Blog de Nei Duclós. Jornalismo. Poesia. Literatura. Televisão. Cinema. Crítica. Livros. Cultura. Política. Esportes. História.
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31 de março de 2004
HOMENS DE PALAVRA
A ditadura faz quarenta anos e seus crimes não serão esquecidos. Mas é preciso que o tempo nos ensine alguma coisa. Uma dessas lições é o resgate da nossa confiança nas Forças Armadas brasileiras. O golpe não foi apenas militar. Foi também civil. Quem deu sustentação foram os governadores (e os eleitores) de direita do Rio, Minas, São Paulo e Rio Grande do Sul. O que precisamos ter em mente nesta data, de 31 para primeiro, é que os militares brasileiros cumpriram a sua palavra e nunca mais ameaçaram voltar ao poder.
MEMÓRIA – Assim como não podemos identificar a Alemanha com o nazismo – que foi um momento da Alemanha e não sua totalidade institucional em todos os tempos – não podemos ficar repisando sobre a nefasta presença militar na política brasileira a partir de 64, a não ser como objeto de estudo, nunca como revanchismo. Foi uma parte delas que derrubou o presidente, haja vista a quantidade de punições contra quadros que não concordaram com o movimento. Já passou tempo demais (desde 1985) que os militares saíram do Planalto. É hora portanto de assestar o tiroteio contra os verdadeiros inimigos: os que continuam mandando no país com velhos instrumentos, mantendo a nação sob a tacão da economia colonial e da corrupção política. Com o fim do período de presidentes militares, as Forças Armadas reforçaram sua identidade de instituição sólida de defesa da Pátria. Tive a oportunidade de debater com historiadores militares na USP. Não existem pessoas mais gentis, com aquela elegância que o ascetismo promove em gente determinada. Há hoje um apelo dos historiadores militares para que acessem seus arquivos, seus acervos e contem suas histórias. É claro que os dois últimos presidentes civis, FHC e Lula, mantiveram sob cerco cerrado importantes documentos da nossa História, mas isso não é culpa dos militares. Senti que eles lamentam a campanha maciça contra o heroismo nacional, o que considero uma tragédia sem fim. Os cidadãos do país precisam sentir orgulho dos seus heróis. Quem arriscou a vida merece no mínimo respeito. A par disso, há uma gigantesca ignorância sobre o Brasil em guerra. Nada se sabe sobre a guerra da Independência, por exemplo, com poucas exceções. Até hoje é costume abraçar a velha teoria da ruptura amigável com Portugal, que o digam os 400 bravos que tombaram numa batalha do Nordeste e outras centenas que morreram lutando na Bahia, Pernambuco e Maranhão, como conta o historiador José Honório Rodrigues na sua coleção de livros sobre a Independência.
FERIDAS - Mas isso não é nada. Pouco se sabe sobre a revolução de 1924, e até hoje não houve um evento de congraçamento pós-guerra (como aconteceu entre japoneses e americanos) entre paulistas e gaúchos, que se mataram mutuamente em 1932. Ass feridas estão ocultas, mas abertas, e isso deve-se à falta de interesse nos estudos de História, sempre minados pelo preconceito, pelo comentário ligeiro. Vi esses dias um eminente professor de jornalismo dizer na televisão que em 1930 não houve sangue. E os miolos na calçada em frente ao Quartel General em Porto Alegre no ataque feito por Flores da Cunha e Oswaldo Aranha com meia dúzia de guardas municipais? E o ataque de lança-chamas de Gois Monteiro sobre um quartel legalista naquele 3 de outubro? E as mortes relatadas por meu pai, que participou das batalhas, aos 18 anos, no front do Paraná ("falei para o soldado, te abaixa, mas ele continuou atirando, de pé, na trincheira; acabou tombando com um tiro na testa" contava ele)? Gois Monteiro narra com detalhes a estratégia e o desenvolvimento da revolução num livro pouco conhecido sobre 1930. Li no Instituto de Estudos Brasileiros da USP. O Brasil esteve sempre em guerra e as Forças Armadas desempenharam um papel fundamental nisso. Não é apenas Canudos e Contestado. É o bombardeio de São Paulo, Manaus, Salvador. Não é apenas a revolta da Chibata, é 1922, a sangüeira de 1893 a 95. Não é apenas o conflito de rua, são os milhares de mortos no campo, numa guerra sem fim. Para possuir um território desse tamanho, que equivale a uma porção gigantesca do planeta, o Brasil lutou contra espanhóis, franceses, holandeses. Os brasileiros lutaram contra tudo e todos e entre si. Continuam em guerra. O golpe de 64 é um detalhe importante porque nos atingiu diretamente. Mas essa data faz parte de um longo processo, que precisa ser estudado com o espírito da anistia e a profundadidade que merece.
LANÇAMENTO - Por que então o lançamento de cinco livros neste primeiro de abril na Fnac de Pinheiros ? Para celebrar o que a memória e a literatura estão fazendo em relação ao período inaugurado em 64. É para participar da reflexão sobre esse período que tomou conta das nossas vidas. É para expressar o que vivemos e sentimos em relação à repressão, à ditadura. E não para retaliar quem quer que seja. Pois o Brasil amadureceu e os homens de palavra continuam entre nós. Lembro as paradas militares em Uruguaiana: garbo, orgulho, firmeza. Uma nação precisa dos seus exércitos. E das pessoas vocacionadas para a luta, dentro das instituições nacionais.
