. O seu romance de estréia, A Ilha dos Cães, me foi enviado por ele e imediatamente tomou conta do tempo que inventamos para ler. Neste sábado, o Diário Catarinense publica no seu caderno de Cultura a resenha que fiz sobre o livro de Rodrigo, esse brasileiro invocado de Joinville que sente saudades de Porto Alegre, onde morou por algum tempo. Transcrevo a seguir o meu texto, que já está no site do jornal (precisa se cadastrar para ter acesso ao conteúdo).
Nei Duclós
O romance de estréia do joinvilense Rodrigo Schwarz, A Ilha dos Cães (Bertrand Brasil, 128 págs., R$ 23), se presta a várias metáforas. Podemos escolher duas. Uma está na cena de Os Fuzis, de Ruy Guerra, em que dois soldados de olhos vendados tentam recompor, cada um, a própria arma. Eles dispõem apenas de peças espalhadas sobre a mesa, que precisam ser identificadas pelo tato e encaixadas pela experiência. Prova de coragem: quem for mais rápido e eficiente pode apontar para o adversário. É um jogo mortal que, no livro, coloca frente a frente o autor e o leitor reais, e os autores fictícios entre si. Sobram, nesse jogo, como platéia virtual, os não-leitores imaginados, os que perderam a oportunidade de ler as narrativas, que se encaixam numa segunda metáfora: a da marioska, o jogo das bonecas russas de madeira, ocas por dentro e de tamanhos variados, em que a maior pode guardar as menores no seu interior.
A boneca maior é o embate entre a História canônica e a sua impossibilidade, aquela que poderia ter acontecido. Ou seja: no lugar do mundo definido pela hegemonia européia sobre as civilizações americanas, o romance propõe que os grandes descobrimentos fracassaram e os astecas conseguiram desenvolver seu império sem a interferência dos europeus. E no lugar de sir Richard Burton, o expedicionário das civilizações perdidas e das línguas desconhecidas, um Richard Burton que jamais chegou à Inglaterra depois que partiu de sua estadia em solo brasileiro, quando foi diplomata em Santos. Por determinação do autor, essa matriz é a vitória de uma ficção, a literária, que finge ser História, sobre a outra, a histórica, que finge ser definitiva.
É uma insurgência que tem apoio em especulações de alguns historiadores. Aqui, pelo exagero, poderia chocar, não fosse o desplante com que o autor aborda essa transgressão, num texto que escorre sem ser açúcar, e prende pela liberdade que inventa e não pelo esforço da verossimilhança. A segurança de Rodrigo permite até que ele use conceitos da História aceita, colocando assim, pelo uso da linguagem, as duas versões cara a cara, para que possamos identificá-las pelo avesso.
A segunda boneca encerra um naufrágio e o refúgio do herói numa ilha deserta. Robinson Crusoé é Burton, autor do livro que não encontrará leitores. Seu Sexta-feira é Nikolai, o marujo catarinense cego que ganhou esse nome russo pelo contato que o pai teve com os eslavos no porto de São Francisco. A tragédia de Burton é não ter nem em Nikolai um leitor. Consegue dele apenas a pior das manifestações, a crítica. A excessiva proximidade entre leitor e escritor leva à indiferença, jamais à possibilidade de um retorno gratificante. Mas não é pelo manuscrito que os dois acabam se reconciliando, e sim pela conversa, quando se vêem a braços com a própria precariedade, que os identifica. Rodrigo, aqui, aponta para uma celebração: a de que um escritor pode chegar ao próximo não no território do livro, mas por meio do livro, usado, involuntariamente, como isca para a convivência. O que vale não é a literatura, mas a sobrevivência. Não se trata de papel, mas de humanidade.
As cascas do jogo descem ainda em novas camadas. Há uma herança, o livro inacabado de um guerreiro viking, que aportou no império asteca de Montezuma pela derrota e que guardava o segredo de uma civilização perdida no gelo e a técnica de uma arte, a de fazer barcos que cruzassem o mar. O calhamaço é encontrado por Nikolai, o cego, e apropriado por Burton. Este, dedica-se a contar a história de um escriba a serviço de Montezuma, que teria vindo até a ilha para resgatar a rainha caída em desgraça e também para escrever um livro. Os livros que se superpõem na marioska são apenas fragmentos e servem como as peças da arma desmontada, que precisam ser recompostas pela leitura que os personagens fazem entre si, reflexo da leitura mais à tona, a que fazemos do livro de Rodrigo.
Schwarz reporta o desespero do escritor, que precisa criar sem pensar em quem lê, como ato último, sabendo que vai naufragar na próxima temporada, quando o mundo lá fora continuar ignorando a sua arte. É o delírio comum de todo escritor brasileiro, à mercê das tempestades do mercado editorial, sem a sintonia com um ambiente que deveria lhe prestar reconhecimento, e que acaba apenas lhe dedicando hostilidade. Seu truque para romper esse cerco foi obedecer ao que parece ser uma tradição literária, mas é pura invenção. O tiro de misericórdia permitido pela solução do enigma está sempre a cargo do leitor, já que o autor dispôs as peças, montou-as do seu jeito e abandonou a mesa. Ele aguarda o desfecho de quem lê, que tanto pode atingir quem escreve quanto enriquecê-lo.
O autor permite que o leitor trabalhe a obra como se este fosse um virtuose, que produza o som sugerido pelos gestos dele, o maestro. A ousadia poderia levar a uma combinação cerebral de recursos literários, mas felizmente ela se encaixa na linhagem da modernidade inaugurada por Cervantes, o da aventura que, em vez de vestir, desmonta, em que os leitores fazem parte da obra, já que não conseguem despregar os olhos do que está escrito. Tanto isso é verdade que não nos damos conta do território que nos circunda. Acreditamos piamente ser uma ilha, mas tudo indica que ela possa ser outra coisa. Assim como acreditamos ser esse um romance, mas pode ser apenas uma demonstração da arte de encaixes ao ar livre, numa rua qualquer, de um mundo que perdeu o rosto, mas que, diante do artífice, poderá se reencontrar.
No momento em que estamos prontos para zarpar dali, quando fechamos a última página, notamos que algo se mexe embaixo dos nossos pés. É aquilo que chamamos terra, mas que se revela um monstro. Essa surpresa nos leva para outra impossibilidade: talvez não seja o nosso destino descobrir totalmente o que seja este livro. O que vale é a viagem e os mistérios que Rodrigo Schwarz nos obriga a decifrar.
