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18 de junho de 2005
A ARTE DOS ENCAIXES
Rodrigo Schwarz é uma dessas surpresas que aportam na literatura com força total. O seu romance de estréia, A Ilha dos Cães, me foi enviado por ele e imediatamente tomou conta do tempo que inventamos para ler. Neste sábado, o Diário Catarinense publica no seu caderno de Cultura a resenha que fiz sobre o livro de Rodrigo, esse brasileiro invocado de Joinville que sente saudades de Porto Alegre, onde morou por algum tempo. Transcrevo a seguir o meu texto, que já está no site do jornal (precisa se cadastrar para ter acesso ao conteúdo).
Nei Duclós
O romance de estréia do joinvilense Rodrigo Schwarz, A Ilha dos Cães (Bertrand Brasil, 128 págs., R$ 23), se presta a várias metáforas. Podemos escolher duas. Uma está na cena de Os Fuzis, de Ruy Guerra, em que dois soldados de olhos vendados tentam recompor, cada um, a própria arma. Eles dispõem apenas de peças espalhadas sobre a mesa, que precisam ser identificadas pelo tato e encaixadas pela experiência. Prova de coragem: quem for mais rápido e eficiente pode apontar para o adversário. É um jogo mortal que, no livro, coloca frente a frente o autor e o leitor reais, e os autores fictícios entre si. Sobram, nesse jogo, como platéia virtual, os não-leitores imaginados, os que perderam a oportunidade de ler as narrativas, que se encaixam numa segunda metáfora: a da marioska, o jogo das bonecas russas de madeira, ocas por dentro e de tamanhos variados, em que a maior pode guardar as menores no seu interior.
A boneca maior é o embate entre a História canônica e a sua impossibilidade, aquela que poderia ter acontecido. Ou seja: no lugar do mundo definido pela hegemonia européia sobre as civilizações americanas, o romance propõe que os grandes descobrimentos fracassaram e os astecas conseguiram desenvolver seu império sem a interferência dos europeus. E no lugar de sir Richard Burton, o expedicionário das civilizações perdidas e das línguas desconhecidas, um Richard Burton que jamais chegou à Inglaterra depois que partiu de sua estadia em solo brasileiro, quando foi diplomata em Santos. Por determinação do autor, essa matriz é a vitória de uma ficção, a literária, que finge ser História, sobre a outra, a histórica, que finge ser definitiva.
É uma insurgência que tem apoio em especulações de alguns historiadores. Aqui, pelo exagero, poderia chocar, não fosse o desplante com que o autor aborda essa transgressão, num texto que escorre sem ser açúcar, e prende pela liberdade que inventa e não pelo esforço da verossimilhança. A segurança de Rodrigo permite até que ele use conceitos da História aceita, colocando assim, pelo uso da linguagem, as duas versões cara a cara, para que possamos identificá-las pelo avesso.
A segunda boneca encerra um naufrágio e o refúgio do herói numa ilha deserta. Robinson Crusoé é Burton, autor do livro que não encontrará leitores. Seu Sexta-feira é Nikolai, o marujo catarinense cego que ganhou esse nome russo pelo contato que o pai teve com os eslavos no porto de São Francisco. A tragédia de Burton é não ter nem em Nikolai um leitor. Consegue dele apenas a pior das manifestações, a crítica. A excessiva proximidade entre leitor e escritor leva à indiferença, jamais à possibilidade de um retorno gratificante. Mas não é pelo manuscrito que os dois acabam se reconciliando, e sim pela conversa, quando se vêem a braços com a própria precariedade, que os identifica. Rodrigo, aqui, aponta para uma celebração: a de que um escritor pode chegar ao próximo não no território do livro, mas por meio do livro, usado, involuntariamente, como isca para a convivência. O que vale não é a literatura, mas a sobrevivência. Não se trata de papel, mas de humanidade.
As cascas do jogo descem ainda em novas camadas. Há uma herança, o livro inacabado de um guerreiro viking, que aportou no império asteca de Montezuma pela derrota e que guardava o segredo de uma civilização perdida no gelo e a técnica de uma arte, a de fazer barcos que cruzassem o mar. O calhamaço é encontrado por Nikolai, o cego, e apropriado por Burton. Este, dedica-se a contar a história de um escriba a serviço de Montezuma, que teria vindo até a ilha para resgatar a rainha caída em desgraça e também para escrever um livro. Os livros que se superpõem na marioska são apenas fragmentos e servem como as peças da arma desmontada, que precisam ser recompostas pela leitura que os personagens fazem entre si, reflexo da leitura mais à tona, a que fazemos do livro de Rodrigo.
Schwarz reporta o desespero do escritor, que precisa criar sem pensar em quem lê, como ato último, sabendo que vai naufragar na próxima temporada, quando o mundo lá fora continuar ignorando a sua arte. É o delírio comum de todo escritor brasileiro, à mercê das tempestades do mercado editorial, sem a sintonia com um ambiente que deveria lhe prestar reconhecimento, e que acaba apenas lhe dedicando hostilidade. Seu truque para romper esse cerco foi obedecer ao que parece ser uma tradição literária, mas é pura invenção. O tiro de misericórdia permitido pela solução do enigma está sempre a cargo do leitor, já que o autor dispôs as peças, montou-as do seu jeito e abandonou a mesa. Ele aguarda o desfecho de quem lê, que tanto pode atingir quem escreve quanto enriquecê-lo.
O autor permite que o leitor trabalhe a obra como se este fosse um virtuose, que produza o som sugerido pelos gestos dele, o maestro. A ousadia poderia levar a uma combinação cerebral de recursos literários, mas felizmente ela se encaixa na linhagem da modernidade inaugurada por Cervantes, o da aventura que, em vez de vestir, desmonta, em que os leitores fazem parte da obra, já que não conseguem despregar os olhos do que está escrito. Tanto isso é verdade que não nos damos conta do território que nos circunda. Acreditamos piamente ser uma ilha, mas tudo indica que ela possa ser outra coisa. Assim como acreditamos ser esse um romance, mas pode ser apenas uma demonstração da arte de encaixes ao ar livre, numa rua qualquer, de um mundo que perdeu o rosto, mas que, diante do artífice, poderá se reencontrar.
No momento em que estamos prontos para zarpar dali, quando fechamos a última página, notamos que algo se mexe embaixo dos nossos pés. É aquilo que chamamos terra, mas que se revela um monstro. Essa surpresa nos leva para outra impossibilidade: talvez não seja o nosso destino descobrir totalmente o que seja este livro. O que vale é a viagem e os mistérios que Rodrigo Schwarz nos obriga a decifrar.
RETORNO - 1. Urariano Mota faz um mergulho minucioso em Don Quijote, de Cervantes, e as armadilhas da tradução do romance maior. Uma aula sobre criação literária, que esclarece os leitores e os convida para uma trilha na tarefa de reiventar mundos por meio da palavra. 2. A cavalgada que o menino de 14 anos faz pelo litoral gaúcho é um dos momentos maiores da atual literatura brasileira. Por Delmar Marques, em Os Minuanos, o Resgate das Indias Sagradas. 3. Agradeço o retorno de todos os que me enviaram e-mails e postaram comentários sobre a tradução dos meus poemas por Flavia Rocha e publicada na revista americana Rattapallax, de Nova York, e os 30 anos da primeira e ainda única edição de Outubro. O bom foi ter de volta os uruguaianenses Rubens Montardo Junior e Anderson Petroceli, que estavam meio quietos, possivelmente preparando alguma tocaia boa neste mundão de Deus. 4. Continuam chegando pedidos para eu enviar o poema Salvação, meu maior sucesso na Internet.
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