30 de março de 2004
A ESQUERDA DA AMÉRICA
Como a esquerda tradicional agora participa do banquete do poder, sobrou para a imprensa americana e inglesa gerarem os principais críticos do império global. Aqui, reproduzo dois textos. Um trecho do prólogo de Michael Moore para a edição brasileira de Cara, cadê o meu país, que está sendo lançado neste fim de mês, e outro do capítulo brasileiro de A melhor democracia que o dinheiro pode comprar, de Greg Palast. A seleção dos trechos obedece ao link que os dois tem com o Brasil. Ambos os lançamentos são da W11 Editores.
GÂNGSTERS – “Eu venho aqui para lhes dizer que não estou sozinho, e que na verdade estou prensado no meio dessa nova maioria americana. Dezenas de milhões de cidadãos pensam como eu penso e vice-versa. Acontece que vocês não ouvem falar neles – muito menos pela imprensa. Mas eles estão aí – e sua ira apenas começa a emergir à superfície. O que eu faço é apenas continuar ajudando na tarefa de perfurar essa camada, de forma que a raiva emergente desses milhões possa jorrar poderosa, como um gêiser de ação democrática. É compreensível que o Brasil e o resto do mundo pirem com o comportamento dos Estados Unidos da América. Vocês têm razão para tal. A turma no poder aqui é pra lá de Deus me livre. Tudo que vocês têm a fazer é perguntar a si mesmos: “Se esses gangsters são capazes de roubar uma eleição, do que mais eles não seriam capazes de fazer?”. Eu só digo o seguinte: nada vai detê-los na destruição do que estiver no seu caminho, especialmente se eles estiverem no caminho de fazer mais uma graninha. E eles vão castigar vocês, sejam aliados ou não, se vocês não se ajoelharem e baixarem a cabeça à passagem deles, em marcha para a próxima troca da guarda do poder (preferivelmente, o poder de uma nação que possua uns bons e lucrativos lençóis de petróleo, obrigado).
Tudo isso vai acabar por levá-los – e a nós – à ruína, é claro. Eu acho que a maioria dos americanos, por uma estreita margem, se dá conta, em algum ponto de suas entranhas, dessa situação dramática. Eles estão apenas miseravelmente perdidos, em parte por uma forçosa ignorância que começa na escola, onde eles aprendem algo próximo a nada sobre o restante do mundo, e que continua ao longo de todas as suas vidas adultas, servidas por uma mídia que eliminou qualquer traço de notícias estrangeiras que não tenham algo a ver com os Estados Unidos.
Que nada saibamos respeito de vocês deve ser a coisa mais assustadora do mundo a nosso respeito. A maioria de nós não consegue localizar vocês no mapa – e, pior, também não conseguimos localizar nosso inimigo. De acordo com uma pesquisa recente, 85% dos americanos adultos com idades entre 18 e 25 anos não conseguem achar o Iraque em um mapa. Eu acho que o primeiro parágrafo do código de leis internacionais deveria ser o seguinte: se um povo não consegue encontrar o seu inimigo sobre o globo terrestre, ele não tem permissão para bombardeá-lo” (Michael Moore).
MERCADO – “Sabendo muito bem que a moeda seria destroçada logo depois da eleição de FHC, o Tesouro dos Estados Unidos garantiu que os bancos americanos conseguissem tirar seu dinheiro do país em condições favoráveis. Entre julho de 2002 e a posse em janeiro do ano seguinte, as reservas em dólar do Brasil caíram de 70 bilhões de dólares para 26 bilhões de dólares, um sinal de que os banqueiros pegaram seu dinheiro e fugiram. Mas a moeda permaneceu em alta antes da eleição porque os Estados Unidos deixaram clara sua intenção de substituir as reservas perdidas por um pacote de empréstimos do FMI. {...]
O objetivo desta história de privatização é esclarecer os detalhes sórdidos, raramente relatados, do que o Banco Mundial chama de “criar um ambiente amigo do mercado”. As condições dessa liquidação de ativos brasileiros são ditadas por um volumoso documento da consultoria americana Coopers & Lybrand (hoje chamada PriceWaterhouseCoopers). Enquanto o termo “mercado” é borrifado por todo o texto, o projeto é feudal e não capitalista. A Coopers divide a infra-estrutura vendável do país em monopólios legalmente aceitáveis, destinados a garantir superlucros aos novos donos, na maioria estrangeiros, sem empecilhos do controle do governo ou da concorrência. Ele tem como modelo o sistema medieval de “arrendamento fiscal”, em que, por um único pagamento, os reis permitiam que coletores de impostos limpassem os camponeses. Os termos da privatização beneficiaram outros clientes da Coopers, as mesmas companhias que faziam ofertas pelos ativos brasileiros.” (Greg Palast).
RETORNO - Quinta-feira, primeiro de abril, é dia. Todos lá, para "aquele abraço, o mais forte que você pode suportar", como diria Gilberto Gil no tempo em que não estava no poder. Fnac Pinheiros, a partir das 19 horas.
28 de março de 2004
A FORMAÇÃO DE CELSO FURTADO
Maria da Conceição Tavares citou, neste domingo, na Folha, o Tomo II da obra autobiográfica de Celso Furtado. O título é “A fantasia desfeita” sobre 64. Tenho em casa. Impressionante a introdução, em que fala da sua formação. Filho de juiz honesto, o genial brasileiro traça sua invejável trajetória intelectual, que parte da biblioteca da família e alcança o patamar que deveria guindá-lo ao nosso primeiro Nobel.