RETORNO - 1. Urariano Mota faz um mergulho minucioso em Don Quijote, de Cervantes, e as armadilhas da tradução do romance maior. Uma aula sobre criação literária, que esclarece os leitores e os convida para uma trilha na tarefa de reiventar mundos por meio da palavra. 2. A cavalgada que o menino de 14 anos faz pelo litoral gaúcho é um dos momentos maiores da atual literatura brasileira. Por Delmar Marques, em Os Minuanos, o Resgate das Indias Sagradas. 3. Agradeço o retorno de todos os que me enviaram e-mails e postaram comentários sobre a tradução dos meus poemas por Flavia Rocha e publicada na revista americana Rattapallax, de Nova York, e os 30 anos da primeira e ainda única edição de Outubro. O bom foi ter de volta os uruguaianenses Rubens Montardo Junior e Anderson Petroceli, que estavam meio quietos, possivelmente preparando alguma tocaia boa neste mundão de Deus. 4. Continuam chegando pedidos para eu enviar o poema Salvação, meu maior sucesso na Internet.
16 de junho de 2005
MAIS POEMAS DE OUTUBRO
Em comemoração aos 30 anos da publicação do meu livro de estréia, Outubro, que teve até agora uma única edição, relembro alguns poemas favoritos que se impõem pelo tempo e que não tem sido lembrados ultimamente. Como Lição de Travessia, que faz parte do livro, já encontrou porto em língua inglesa, e Salvação é hoje um sucesso na internet (reproduzido em inúmeros blogs), coloco no ar outros versos, que também vieram de longe e tiveram seu batismo em praça pública, quando foram escritos em cartolina para o povo ler e levar para casa. Eles continuam alimentando os sonhos de uma vida dedicada às palavras.
HÁ UM POEMA EM CADA AMIGO
Nei Duclós
Há um poema em cada amigo
custa descobri-lo
precisa tempo, distância
comunhão, exílio
A magia custa a florir
como os versos simples
O inesquecível está na mão
mas o braço
é um longo caminho
entre a ponta de um dedo
e o coração
ABRAÇO
Quero te dar um abraço modesto
do tamanho do mundo
pequeno em relação ao universo
enorme para nossos passos
Quero te dar um abraço profundo
que surpreenda as almas
apesar da idade
e que a gente morra quando se aperte
DÓI ENTRAR NA VIDA
Dói entrar na vida
de sonho gasto e pé indeciso
sem o consolo do primeiro amor
e do primeiro livro
Dói quebrar a espinha no vazio da vida
e arrastar este soldado
partido pela guerra
pelas portas dos hospitais lotados
UM POEMA POR ANO
Um poema por ano
casa da solidão
ventos de sono
Árvores da infância furando o coração
Na saliva, sangue
O tempo sendo jogado fora do balão
lastro de fome
Cada vez mais longe
a paisagem do amor
e seus rebanhos:
promessas que não se cumprem
pássaros que não voam
14 de junho de 2005
MEUS POEMAS EM NOVA YORK
Graças à poeta e tradutora Flavia Rocha & Idra Novey, alguns poemas meus foram publicados na versão impressa de uma importante revista literária americana, a Rattapallax, de Nova York, distribuída no Brasil pela Editora 34. Recebi ontem dois exemplares com a novidade. Repasso o que está lá em duas páginas: a poesia brasileira tratada com carinho e consideração pelos editores estrangeiros.
The passenger`s plots
Nei Duclós / Tradução: Flavia Rocha & Idra Novey
The passenger`s plot
Are spirals
He walks into the circle
But always leaves
The passenger never loses track of the docks
Nor misses
His return
Nor stops
To rest
The passenger never loses track of the sea
(Os esquemas do Passageiro
Os esquemas do passageiro são espirais
Ele entra na roda mas sempre sai
O passageiro não perde
a noção do cais
Nem perde a volta
que faz
Nem pousa para descansar
O passageiro não perde a noção do mar)
Crossing Lesson
Every time I see a river
It seems that Argentina is on the other side
The heavy rafts of childhood
Escaped my sight
But the bridge remained
As the eternal promise
That all banis
Can be walked
The world doesn`t have a right side
As there is a solid bridge
Over every water
(Lição de travessia
Sempre que vejo um rio
parece que do outro lado está a Argentina
As balsas carregadas da infância
sumiram do meu olhar
Mas a ponte permaneceu
como eterna promessa
de que todas as margens podem ser pisadas
O mundo não tem lado certo
pois há uma ponte sólida
por cima de todas as águas)
Mars
He stood up
Because there wasn`t any space
Sighed
Because morning doesn`t open
Walked toward Mars
Because in the room
Life had already dried
(Marte
Levantou
Porque não havia mais espaço
Suspirou
Porque a manhã não abre
Caminhou
Em direção a Marte
Porque no quarto
A vida já secou)
Cofee
The rush for coffee stains my shoe
The late wheat breaks through the marble
You want to be the bath
Wash away the discolored blood
But bone makes noise,
and flesh Is hard ground for tragedy
It`s early yet. The panther`s hair
Waits for pain to draw its sword
(Café
A pressa do café mancha o sapato
O trigo tardio quebra no mármore
Você quer ser o banho
e esvair o sangue descorado
Mas osso faz barulho,
e carne é solo firme para o trágico
É cedo ainda. O pêlo da pantera
espera a dor sacar a espada)
WIM WENDERS, O FLANEUR NO ABISMO
Nei Duclós
Os anjos de Asas do Desejo, de Wim Wenders, são uma radicalização da figura do flaneur, encarnado por Baudelaire: o cara que andava pelo avesso da cidade transformada subitamente pelas forças do capital, que entregava-se à contemplação e à reflexão nas largas avenidas que brotaram junto com os edifícios e as multidões. Há um componente nostálgico nesse personagem notório da História da Cultura, que teria resgatado, em plena metrópole, o modo de viver do campo, inconformado com a avassaladora presença das máquinas e a desumanização dos habitantes. Os anjos de Wenders, testemunhas da pequenez e da imensidão das criaturas que contemplam, expressam-se, como Baudelaire, pelo poético (a nostalgia da linguagem antes da demolição mercantil do discurso) e mapeiam as situações que envolvem os seres que estão sob os seus cuidados.
CHANCE - Mas se o flaneur clássico é ruptura diante do capitalismo nascente, e uma tentativa de resgate da harmonia perdida, os anjos da pós-modernidade são o sofrido olhar diante da decadência urbana, desse desmaio abissal que é Berlim reconduzida à unidade depois da guerra que a cortou ao meio. Há necessidade agora de o flaneur interferir na cena que observa, sob pena de tornar-se o árido espírito que gerou o abismo. Os anjos então se humanizam, e vertem sangue para aproveitar a chance: agora que o sistema dá sinais de cansaço, é hora de pousar nele o que há de mais profundo, a materialização do sonho cevado na exclusão secular.
ABANDONO - Outro flaneur de Wim Wenders é o personagem mudo desse filme que foi feito para nos derrubar, o incomparável Paris, Texas. Ele vaga pelo deserto em busca do amor perdido. Voltou enfim ao campo e nele procura encontrar o que não possuía mais na cidade. Guia-se por um paradoxo: um nome feliz de cidade encravada no grotão da América. Vaga sem nenhuma chance de encontrar o que procura e é por isso que há aquele blues tocado pela guitarra feita com os nossos nervos. A guitarra chora a impossibilidade e temos certeza que ali, naqueles momentos antológicos do cinema maior, nunca fomos tão sós. O abismo dessa figura é o horizonte sem fim que se distancia a cada passo.
É no fundo o ser que perdeu a capacidade de se expressar (porque há um abismo entre o homem e o esquema que deveria sustentá-lo) e que sai em busca da palavra perdida. Encontra-a corrompida, exposta na vitrina do mercado. Mas ele procura recuperar a fala (a sua vida) e é com a palavra prostituída que precisa recompor-se. Essa é uma das fábulas desse artista que nos comove pela compaixão (esses ausentes desesperados que despencam na paisagem) , que nos convoca pelo sussurro (esse poema que ninguém escuta), que nos leva até a amurada e lá nos aponta o chão distante, para onde irá nosso corpo sem sentido.
Lançamos, então, tudo o que somos, no ar, para ter certeza se ainda contamos com alguma densidade. Vamos ao encontro de nós mesmos. Deixaremos, com Wim Wenders, de sermos o flaneur conformado com o olhar infinito. Se tivermos sorte, haverá sangue quando acordarmos no chão da cidade condenada.
13 de junho de 2005
KUROSAWA, VIVER NO APOCALIPSE
Nei Duclós
Akira Kurosawa não precisou imaginar o fim do mundo. Foi testemunha da tragédia quando, levado pelo irmão, viu no que se transformou Hiroxima depois da bomba. O Apocalipse não é, portanto, uma profecia que vai se cumprir, mas o território que ele precisou palmilhar e enxergou de perto, não só como o Outro que vê, mas como o próprio que é calcinado junto com seus semelhantes. Seu cinema são os passos dados no limite extremo da aniquilação total. Ele está confinado nesse núcleo da bola de fogo. Seu olhar não pode simplesmente reduzir-se à resistência ou à denúncia, que são ilusões do humanismo desmascarado pelo horror. Nem pode mais separar realidade de pesadelo, já que ambos convivem dentro e fora dele. O Mestre caminha enquanto o mundo explode e coloca, no centro do drama, o que acontece ou pode acontecer quando o destino se cumpre e não há mais esperança. Kurosawa é a solidão do cinema diante da maldição. Nós, os espectadores, somos os improváveis sobreviventes da catástrofe que ele revela. Foi assim que morremos, nos diz ele, e foi assim que enxerguei a vida enquanto o mundo se despedia.
ZUMBIS - Viver é exatamente o filme mais didático de Kurosawa. Feito nos anos 50 e em preto-e-branco, narra a fase terminal de um funcionário público desenganado pelo câncer, que decide virar a mesa da sua repartição corrupta e enfrentar a especulação imobiliária que queria destruir uma praça. A clarividência e a coragem que se manifestam pela consciência da morte servem para fazer um minucioso relatório da vida sem sentido a que fomos condenados, como zumbis enredados pelos poderes, amarrados como alimento de abutres. Num andamento pesado, o chefe daquele departamento descobre as verdadeiras ligações com seus semelhantes, tanto na família quanto no emprego. Vê então que não tem nada e nunca foi nada. É como se Kurosawa, sabendo como o mundo acaba, resolva pesquisar os motivos da destruição, a vida que era vista como pacífica e que em nenhum momento se diferencia do momento da explosão.
ESPÓLIO - Ele mostra que o big-bang é uma síntese para onde confluem as sociedades humanas antes e depois do impacto. É como se Ran ou Os Sete Samurais revelassem os antecedentes rumo ao desfecho, que se cumpre, Sonhos o flagrante do evento e Viver seu descenso, ou melhor, o que veio depois (o Japão derrotado, pobre e burocrático) mas que se reporta à bomba num movimento pelo avesso, na contra-mão do tempo. Há três momentos do Apocalipse: Ran (e toda a sua linhagem de guerra sem fim que é fruto do ódio seminal da espécie a partir da família); Sonhos, que é o relatório ao vivo do xeque-mate nuclear; e Viver, que seria o espólio da explosão, mas como nas velhas projetoras que faziam o filme andar de trás para diante, mostra como o pós-Apocalipse a ele se dirige de maneira inapelável.
DESPERDÍCIO - Em cada filme citado, sempre há lugar para qualquer um dos passos finais. Não são apenas os antecedentes que existem em Ran, pois lá está a mortandade no campo de batalha, numa seqüência interminável, que é a reprodução dos corpos destruídos vistos por Kurosawa na cidade destruída. Em Sonhos, há algo mais do que a cena do remorso (o comandante que enfrenta os fantasmas da tropa massacrada sob o seu comando); a dos demônios que berram quando lhes nascem os chifres; o passeio pelo cenário da queda, a pintura de Van Gogh; ou a sedução da Morte numa peregrinação na neve. Há o paraíso que assoma no velho moinho na beira da água limpa, o ancião que acena com a sabedoria, a terra intocada pela barbárie. Existe aí o que apostamos ser esperança, mas é apenas mais um desdobramento do olhar do Mestre. Não é que tenhamos alguma chance e encontramos enfim a paz (em Sonhos) o reconhecimento (em Dodeskaden) ou a justiça (em Viver ou em Os sete samurais). Vemos o passo além do extremo, o resultado do julgamento final, o último reduto do Apocalipse, que é a contraditória promessa de salvação depois da condenação de todos. É quando o cinema, representação do mundo, acaba, e levamos para casa um pacote de possibilidades. Acreditamos ser a segurança da eternidade, mas é um presente da lucidez de Kurosawa: fazemos parte do Apocalipse e encará-lo de frente é a única ação possível quando todas as chances foram desperdiçadas.
RETORNO - Imagem desta edição: Monte Fuji em Vermelho, um dos episódios de Sonhos.