LIBERTAÇÃO - O texto citado acima foi escrito em 1972 em Paris, a pedido da Unesco. Celso Furtado conta como foi. Primeiro, a presença da violência na região onde nasceu, o Nordeste. Toda família estava obrigatoriamente engajada no sistema da violência, que tinha uma hierarquia política, do chefete próximo ao mandão acima dele, ao outro grandão com hegemonia no estado e finalmente ao bandidão maior, no centro da República. A incerteza e a brutalidade levavam o povo ao sobrenatural. Esse ambiente que não mudava nunca ajudou a formar no seu espírito a necessidade de libertar-se por meio de idéias-força, “que enquadram meu comportamento na ação e também minha atividade intelectual criadora”, segundo suas palavras. Outra vantagem que ele tirou das precariedades locais era a grande atividade intelectual entre estudantes, que não encontravam nos professores da província a necessária provocação. Esse auto-didatismo levou-o primeiro à paixão pela História antiga, onde se sobressai seu estudo aprofundado do latim, que “me afigurava a chave que me permitiria o acesso a uma cultura superior”. Depois de 64, quando sucatearam o ensino brasileiro, acabaram com o latim. Era considerado supérfluo para os planos entreguistas, que eliminaram o acesso dos estudantes às ferramentas principais do conhecimento. Mas voltemos ao obrigatório Celso Furtado. A partir daí ele fixou-se na literatura e chegou a publicar aos 25 anos um livro de contos. Para compreender suas influências (acontecidas no ginásio – ele é de 1915), Celso lembra “a grande efervescência intelectual que ocorre no período posterior à revolução de 30, a qual encerra a era de total predomínio da oligarquia cafeeira”. Trinta foi um movimento nacional de libertação, que envolveu todo o país. Lembro que uma vez entrevistei o grande folclorista Franklin Cascaes em Florianópolis e ele me sussurrou: “Em 30, todos os chefões, mandões, bandidos graúdos foram parar na cadeia”. Os inimigos gostam de dizer que 64 foi continuação de 30. Não foi. Foi o oposto: 30 liberta, 64 entrega. Claro que 30 desaguou mais tarde em ditadura, provocada por ambições e estratégias de Vargas e por erros dos seus adversários. Mas isso não quer dizer que as duas datas sejam gêmeas.
PLANEJAMENTO - Furtado começa sua formação mais pesada com o positivismo, onde se destaca a ligação do conhecimento com o progresso. Depois, chegou a vez de Marx, que o impressionou profundamente, pois provava ser possível transformar a sociedade estratificada e parada. Estudou atentamente O Capital e ao mesmo tempo tomou conhecimento , aos 17 anos, de Casa Grande & Senzala. Este livro não fez sua cabeça, mas colocou-o a par dos grandes avanços teóricos da época, revelando-lhe um instrumental novo de trabalho. Tudo isso na época do ginásio pós 30! Foi então para o Rio de Janeiro para a Universidade do Brasil. Entrou para a carreira pública e no terceiro ano da faculdade sua atenção desviou-se do Direito para a Administração. Nesse nicho, encantou-se com a teoria da organização. Celso Furtado, que reclama da ditadura Vargas, diz que as limitações confinaram o ambiente universitário ao extremo, o que teve um caráter libertatório. Os estudos da organização levaram-no então ao planejamento e daí para o estudo da sociologia: Weber, Tonnies, Han Freyer, Simmel. Com Keynes, compreendeu que toda decisão econômica envolve o exercício de uma forma de poder – inclui-se aí as empresas, com seus presidentes e diretores. Furtado entendeu muito cedo “o fenômeno da dependência econômica em sua natureza estrutural". Trabalhou no planejamento dos governos Kubistchek, Quadros e Goulart. O golpe de 64 expulsou-o do país. A Europa saiu ganhando. Não vou me estender mais. Leiam o Mestre. Nosso futuro primeiro Nobel, segundo Eduardo San Martin.
RETORNO - Os convites para o lançamento estão chegando! Daniel del Fiore, o grande produtor gráfico, criado nas máquinas da Gazeta de Pinheiros, que pertenceu ao seu pai, me telefona garantindo presença dia primeiro de abril na Fnac Pinheiros, a partir das 19 horas , quando lanço meu romance. Meu irmão Luís Carlos me liga de Florianópolis e me dá um abraço de irmão quase gêmeo. E meu irmão mais velho, Elo, que tem quatro páginas suas transcritas no romance - portanto, é co-autor - diz que estará lá. E Paulo Nogueira, nosso correspondente em Brasília, confirma também o recebimento do convite. Com ou sem convite, todos são meus convidados. Todos e todos os amigos de todos.
27 de março de 2004
QUARENTA ANOS DE DITADURA
Dia primeiro de abril é a data magna da transformação do país, quando o sonho do Brasil sofreu uma ruptura mortal e o golpe de 64 jogou a civilização atlântica de volta ao horror. Bem na minha hora, como dizíamos naquela época, bem no momento em que despertávamos para a vida e estávamos loucos para participar do jogo político, o que nos foi barrado de maneira brutal. Entramos então na clandestinidade, de onde até hoje não saímos.
TRÓPICO RUDE – Por que usei a expressão “de volta” acima? Porque acredito na belíssima transformação operada pela Revolução de 30, quando foi rompido o vínculo colonial e o Brasil nacionalista emergiu em plena crise das grandes potências. Foi a oportunidade totalmente aproveitada pela grande geração nascida no fim do século 19 e início do 20. Basta ver a quantidade de gênios que aflorou logo após, uma capacidade de gerar conhecimento e talento que só se esgotou quando enfim adentramos nos anos 70/80. Hoje vivemos o deserto. Precisaremos de vinte anos de democracia verdadeira, ou de governos que não entreguem o país de mão beijada, para que aflore novamente a diversidade que o Brasil viu nascer com Villa-Lobos, Tom Jobim, Sergio Buarque de Holanda, Manuel Bandeira, Drummond e tantos outros. É triste constatar que jamais teremos um outro Glauber ou Guimarães Rosa. A colônia que nos assombrou por quatro séculos sofreu, a partir da revolução de 30, um duro revés. Tudo voltou ao “normal” com 1964, quando a mediocridade vitoriosa desencadeou o terror. Hoje, faz-se o balanço dos anos duros da ditadura por meio da História, da sociologia e da literatura. O importante é não deixar-se contaminar pelo revanchismo. Nos romances que estão saindo agora e vão continuar indo para as livrarias ao longo do ano, o determinante é descobrir o que essa maturação à força nos trouxe, qual a experiência que isso semeou entre nós.
FANTASMAS - É por isso que no primeiro de abril, quinta feira (40 anos da Redentora), os cinco livros que a W11 Editores produziu vai mostrar o leque de contribuições dos escritores para essas descobertas. O fantasma de Luis Buñuel, de Maria José Silveira, que estará presente na Fnac Pinheiros, usa o mote da paixão pelo cinema para relatar a trajetória de uma geração que foi cortada ao meio principalmente a partir de 1968. As memórias de Paulo Francis sobre 64, intituladas Trinta anos esta noite, que foram lançadas originalmente em 1994, aprofundam-se nos bastidores do golpe, vividos pelo autor em pleno front, já que ele conhecia de perto os principais personagens do movimento, de um e de outro lado do balcão. Outro livro de Francis, Filhas do segundo sexo, também um relançamento, mostra como as mulheres do Brasil mudaram para sempre. São duas novelas, cada uma focando um tipo diferente de personagem feminino, que traçam o imaginário e os acontecimentos de mulheres que, de bonequinhas de luxo, transformaram-se em guerreiras.
TEM MAIS - O relançamento do belo romance de Roberto Freire, Cleo e Daniel, que também estará lá autografando seu livro, é um acontecimento importante. A atualidade do texto é impressionante. Freire conseguiu livrar-se das amarras ideológicas e obsessões da percepção da época. Com links profundos em clássicos da literatura, do romance pastoral grego a Shakespeare, Freire recria a loucura ambiente dos 60 em São Paulo, o que transformou esse livro num best-seller absoluto. Vale a pena revisitá-lo. Sem falar que Freire é um doce de pessoa, gentil e animado, que tem na gaveta mais livros, numa atividade sem fim. E ainda tem meu romance, Universo Baldio, que na primeira parte recria o início dos 70 e na segunda mergulha nas pirações do Brasil pretensamente democrático do novo século. Um cardápio que deu gosto de produzir em longos dias de trabalho (incluindo cada minuto do Carnaval) e que agora voa para os leitores.
26 de março de 2004
UM TRATADO DE MAU HUMOR
Enquanto aguardo a presença de todos na Fnac Pinheiros no dia primeiro de abril, a partir das 19 horas, para o lançamento de cinco livros, entre eles meu primeiro romance, Universo Baldio, todos pelo selo Francis da W11 Editores, vamos escutar o que diz o publicitário que encheu-se de tantas bobagens na linguagem. É um desabafo que já deve ser conhecido de muita gente, pois rola na Internet, mas merece também este registro.
Por Lula Vieira (publicitário)
ASPAS COM OS DEDINHOS - "Não me lembro direito, mas li numa revista, acho que na Carta Capital, um artigo levantando a hipótese de que todo o cara que tem mania de fazer aspas com os dedinhos quando faz uma ironia, é um chato. Num outro artigo alguém escreveu que achava que jamais tinha conhecido um restaurante de boa comida com garçons vestidos de coletinho vermelho. Joaquim Ferreira dos Santos, em "O Globo" de domingo, fala do seu profundo preconceito com quem usa a expressão "agregar valor". Eu posso jurar que toda mulher que anda permanentemente com uma garrafinha de água e fica mamando de segundo em segundo é uma chata. São preconceitos, eu sei. Mas cada vez mais a vida está confirmando estas conclusões. Um outro amigo meu jura que um dos maiores indícios de babaquice é usar o paletó nos ombros, sem os braços nas mangas. Por incrível que pareça, não consegui desmentir. Pode ser coincidência, mas até agora todo cara que eu me lembro de ter visto usando o paletó colocado sobre os ombros é muito babaca.
Já que estamos nessa onda, me responda uma coisa: você conhece algum natureba radical que tenha conversa agradável? O sujeito ou sujeita que adora uma granola, só come coisas orgânicas, faz cara de nojo à simples menção da palavra "carne", fica falando o tempo todo em vida saudável é seu ideal como companhia numa madrugada? Sei lá, não sei. Não consigo me lembrar de ninguém assim que tenha me despertado muita paixão. Eu ando detestando certos vícios de linguagem, do tipo "chegar junto", "superar limites", essas bobagens que lembram papo de concorrente a big brother. Mais uma vez repito: acho puro preconceito, idiossincrasia, mas essa rotulagem imediata é uma mania que a gente vai adquirindo pela vida e que pode explicar algumas antipatias gratuitas.