12 de junho de 2005
ALMANAQUE DE BORDO
Alguns flashes de uma rápida escapada à cidade da cultura
VÔO - Uma pequena multidão de passageiros ficou trancada, nesse sábado, no aeroporto Salgado Filho de Porto Alegre. Iriam partir às sete da manhã, mas o avião da Gol teve que ir para a manutenção e não havia como fazer a substituição. A solução encontrada foi colocar os passageiros num vôo da Varig (que, claro, estava vazio) só que às três e meia da tarde. Para quem precisava estar às seis da manhã no balcão do check in, ter que aturar um dia inteiro para ir até Curitiba num espaço de tempo que daria para fazer tranqüilamente do ônibus, a decisão soou como um escárnio. Ão, ão, ão, queremos avião! foi o grito que se ouviu. Como a empresa não cedia, fez-se uma barreira no portão de entrada, impedindo que os passageiros dos vôos seguintes embarcassem. Vieram os guardas da Infraero e a Policia Federal. Chegou a haver enfrentamento físico por parte dos mais exaltados. Havia revolta também de quem não conseguia embarcar. No fim, tudo ficou como decidido e consegui pegar meu avião, que deu um pique no vôo e acabou se atrasando apenas sete minutos. Na minha frente, um senhor muito idoso estava decolando sem cinto de segurança e com o espaldar da poltrona fora do eixo vertical. Eu e mais um passageiro fizemos sinais para a aeromoça, que tinha um olhar burocrático e nada enxergava. Depois ela veio checando cadeira por cadeira e passou lotada pelo idoso. Aí eu chamei a atenção dela. O olhar viciado da tripulação, a revolta contra uma empresa que opera no limite, o vôo zen por cima das nuvens, o atraso de uma hora na ida por falta de teto em Porto Alegre, tudo isso fez da viagem uma contradição entre a rapidez e o tumulto.
POEMA - Vejo no lançamento do livro de Delmar Marques, depois de dácadas, o poeta, escritor, dramaturgo, agitador cultural Emilio Chagas. Chega acompanhado de Christiana, com quem compartilha um filho, artista plástica que acaba de ilustrar livro de James Joyce traduzido por Donaldo Schuller e adaptado para crianças. Emilio pede que eu recite Outubro para ele. No final dos versos, ele fecha os olhos, vira de lado e chora. Para quem, como eu, que nos últimos tempos tem ouvidos coisas por parte de algumas que, pelos mais variados motivos, acharam por bem me xingar, essa foi uma homenagem que lavou a alma. Não sou o que dizem, sou o que choram.
DEBATE - No bar do Beto, o poeta e produtor Carlos Eduardo Caramez (que acaba de lançar seu belíssimo livro de poemas Construção das ruinas) me pergunta sobre o que eu acho da conjuntura política. E nos segreda seu grande projeto: um encontro no fim do ano entre representantes de cidades portuárias, que conseguiram transformar o cais em centros culturais. A cidade aqui chama-se Porto, lembra Caramez, Alegre. Nada mais sólido do que o óbvio visto por uma inteligência e uma sensibilidade lúcida e ativa.
VOLANTE - Delmar Marques tenta me levar até a casa de Tabajara Ruas e perde-se no caminho. Lembro que fazia o mesmo quando queria me levar para minha casa em São Paulo. Diz que assim é melhor, há tempos a gente não conversa. Não tem paciência com os outros motoristas, entra sem querer na contramão, perde a vaga para um espertinho e quando desce do carro coloca a mão no casaco e vê que está sem documentos. Começo a reler seu livro e lá está sua biografia sentimental. Delmar é múltiplo e não se conforma em ser um só. Seu romance, dedicado a Denise, pessoa fundamental na viabilização da edição, é uma catequese, uma bandeira, uma herança, um aceno no meio do pampa. O gaúcho mais à vontade em São Paulo, um dos poucos que não tremeram diante da megalópole.
LUA - Marco Celso Viola, guiado pela mulher, Rosana, me deixa no apartamento onde vou passar a noite. Vê que estou entregue a salvo e se despede. Seu abraço é sempre o do camarada que compartilhou a guerra. No lançamento, falou mais uma vez sobre Zé Loguércio, o cara que colocou 30 mil pessoas na rua em 1968, confrontando a ditadura. A poeta Nazaré de Almeida, pioneira como nós da poesia de oposição da época braba, e agora cunhada de Ferreira Gullar, lembra que falou também com Paulo Loguércio, irmão de Zé. Com Paulo tenho algumas músicas em parceria, lembro. Onde está Paulo Loguércio? Coloquei o seguinte verso numa melodia sua: o lento subir da lua faz ruídos de lua branca.
ROSTO - Porto Alegre, cidade da cultura. Todos discordam. A cidade não está bem. Sim, digo, mas só aqui há um grande debate sobre isso, sobre a identidade de uma cidade. O que é Porto Alegre? É onde ninguém se conforma, e por isso bate o bumbo. Ademar Vargas de Freitas não participa do debate, mas está presente. Mais experiente, homem que já participou como soldado de uma missão no deserto e um dos mais respeitados jornalistas do país, Ademar é o irmão mais velho que deixa os outros falar. Despede-se mais cedo, com sua barba de revolucionário cubano, com seu olhar sempre vivo e atento, com sua concentração e talento que fazem escola.
11 de junho de 2005
COM DELMAR MARQUES, EM PORTO ALEGRE
Reproduzo aqui o prefácio que fiz para o livro de Delmar Marques, Os Minuanos - O resgate das Indias sagradas (Editora Paralelo 30, R$ 30,00). Ontem, no lançamento, tivemos uma noite e tanto na cidade da cultura, Porto Alegre: o encontro de muitos autores, que foram abraçar nosso jornalista favorito e romancista inovador e polêmico.
O Mundo Perdido
Nei Duclós
De mãos dadas, sonho e memória buscam o que História deveria revelar. O segredo está no sangue e no coração, instrumentos desta literatura que não faz distinção entre pesquisa e aventura, entre descoberta e catarse, entre biografia pessoal e perfil da raça. Delmar Marques segue a pista do vocabulário cevado em família para chegar à raiz do esquecimento e de lá retirar a luz que, contrariada, continuava oculta.Agora que a ciência descobre o óbvio - que a herança genética dos minuanos e charruas continua viva nos povos da fronteira -, é hora de seguir o passo do autor na recomposição de uma realidade que pulsa nas pedras, nos rios, no pampa e nos cerros. Ele precisou abrir mão da sua contingência de tempo e espaço para reconquistar o mundo destruído parcialmente pela barbárie civilizada. Reencontra assim, intacto, o tesouro cifrado que lhe foi entregue quando criança e que sua coragem decidiu revisitar.