CHATICE - Tem gente que a gente não gosta logo de saída, sem saber direito por quê. Vai ver que transmite algum sintoma de chatice. Tom de voz de operador de telemarketing lendo o script na tela do computador e repetindo a cada cinco palavras a expressão "senhooorr" me irrita profundamente. Se algum dia eu matar alguém, existe imensa possibilidade de ser um flanelinha. Não posso ver um deles que o sangue sobe à cabeça. Deus que me perdoe, me livre e me guarde, mas tenho raiva menor do assaltante do que do cara que fica na frente do meu carro fazendo gestos desesperados tentando me ajudar em alguma manobra, como se tivesse comprado a rua e tivesse todo o direito de me cobrar pela vaga. Sei que estou ficando velho e ranzinza, mas o que se há de fazer? Não suporto especialista em motivação de pessoal que obrigue as pessoas a pagarem o mico de ficar segurando na mão do vizinho, com os olhos fechados e tentando receber "energia positiva".
Aliás, tenho convicção de que empresa que paga bons salários e tem uma boa e honesta política de pessoal não precisa contratar palestras de motivação para seus empregados. Eles se motivam com a grana no fim do mês e com a satisfação de trabalhar numa boa empresa.
Que me perdoem todos os palestrantes que estão ficando ricos percorrendo o país, mas eu acho que esse negócio de trocar fluidos me lembra putaria. E para terminar: existe qualquer esperança de encontrar vida inteligente numa criatura que se despede mandando um beijo no coração?"
RETORNO - 1. O generoso Jorge Freitas, gaúcho carioca, me enche de elogios e promete me apresentar para Nei Lopes, autor de um dos mais belos poemas da música popular, "Ao povo em forma de arte". É mais do que uma honra, é uma alegria. Imagino essa música cantada no seco, sem instrumentos, só com palmas e batidas no peito, com coreografia épica. É de chorar de tão bonita. E é uma aula de História. Professor Nei Lopes, poeta obrigatório.
2. Quem me enviou o texto de Lula Vieira, transcrito na edição de hoje, foi nosso correspondente em Brasília, o jornalista Paulo Nogueira, que tem uma agência de notícias informal, atualizada todos os dias.
23 de março de 2004
“UNIVERSO BALDIO” LEVANTA VÔO
Meu romance de estréia chega da gráfica e já começa a ser distribuído. Fiz atendimento especial para Uruguaiana, onde o livro pousará em poucos dias no Café com letras. “Universo baldio” é dividido em dois tempos: a gaveta (quando estive no front) e a emergência (quando voltei ao front). Nessa guerra particular, espero ter deixado a marca dos escritores que não têm outra saída senão contar tudo, com todas as letras. Como diria Paulo Francis, “todos vocês estão meu livro”.
O LANÇAMENTO - O mais completo profissional de comunicação do país, e texto maravilhoso, Wagner Carelli, é mais uma vez o responsável por esse abraço no escritor que ficou oculto por muitos anos. A W11 Editores, que ele dirige com a cabeça a mil e o coração a milhão, apostou em mim e colocou na roda as histórias que povoam minha vida e forçam a barra para vir à luz. Não vou falar mais nada sobre este livro. Espero agora o retorno dos contemporâneos, e o encontro no próximo dia primeiro de abril, na Fnac de Pinheiros, São Paulo (Avenida Pedroso de Moraes, 858, telefone (11) 4501 3000, a partir das 19 horas). O lançamento será junto a O Fantasma de Luis Buñuel, romance inédito de Maria José Silveira, e os relançamentos de Cleo e Daniel, de Roberto Freire, Trinta anos esta noite e Filhas do Segundo Sexo, de Paulo Francis. Primeiro de abril para lembrar a ruptura democrática e colocar na roda os livros que refletiram o vasto periodo de 1964 a 2004. Participei da produção de todos esses livros. É um privilégio estar ao lado de autores tão importantes, com suas obras imperdíveis.
PRÓXIMO PASSO - Tenho ainda um livro de poemas, o quarto, para lançar. Mas o que me assedia atualmente são os personagens de um novo livro. Talvez nosso militar Argeu, o Cabo Adão, fique restrito a este blog, talvez não. Quem sabe o que fará um guerreiro! Só tenho a dizer que, ao saber que o livro estava pronto, me desejou boa sorte e despareceu. Não consegui arrancar dele a promessa de que não iria laçar os renitentes que se recusarem a ir ao lançamento. Mas é fato que Cabo Adão é um homem de bem e jamais faria semelhante coisa. Serviu para me mostrar o quanto um escritor é dividido, entre a legalidade e a revolução, entre o pampa e a metrópole. O conflito, guerra suportável, é o que possuímos nesta vida que tem tudo para tornar-se insossa, se a gente não tomar rumo e investir no que realmente acreditamos. Metade do livro foi escrito em 2003, quando deixei o emprego onde fiquei dez anos. Foi uma decisão fundamental. Precisava me livrar dos medos e aportar onde estou agora, no miolo do furacão.