Seu livro mostra que essa passagem não é feita sem dor. As feridas físicas respondem pelo esforço do espírito na busca do que nos é negado. O diferencial em Delmar é que ele não se acostuma com o silêncio, não aceita o resultado da guerra, não se adapta às imposições de uma ordem injusta.
Seu heroísmo vem da teimosa fragilidade diante da surra compacta do inimigo. Correndo o risco de assumir a vestimenta que tentaram lhe impor, ele faz do seu deslocamento pessoal o insumo de uma revelação.Para isso, não se desfigura: não pensem em encontrar nele a falsa humanidade de quem se expõe só para chamar a atenção, a abertura fajuta da pseudo modernidade. Ele continua o garoto da estância que não abre mão das suas raízes. Mas expõe essa personalidade para apresentar o homem construído por uma vivência de luta, onde a trajetória individual está cruzada com o andamento de um país grande demais para ser compreendido pelos sinais expostos na superfície.
Decidido, Delmar consegue fazer a literatura que o País precisa. Uma arte que reiventa o passado, que desvela o quadro insosso das certezas datadas, que reencontra a emoção do andar, que não refuga a briga e que por isso mesmo bate-se pela paz.Ninguém sairá imune da leitura deste livro, que não pede nem dá quartel para quem quer que seja. O mundo perdido que Delmar Marques revela é a presença em carne e osso de um fantasma escondido no mato. Dele sai sangue, mas a dor é apenas um detalhe.
O importante é passar por esta experiência que nos assalta como se um avô armado estivesse há séculos nos preparando uma tocaia.
DOCUMENTÁRIO - A pesquisa de Delmar também está gerando um documentário sobre os índios minuanos. Vamos ouvir o autor em sua manifestação no Comunique-se sobre esse assunto: "Obrigado Nei, Denise, que se deslocaram de Floripa e Sampa para Porto Alegre, Iracema, Talis, Leila, Jorge, Paula, Emerson, os que se manifestaram por e-mail, pelo comunicador ou pelo Orkut, enfim, todos que acompanham essa batalha e sabem das dificuldades em se colocar um livro no mercado. Tem muita luta ainda pela frente, pelos menos doze horas de filmagens para serem montadas. Estou vesgo de tanto ver e decupar imagens, algumas realmente maravilhosas do habitat das indias. Outras chocantes, dos sitios arqueologicos arrassados, cortados por tratores, valas imensas, da altura de um homem. Memória para sempre perdida. Paris, Roma, Atenas jamais receberiam tantos turistas se seus sitios fossem tambem destruídos. Livros deixariam de ser escritos, filmes deixariam de ser rodados, seriam cidades como quaisquer outras. A partir da arqueologia se levantam elementos para outras variantes culturais, literatura, cinema, teatro, impulsionadores do turismo, da economia. No Brasil, tudo se perde".
RETORNO - A revista Forum deste mês publica o conto Fluxo Negro, do meu filho Daniel Duclós, na coluna Vivaletra, de Eduardo Maretti, que descobre em Daniel uma linhagem que vem de Leopoldo Lugones (1874-1938), "em que se associam o terror e uma vaga, porém marcante, ironia. O efeito, em quem lê, é o de um inevitável estranhamento." É a estréia de Daniel como escritor reconhecido na mídia impressa.
9 de junho de 2005
ESSA CRIATURA CHAMADA ARGENTINA
O jogo das duas seleções foi uma vitória da espécie sobre os indivíduos. A Argentina num campo de futebol revela-se uma criatura coesa, azeitada, determinada até o último suspiro. O mérito da vitória é todo deles. Não foi porque tiveram a manha de nos chamar de favoritos, ou porque o Maradona foi lá na concentração colocar salto alto no Ronaldinho Gaúcho. Não foi porque os deixamos jogar. Ou seja, não foi o Brasil que permitiu, foi a Argentina, com seu futebol, talento e garra, que conseguiu chegar. Precisamos respeitar a existência do Outro. Eles não erraram passes, foram objetivos, não deixaram espaço para o adversário.
BATALHA - Eles são uma sociedade identificada no desafio, uma nação que se expressa como um só rosto e impuseram seu ritmo a um time, o nosso, que se descosturou pelo nervosismo e que só no segundo tempo conseguiu se articular, mas aí já era tarde demais. Eles nos respeitam, nos temem, nos admiram, por isso venceram. E jogaram o fino, superaram seu rema-rema de oferecer, como acontece normalmente, uma correria com precisão de relógio cuco. Conseguiram atingir um patamar maior pois é assim alguém que enfrenta o terror de uma batalha. Nos engoliram, para surpresa dos comentaristas (tão ufanistas antes e tão clarividentes depois) e desespero da torcida brasileira. Vimos a cara de estupor de Robinho na hora do hino. O nervosismo atrapalhou, mas o motivo foi a presença dessa criatura chamada Argentina. Não é fácil enfrentar um dragão que coloca todas as suas forças numa só meta. Não havia diferença entre a seleção deles e a torcida. Eram um só, esse monstro que é nosso vizinho e nos ensina a ser algo que perseguimos, o da nação costurada por uma alma integrada, apesar das dissidências internas e dos conflitos que nos dividem. Por serem o que são, somos ciclotímicos em relação a eles. Numa hora odiamos, na outra paramos para pensar.
GUERREIRO - O lutador Delmar Marques lança o livro "Os Minuanos - O Resgate das Índias Sagradas", na livraria Cultura do Shopping Bourbon Country em Porto Alegre . A noite de autógrafos, com coquetel de lançamento, será a partir das 19h30min na Av. Tulio de Rose , 100, Passo D'Areia. Tive a honra e o privilégio de acompanhar todo o processo de construção deste livro e por isso fui convidado a escrever o prefácio. O Google informa: Com essa obra, Delmar espera reverter o processo de "esquecimento" articulado em torno dessa tribo, que pesquisas sobre o genoma do gaúcho apontam como fundamental na formação das famílias do pampa. Marques produz também um documentário sobre o papel das índias minuanas na filosofia de vida dos gaúchos do pampa. O livro é um romance ficcional, mas tem por base dados de suas pesquisas pessoais desenvolvidas no Brasil, Uruguai, Portugal e Espanha, durante mais de 30 anos. A obra foi aprovada pela Comissão Nacional de Incentivo à Cultura do Ministério da Cultura e deverá ser o primeiro de uma trilogia, esgotando todo o farto material que o jornalista recolheu durante suas pesquisas. O patrocínio, pela Lei Rouanet, é do BRDE e banco Daycoval e o apoio da GM do Brasil. Delmar é autor trambém de Caso MFM Sulbrasileiro - Ascensão E Queda Dos Coronéis Autor, baseado em série de reportagens que lhe valeu o prêmio Esso. É também dramaturgo das peças "Em farrapos" e "Quarto poder". Repórter pit-bull, nada escapa a Delmar, militante da imprensa há 35 anos, no mínimo. A convite do autor, estarei na noite de autógrafos. Quem puder ir, vá. Delmar merece o abraço dos que são honrados pela sua luta e seu talento.
RETORNO - Ok, Gim Tones, Roberto Carlos merece aplausos, não só pela garra que apontaste aqui, mas também porque, depois de chutar uma vez na barreira (pronto, disse eu, lá vem ele de novo), conseguiu fazer um gol. Gostei também do Kaká. Já o Ronaldinho, não conseguiu nada. É difícil ser o melhor.
8 de junho de 2005
A SOLIDÃO EM EDINHO
Sempre me perguntava o que aconteceria com Edinho depois de sua passagem irregular pelo Santos, time do seu pai, Pelé, onde alternou fases boas com alguns desastres como goleiro. A resposta veio agora, com sua prisão por envolvimento com drogas. Implico com a mania de dizer que Pelé é um ET, que não é desse mundo, que sua glória veio de algo fora de sua formação. Pelé é um mito do Brasil soberano. Foi formado, como toda sua brilhante geração, nos anos democráticos, quando o povo tinha vez para mostrar que poderíamos ser os melhores. Foi tão longe e tão fundo que, no momento da desconstrução do Brasil a partir de 1964, foi jogado para outro território. Já foi acusado, como tantos outros gênios, de ter sido conivente com a ditadura (há um revolucionário em cada esquina). Depois, aproveitaram-se do mito para desvinculá-lo da sua humanidade. No momento em que visita o filho, expõe sua grandeza e sua precariedade. Não há como separar Pelé de Edson. Os dois são a mesma pessoa. Ao construir-se como Pelé, Edson criou um fosso com sua descendência. Precisou reconhecer uma filha na Justiça e com Edinho tinha uma relação bastante complicada. Não vamos esquecer a placa que ele deu para o Marcelinho, que fez um gol inesquecível no filho. Não precisava ir tão longe para desvincular Pelé do pai que ele é.
JUGULAR - Simpatizo com Edinho porque imagino a tortura que é sua relação com o mito paterno. Ter optado pelo gol foi, talvez, uma maneira de ser visto integralmente por Pelé (que esteve a vida toda de olho no gol), posicionar-se diante da autoridade como um menino escuta um herói. Escolheu uma posição maldita e não foi por acaso que jogou no Santos. Talvez quisesse também ser alguém no time que consagrou seu pai. Não podemos julgar nada, mas o problema foi escancarado em toda a mídia. Tenho a impressão que Edinho foi humilhado na sua carreira. Saiu pela porta dos fundos, desmoralizado como jogador. Tornou-se um nada, jamais lembrado. Queriam esquecê-lo. Agora é lembrado e da pior maneira possível. Não se explica que só a polícia tenha prestado atenção nele. Ninguém foi lá entrevistá-lo, homenageá-lo, dizer o quanto foi bom goleiro (ou apenas goleiro de um time importante) e que sua infelicidade em vários lances faz parte do ofício. Preferiram ignorá-lo, excluí-lo, enterrá-lo vivo. Não estou justificando nada, apenas tentando entender essa solidão que mata e que faz a pessoa optar por alguma forma de suicídio. Há quanto tempo não abraçava seu pai? Conseguiu pelo caminho mais torto. Torcemos sempre por Pelé, Rei inconteste da arte que projetou o Brasil e que hoje é talvez a manifestação cultural mais avançada, mais completa e mais de vanguarda do país. Temos craques em campo, mas a linguagem para descrever essa genialidade é sempre ufanista, tosca, pequeninha. Ronaldo Fenômeno, que tanto fez pelo Brasil (nos deu pelo menos uma Copa do Mundo) agora está em desgraça, chamado de gordo por todos. Por que essa sanha de pegar a jugular alheia?
HOMENGAEM - Tarde chegamos a ti, Edinho. Não soubemos descrever teu esforço, tua homenagem ao pai escolhendo o Brasil para morar, o Santos para jogar, o gol para defender. Poderias ter ficado nos Estados Unidos, enfrentar aqueles gringos que jogam futebol com a mão. Mas preferiste o caminho mais árduo e te expuseste totalmente, querendo mostrar que existias, que tinhas um identidade, que não eras o apêndice de um Rei. No Brasil republicano, um Rei faz parte do imaginário do povo, mas não pode deixar herança nenhuma. O filho de um Rei precisa palmilhar o caminho mais difícil, abrir espaço por conta própria, dizer: eu existo, sou uma pessoa, vejam o que posso fazer. Mas debocharam de ti, Edinho. Estavas sempre à sombra de algo maior do que tu. Nem querias tanta glória, apenas ser visto, reconhecido, tratado com dignidade. Agora fazem plantão diante da tua cela, mas é tarde demais. Torcemos por ti. Torcemos para que saias dessa de cabeça erguida, que seja suave a pena neste país de tantos crimes e que jamais podem ser comparados com o teu, se é que for provado algum crime. Queremos você inteiro, você mesmo, jogador de futebol do Brasil que um dia esteve na arena e deu o melhor de si. Não tiveste muita sorte, Edinho. Mas a sorte há de te sorrir novamente, porque tiveste a grandeza de ser humano, arriscaste teu pescoço quando ninguém dava nada por tua biografia. Deverias ser aplaudido só por este gesto de coragem. Mas minaram tua auto-estima e agora falamos palavras sem força. Que a poesia te abrace, cidadão brasileiro. Que mostres quem és de verdade, um coração vasto neste deserto que nos afoga.