AMIGOS - Por muito tempo, cheguei a desacreditar na amizade. Longos anos de exílio interno me afastaram deles. Mas aos poucos os companheiros voltaram e pude então ver o quanto somos diferentes e por isso mesmo, devemos ficar próximos. A Internet ajudou a apertar esse abraço. O que vale, entretanto, é a conversa ao vivo, a sintonia humana que a tudo redime, especialmente estes anos todos em que estamos mergulhados em profunda crise do país que amamos – tanto, que chegamos a dizer que abrimos mão dele. Claro que não desistimos de nada. Não foi em vão a luta dos que vieram antes de nós, que construíram um país com as mãos, suor e sangue. Mas temos o direito de sermos indignados, inconformados, duros. Mesmo que a gente saiba, felizmente, rir de tudo, porque a alegria, todos sabem desde Oswald de Andrade, é a prova dos nove.
22 de março de 2004
RUMO AO RIO PINHEIROS
Cansados do sufoco no corredor do hotel da rua Aurora, saímos, o militar Argeu e eu, do centro de São Paulo a bordo de um caidíssimo Jardim Maria Luiza, que poderia nos deixar no Largo da Batata. De lá, rumaríamos para o rio Pinheiros, onde o ínclito personagem queria ver as margens daquilo que um dia foi um rio e hoje é alguma coisa perto do esgoto. Ele aproveitou a viagem para falar o que achava do “Doutor” Getúlio Vargas.
SALA E COZINHA - “O senhor sabia”, falei ao cabo Adão, que sentava ao meu lado, no fundo do despencado coletivo, sem que ninguém se desse conta da sua presença...”que pouco se sabe sobre essas guerras que ensangüentaram o país de 1893 a 1930? Por que será que acontece isso?” O brigadiano tocou a ponta do lenço branco num gesto típico e olhou para fora (o caos do barulho, calçadas pôdres, gente demolida, cansada de ter pressa).
- Lembro que eu voltava para casa e enfrentava o ponto de interrogação da família, que não entendia minha ausência por tantos meses. Precisava contar tudo em detalhes para tentar convencer mulher e filhos. Mas não adiantava. Já corria a versão de que não havia guerra, apenas escaramuças, coisas sem importância, invenção dos homens para ficar longe de casa e churrasquear de graça. Naquele tempo, a informação vinha a cavalo ou no máximo telegrama. O que pegava mesmo era o boca-a-boca. O pior é que eu vinha às vezes de uma batalha como a do Ibirapuitã, no Alegrete, em 1923, quando morreram pelo menos 200. O pasto ficou vermelho. Nem sei como escapei daquilo. A metralha do Lulu Aranha era imparcial: ceifava todo mundo. Aquilo foi a guerra. Vi atos de coragem que nunca mais se repetiram. O general Flores da Cunha dando uma carga de cavalaria em cima da ponte foi uma coisa tremenda. Se acham quie isso tudo foi um passeio, pior para os historiadores.
- Acho que estes são espécies de patrões dos fatos: só cuidam das grandes linahs e tendências, do atacado da história, da parte teórica, e deixam o varejão à mercê dos contadores de histórias das províncias. Ou se têm acesso às fontes, não lêem direito. Ao contrário dos ingleses, que cuidam de tudo. Para alguém falar de fábrica por lá, tem de sujar a mão de graxa. Aqui, não. Expulsam os fatos para a cozinha e ficam na sala falando asneira.
- O senhor tenha calma, disse o Cabo Adão. O senhor tem falado coisas sobre Getulio Vargas que nem sempre é verdade. O velho caudilho tinha seus méritos e um deles foi pacificar o Rio Grande. Juro que se não fosse ele eu tinha passado o Honório na faca.
MORTANDADE - Uma gargalhada ouviu-se lá na frente do ônibus.Lembrei meu encontro do Honório na Mooca, como está descrito no romance que lanço dia primeiro de abril. Seria ele?
- Mas o velho pagou pelos seus erros, que foram muitos. Confesso que fiquei impressionado quando ele driblou americanos, nazistas e fascistas, na época em que eles se dedicavam à mortandandade mútua. Mas ao mesmo tempo inventou um monte de novos coronéis, deu sopa para o azar. Acabou dando um tiro no coração, pois um guerreiro jamais deixa seu destino nas mãos alheias. Foi um ato de guerra o 24 de agosto de 1954. Meteu uma bala no peito para não deixar colocarem a mão nele. Homem de valor. Mas sua herança é pífia. Esse tal de Brizola é um trapalhão. Abraçou-se com tudo que é inimigo. É por isso que o teu trabalhismo é uma causa perdida.
Silenciei. Costumava ser um ouvido atento e uma língua afiada. Diante de uma fonte como aquela, nada tinha a dizer. Estava cansado demais.
- E aí, insistiu o cabo Adão (já estávamos perto do fim da linha). Do que trata a segunda parte do teu romance?
Falei a história do cara que estava aborrecido na metrópole e encontrou o fantasma de Honório. Cabo Adão não se impressionou muito. Contei mais detalhes. Ele ficou escutando. Tínhamos descido do ônibus e chegamos na ponte da Eusébio Matoso. Descemos até a beira do rio. Cabo Adão acocou-se e olhou para a água imunda.O cheiro era insuportável. De repente ameaçou levantar-se diante do ruflar de asas de uma garça. Ao mesmo tempo, seu ouvido captou, longe (vi pelo gesto brusco da cabeça) o tchibum de uma capivara.
- Tem ainda capincho e garça nesta joça, disse ele. Nem tudo está perdido.