7 de junho de 2005
SALVAÇÃO
SALVAÇÃO
Nei Duclós
Estar a salvo
Não é se salvar
Como um navegador
Que vai até onde dá
Você tem que ser livre
Para o que pintar
Nenhuma pessoa é lugar de repouso
Juntos chegaremos lá
(Do livro Outubro, 1975)
5 de junho de 2005
FOUCAULT NOS PÉS DE ROBINHO
A intenção é o segredo de Robinho. Ele pedala em cima da bola para ocultar seus verdadeiros propósitos, mascarar a vontade que direciona a jogada, impedir que o adversário decifre o que vai fazer. Isso evita que o outro leia e entenda a sua linguagem (se encararmos o futebol como um acordo de signos articulados). É o que dá ler Foucault na mesma tarde em que a Seleção brasileira faz quatro a um contra o Paraguai. Em As palavras e as coisas (que viajou da nossa biblioteca em São Paulo para o sítio do Capivari pelas mãos de daniduc), o texto de Foucault apresenta a palavra proposição (e não intenção) como o motor da criação da linguagem, que faz dela uma representação (ordenada pela gramática) da representação (os sinais que surgem pela ação da natureza e do corpo humano). Ou seja, o segredo não está no drible, o gesto reconhecido por todos, mas naquilo que faz do gesto um relacionamento de significados. As regras (o futebol) já estão postas, a identidade (o futebol brasileiro) já está consolidada, o estilo (a maneira de jogar) reconhecido, mas cada jogo é a possibilidade de gerar o discurso (o conjunto de ações criado em campo) por meio da intenção e levá-lo para o infinito. Robinho esconde de quem o enfrenta o tipo de lance que vai escolher ou inventar. Esconde o seu discurso. Ele sabe que a bola não está no centro da trama, nem o drible, mas o raciocínio, rápido como a luz.
BLOQUEIO- A solução está em conseguir ler o que o adversário escreve. Se for Roberto Carlos que vai bater na bola, a leitura é fácil: ele vai chutar na barreira ou para fora. Com Ronaldinho Gaúcho ou mesmo com o Rogério, do São Paulo, existe um segredo: a bola ocupa a região não visível para ser colocada. Lá, nesse espaço irreconhecível, é que acontece o gol. Não é porque a bola caia em folha seca ou o goleiro não a alcance. Simplesmente é porque o espaço criado pelo toque do artilheiro não existia um segundo antes de acontecer. Esse espaço se revela quando, em pleno vôo, a bola escolhe o lugar impossível de entrar e aí encontra o canal que a leva para as redes. Vocação, talento e conhecimento realizam a obra. Um dos muitos recursos foi reconhecido por Galvão Bueno: Robinho deu um passe típico de futebol de areia, levantando a bola por indução, com o pé, para o centro da área. Ronaldinho tem um acervo igualmente significativo. Ele consegue passar por três porque veio do futebol concentrado, o de salão, onde há menos espaço e, portanto, mais exigências para furar o bloqueio. Traz a bola com a sola para si, mas solta em seguida. Com o outro pé desvia-se da intenção do adversário em desarmá-lo. Joga todo o corpo para um lado enquanto o pé procura outros caminhos, procurando se desvencilhar de uma rede. Rola novamente a bola e bate em diagonal para trás, de calcanhar, nos pés do companheiro, como fez num jogo pelo Barcelona.
GARRINCHA - Garrincha pode nos ajudar a entender melhor esse embrulho. Há um texto clássico de Armando Nogueira que descreve o drible, sempre o mesmo, do grande craque, que sai invariavelmente para a direita. Todos sabem que ele vai sair por ali, escreve Nogueira, e é exatamente isso que acontece. Significa que o drible não importa, o que vale é a quantidade de intenções que Garrincha projeta na jogada. Ele tinha uma maneira única de fazer isso. Fica parado, por exemplo, fingindo que a iniciativa deveria ser do adversário, já que jogo é movimento, não imobilidade. Isso já desconcerta o outro. Este, que esperava o arranque do artilheiro, fica confuso quando vê Garrincha ficar imóvel. Como o gênio está um pouco longe do objeto de desejo, há também a intenção de fazer crer que existe disponibilidade, parece o velho pega-pega: quem chega primeiro? Mas o adversário sabe quem Garrincha é, e também pára. Então Garrincha imita os gestos de um arranque como quem vai sair jogando. Isso gera uma dúvida no oponente, pois se Garrincha se mexeu, e rápido como é, poderá fatalmente driblá-lo. Então o adversário coloca também todo o movimento para cima do craque. Mas Garrincha, depois de se retorcer todo fingindo movimento, pára novamente. Volta-se ao início da jogada. A idéia é confundir o outro. O craque então se aproxima novamente e toca levemente com o pé, quase não tirando a bola do lugar (isso desfoca o olhar do adversário, que presta atenção no que não importa, nos gestos de Garrincha). O que está explícito é a intenção (falsa) do jogador de sair dominando por algum lugar (mas essa decisão ainda não foi tomada, é preciso aguardar o adversário batido). O outro então não agüenta mais e cai em cima dele. Está derrotado. Garrincha já fez o serviço. Não deixou que decifrassem sua linguagem, entendessem sua intenção. Aí é só sair pela direita e reencontrar a glória.
RETORNO - Meu amigo de décadas, e jornalista de primeiro time, Clovis Heberle publica primoroso texto sobre José Lutezemberg. Vale a pena ler.
4 de junho de 2005
SITE URGENTE
Por motivos que só as grandes corporações que dominam a Internet podem explicar, mas não explicam, começou a dar erro na página dos sites abrigados no portal Consciencia. A solução é acessar diretamente o meu site pelo seguinte endereço: http://consciencia.cybershark.net/neiduclos/
Nem sempre dá erro, depende das microsofts, brasistelecom ou telefonicas. Há meses os responsáveis pelo Consciencia e seu servidor (ou provedor, nunca sei a diferença) Cybershark estão tentando solucionar, mas do outro lado da linha só se encontra gerundismo: vamos estar solucionando, essas coisas. É sempre assim. É difícil encontrar soluções definitivas, apenas provisórias. Enquanto isso, vamos em frente.
3 de junho de 2005
A CRAVADA DE "OS CORAÇÕES FUTURISTAS"
O ROMANCE OCULTO BATE NA CELA
Nei Duclós
A literatura é uma luz sobre os próprios limites. Não os limites do escritor, mas a da arte que não faz concessões, que não se dá o luxo das aparências, e é trabalhada longe do que sustenta uma criatura, os sentimentos, especialmente a piedade. É a única forma de não trair sua matéria-prima, o humano em queda, a maldição do existir que leva sempre a um único desenlace. Produzir literatura é assumir a consciência de que a humanidade, a qual se dedica, não é um jogo de armar que pode ser recomposto pela palavra. É o que nos diz Urariano Mota em Os Corações Futuristas, um romance lançado em 1999 no Recife pela Editora Bagaço e que obteve pouca repercussão.
Como a crítica ainda não se manifestou, deixando assim espaço livre para uma análise que, por força das circunstâncias, não possui ainda espaço de interlocução com seus pares, arrisco dizer que este é o mais importante romance dos últimos vinte anos. O período não é escolhido para fazer sombra a autores consagrados, com obras igualmente significativas, mas para caracterizar o confronto desta obra com as artimanhas do sistema que hoje nos rege (com reflexos pesados na exclusão de autores). Pois os princípios instaurados pelo regime de 1964 (endividamento externo crescente, alinhamento total aos EUA, concentração de renda, manipulação da opinião pública e aumento explosivo da miséria e da violência) foram vitoriosos pelas armas entre 1969 e 1973 (período a que se refere a maior parte do romance) e estabeleceram-se, a partir de 1985, como instituição, legitimada por todas as correntes políticas.