21 de março de 2004
UMA LEITURA DIAGONAL
Autores de artigos fingem-se de mortos, como se não fizessem parte da guerra, e assumem a falsa isenção dos iluminados. Como aturá-los? Costumo fazer uma leitura diagonal, ou seja, que não me toma tempo desnecessário e me informa apenas sobre a posição real do batucador de teclas, que imagina o leitor como uma espécie de babaca emérito. É por isso que a mídia em geral acumula uma dívida de 10 bilhões de reais (como foi noticiado hoje na Folha). Todo mundo foge dela. Como estar tão endividada e teimar em continuar parecendo ser a rainha da cocada preta?
POPULISMO, DE NOVO – O historiador Boris Fausto aumenta hoje no Mais!, da Folha, a bolsa de calúnias contra Getúlio Vargas, colocando-o como "populista" (o conceito inventado pelos falsos intelectuais para empalmar o poder e entregar o país). A última que inventaram sobre o grande estadista teria sido apoiar os trabalhadores industriais e abandonar os do campo. Primeiro por ter sido, claro, latifundiário (!) e amigo dos grandes proprietários de terras. E segundo porque assim forçaria a migração das massas do campo para as cidades. Só uma cabeça sombria poderia pensar uma besteira dessas. A migração para as cidades já existia desde o início do século, atingindo grande proporções nos anos 20, como mostra qualquer manual de História. Getúlio já pegou a situação implantada. Fez o que um grande estadista faria: forçou a emergente elite industrial a obedecer aos direitos trabalhistas para que houvesse paz nas cidades lotadas (que desde as grandes greves lideradas pelos anarquistas, estavam em pé de guerra). Em troca, ele subsidiaria as fábricas. Todos os grandes empresários da época beberam nas águas getulistas, para depois trai-lo. E a elite industrial traiu porque, burramente, achava que poderia ganhar muito mais se voltasse aos velhos níveis da Republica Velha, quando homens, mulheres e crianças morriam dentro das indústrias com o rosto sujo de graxa e carvão, como atestam as fotos da época. Houve exceções. Teve gente que entendeu a lição, mesmo precariamente, pois sua visão de justiça social era favelizar perto da fábrica as moradias dos operários e não libertá-los através do salário justo e dos direitos assegurados.
TERRA E PAZ - Sobre os trabalhadores rurais: o regime getulista trouxe paz ao campo, situação que foi completamente desestruturada nos últimos anos, com a irresponsabilidade atual dos fazendeiros escravagistas e do MST, que cai em todas as armadilhas (como pregar a retomada da terra à força, como fez José Rainha num discurso que ei vi na TV) e não consegue fazer valer a justiça no campo. Antes de Getulio, as massas rurais estavam à mercê da barbárie, das guerras entre as elites rurais e políticas, sendo convocadas à força para a degola e a carnificina. Getulio acabou com o cangaço (quando lhe diziam que Lampião era um grande estrategista, ele gargalhava) e as revoluções regionais. Não conseguiu fazer tudo. Deixou um pouco para seus descendentes. Pois é o que vemos: o pouco que ele fez foi sucateado. Mas não basta: é preciso mentir diariamente sobre ele, sob o manto do cientificismo histórico.
FRAUDE - Outra barbaridade é comparar Getúlio a Perón, como se pudéssemos hoje comparar Lula a Chavez, ou mesmo Bush a Tony Blair. Só por viverem numa mesma época e exercerem o poder não quer dizer que sejam farinha do mesmo saco. Bush fraudou uma eleição, Tony Blair foi eleito pelo parlamento inglês, a primeira dermocracia do mundo. Si se identificam na cretinice não quer dizer que sejam idênticos. Mesma coisa entre Perón e Getúlio. O peronismo é um matriarcado de uma nação mal resolvida, que se acha a melhor do mundo e não passa de um país como qualquer outro. Tomar o poder em Buenos Aires é moleza. Tomou Buenos Aires, acabou-se a Argentina. Getulio comandou uma revolução complicada, saiu do extremo sul para chegar ao poder de um país continental. O Rio de Janeiro, capital que nunca deveria ter deixado de sê-la, caiu depois de um golpe militar (o 24 de outubro de 1930), quando então assumiu uma junta. Getúlio derrubou essa junta por meio de um emissário, Oswaldo Aranha, que chegou no Rio sozinho num teco-teco e peitou os poderes recém instalados. Claro que ele estava apoiado nas tropas aquarteladas em Itararé (a batalha que houve) e a coisa ia feder se a junta não abdicasse do poder. Se existe algo que identifique Getúlio e Perón é que eles foram soluções encontradas pelos seus países, que estavam exaustos das prisões das elites tradicionais, as mesmas que hoje dão as cartas. São rupturas e Argentina e Brasil tornaram-se, por um tempo, nações realmente independentes com eles (o Perón da segunda fase, com Isabelita, é outra história). Getúlio é a fúria da massa diante da incúria dos políticos tradicionais. Getúlio pagou toda a divida externa, implantou o parque industrial, especialmente depois que negociou com os americanos a siderúrgica Volta Redonda (a mesma que entregamos de volta, de graça), implantou os direitos trabalhistas, que já foram devidamente sucateados. Sob seu governo, o prestígio do Brasil chegou ao auge. Os que entregaram o país pagam hoje os analistas para acabar de vez com sua obra. Mas, “como braseiro dormido que os ventos da mudança vão reacendo”, para usar uma imagem de Leonel Brizola, o trabalhismo voltará para impedir a total entrega da soberania nacional a esses governos de merda que mandam no mundo, tiranizando inclusive seus próprios povos.