O romance de Urariano, com uma trama que se estende até o final do século passado, é um dos livros que nos lembram o quanto ainda vivemos sob o tacão do autoritarismo, disfarçado agora numa representação, a democracia, que foi exigida nas ruas, mas serviu apenas de pretexto para o continuísmo. Diante de tão completa derrota, a literatura volta-se para a porta da caverna onde reside. Lá, procura vislumbrar o clarão filtrado pelo tempo, que poderá dar alguma pista sobre o que realmente acontece no Brasil agora destruído na armadilha onde foi apanhado. Estamos presos, mas algo raspa a parede da cela pelo lado de fora. Antes de nos dar esperança, esse ruído nos avisa onde estamos e nos pergunta porque continuamos confinados.
Por que Os corações futuristas é importante? Longe das comparações entre talentos ou protagonistas literários, Urariano Mota assume seu posto de autor pelo mergulho (por ter escolhido o mais alto penhasco de onde se atira), pelo vôo (porque instaura a morada completa, ética e filosófica, de personalidades condenadas ao esquecimento) e pelo fôlego (por encontrar oxigênio no sufoco que permanece). Faz isso sem jamais pagar o tributo ao anedótico, ou ao regional ou mesmo à nacionalidade (porque é de outra têmpera o fogo de que se alimenta), tentações a que os escritores brasileiros costumam deixar-se levar para romper o cerco da condenação do ofício. Urariano não deixa-se enlear pela História (esse fragmento nobre da Memória), nem pelo espetáculo (as baladas do leitor em busca de enredos fáceis), nem pelo circo de vaidades (o autor sendo festejado pelo que aparenta). Ele procura outro caminho, mais árduo, ao resgatar a missão fundadora da literatura. Não é outro o motivo de se apontar o narrador do livro como o personagem mais poderoso, já que tem a exata noção de que não pode servir-se dos seres criados (Samuel, João, Carlos, Canhoto, Vevê) como se fossem uma pizza. Esse fundamento não se entrega à mediunidade, o deixar-se levar pelas caricaturas e pelas cenas que saltam aos olhos de um escriba quando ele se mete a estocar as feridas do tempo.
Urariano não finge que não é um criador, que está apenas contando uma história. Ele posta-se no lugar sagrado a que aspirou, o de reger (para demonstrar que não existe partitura ignóbil quando escolhemos o humano, seja ele de onde for), o de construir (porque a arquitetura não é uma força da natureza, mas uma racionalidade) e o de desvelar (com o olhar cru do gado morto que, depois de perder a carcaça, mantém-se aceso como um fogo fátuo). Ele sabia onde estava se metendo, mas não tinha outra escolha. A ética é a pior das condenações. A ela o escritor de verdade submete-se e em seus braços frios entrega a sua vida.
AÇÃO - Vamos pegar a mais doce das armadilhas da literatura, a ação. O que chamam de ação é uma fuga pela porta dos fundos (e talvez seja por isso que há sempre tiroteio nas cozinhas nos filmes descartáveis). No lugar de ação, Urariano prefere relatar a condenação. Os jovens na faixa dos vinte anos na ditadura Médici estão condenados pelo que são (pobres, mulatos, negros) vivem (desemprego, exclusão social e econômica), mas não pela sua essência. O tutano de cada personagem, entretanto, não são suas leituras ou músicas favoritas. Mas sim a interação que fazem entre si, apesar das conversas datadas. Importa o que eles realmente sugerem ao narrador, que tateia o tempo todo (e que nessa pesquisa deixa um lastro luminoso para o leitor). A reflexão dos personagens em seus debates obedece à ética do autor: não podem deixar de ser superficiais num primeiro momento, mas tornam-se instrumentos para o que vai sendo aos poucos dilacerado no decorrer do livro. Quando já não existe mais perspectiva de refresco para a roda viva onde estão todos metidos, o romance chega ao núcleo do drama. No pipocar das primeiras execuções, estampadas nos jornais, a segunda parte do livro insurge-se contra o canto de sereia da primeira parte.
ORIGEM - A execução da menina que se declarava subversiva e do garoto que fazia o v da vitória para sentinelas armados, são a pólvora por onde se incendeia a obra. Não é ação, é impacto de bala. Não existe movimento quando já houve o desfecho. Não existe fuga se você perdeu a guerra dentro do seu coração. Não há saída quando a luz da entrada da caverna é puro veneno. A ação não se impõe pelo evento, mas pela constatação. Somos então responsáveis pela morte desses meninos, nós, os que não lutamos o suficiente e que continuamos de mãos amarradas? Construíram em nome deles toda uma gigantesca mentira feita de indenizações e palavras ocas como liberdade. Não há liberdade se você foi à luta mas voltou para jantar. Nem se você foi para o exílio e foi anistiado para apertar a mão dos tiranos. Ainda pulsa a vida que poderia ter sido e ela está em nós, como um cão feroz de olho na presa. Ao escritor cabe abraçar o que foi jogado fora, recuperar pela linguagem o que os tiros aniquilaram. Urariano foi tão fundo que não por acaso reencontra o fundador da língua na sua busca. Não que preste homenagem a Camões, mas traz dele os poemas que instauram esse clima de perdição e luta diante do mesmo destino que afoga os meninos torturados e mortos.
Mais uma vez, Urariano mantém no fio afiado da ética. É com essa língua herdada, que traz na origem o peso da maldição de estar vivo, que ele fala de Brasil e de Pernambuco. Mas nem por isso pode ser considerado um escritor confinado às fronteiras da nação, nem identificado de maneira ortodoxa com sua Recife, que neste romance salta aos olhos como um dragão vomitado pelas águas do rio. O escritor pertence a outro território. Nele, extrai o que nos incomoda, mas ao mesmo tempo pode nos salvar, desde que não viremos as costas para ele, nem o tratemos com o desdém dos fracos, os que não se entregam aos contemporâneos por preguiça ou vaidade. Ler Os Corações Futuristas é entender o que a literatura é capaz de fazer, neste tempo em que ela parecia perdida, como alguém muito querido que sai de nossas mãos e é levado pela correnteza.
RETORNO - O lançamento do livro de Delmar Marques será na Livraria Cultura de Porto Alegre, não na de São Paulo. Dia 10 de junho. Estarei lá.