RETORNO – Tenho uma solução para a dívida da mídia: decretem falência. Ou melhor, declarem vitória e voltem para casa (como sugeriu alguém para os americanos entalados no Iraque) Deixem esse ofício para quem é do ramo e foi expulso pelos medíocres. Em pouco tempo, a "comunicação" (palavrinha que lotou) voltará a dar lucro. Uma zapeada rápida neste domingo nos canais abertos revela as personalidades enfocadas: Alexandre Pires, Wando (!), Lulu Santos. O que há com os programadores? Duvido que mangolões rebolando a genitália (a maldição do Tchan; até quando?) ou fingindo cantar seja algo que exista fora das tardes de domingo na TV aberta. Não admira que estejam falidos. Parece que existe um plano do BNDEs para salvá-los. Deixem afundar. Não se trata de exigir "qualidade" (mais uma palavrinha infernal). Mas apenas de tirar dos idiotas e mal intencionados a responsabilidade da programação.
20 de março de 2004
O ESPLENDOR DE CADA GERAÇÃO
A evolução não existe: cada pessoa parte do zero em direção ao seu destino. O que temos no acervo cultural é a soma do esplendor de cada geração. Uma jamais comparável a outra, formando, cada uma, realidades incomensuráveis. O que a humanidade produz circunscrita nos limites do tempo atinge ciclicamente o infinito. Nesse estágio, não existe superação à vista. É momento único, que encanta o futuro. É o que acontece com Candeia, mestre da música popular e nome, claro, fora do circuito atual da mediocridade midiática no poder.
DIA DE GRAÇA - O disco maior da música brasileira é Axé, de Antonio Candeia. Ali estão reunidas as linhagens mais poderosas do que o povo brasileiro já produziu. Com uma diferença fundamental: tudo, desde as músicas baseadas em bordões de rua, como Peixeiro Granfino (Bretas-Candeia) , passando pelos temas clássicos como a traição conjugal, até a sofisticada obra-prima Ao povo em forma de arte (Wilson Moreira e Nei Lopes), manifesta-se a denúncia, a conscientização, a indignação embalada no talento de mestre. Candeia usa a expressão do povo sofrido para apontar-lhe um rumo. Em Dia de graça,
ele chama a atenção para a ilusão do Carnaval, a necessidade de o povo se unir e se fortalecer para superar a miséria. “Aí, então, jamais tu voltarás ao barracão”. Com melodias inesquecíveis e letras primorosas como Pintura sem arte, ou o inacreditável Ouro desça do seu trono (com Paulo Portela), o mestre deixa um legado de grandeza sem sair da sua roda, sem abandonar o seu mundo, sem fazer a mínima concessão. Mas ele não se submete ao panfleto, apesar de bater o disco todo na injustiça. Por isso o disco desemboca no deboche total, no magnífico Beberrão (Aniceto do Império-Mulequinho), que tem rimas maravilhosas, como pode-se ouvir na sucessão de frases que pontuam o bordão “você já começa a beber”: no domingo de manhã/ com Manuel Bam-bam-bam/ não estás com a cuca sã/ vai te deitar no divã. Correndo junto, existem ainda outras jóias, como Vivo isolado do mundo (Alcides), que diz: “eu vivia/isolado do mundo/ eu era um vaganbundo/ sem ter um amor/ hoje em dia/ eu me regenerei/ sou um chefe de família/ com a mulher que eu amei”. E ainda Ouço uma voz (sobre texto de Nelson Amorim), Vem amenizar (com Waldir 59), Mil réis, Nova escola, O invocado (Casquinha), Maria Madalena da Portela (Aniceto do Império). Peça para ouvir Candeia. Ouça Candeia. O disco está também reproduzido na coleção Mestres da MPB, da Warner, projeto de Carlos Alberto Sion e Tárik de Souza e direção técnica de Sérgio Bittencourt. Está na minha casa há muitos anos. Vivo desse tipo de obra, dessa inspiração que nos alimenta, dessa base que segura o Brasil que jamais entenderemos o quanto é imenso.
QUILOMBO - A genial música que citei acima como obra-prima tem letra do professor Nei Lopes, compositor de primeiro time, intelectual do Brasil superior: “Quilombo/ pesquisou suas raízes/ dos momentos mais felizes/ da sua história singular/ e hoje/ vem mostrar sua pesquisa/ na ocasião precisa/ em forma de arte popular/ há mais/ há mais de 40 mil anos atrás...” Todo desfile de carnaval deveria ter uma representação dessa música. Já a imaginei de mil formas. É absolutamente impressionante. Quem não ouvir essa música em poucos dias me deve uma. Um pequeno perfil do grande xará, tirado da rede (http://www.samba-choro.com.br/artistas/neilopes): “Nei Lopes é autor e intérprete de música popular, nasceu no subúrbio de Irajá, Rio de Janeiro, RJ, em 9 de maio de 1942. Bacharel pela Faculdade Nacional de Direito da antiga Universidade do Brasil, no início dos anos 70 abandonou a recém-iniciada carreira de advogado para dedicar-se à música e à literatura. Compositor profissional desde 1972, notabilizou-se principalmente pela parceria com Wilson Moreira e pela obra gravada por quase todos os grandes intérpretes do samba tradicional. É escritor de vasta obra toda centrada na temática afro-brasileira e compreendendo ensaios como "O Samba, na Realidade" (1981), "Bantos, Malês e Identidade Negra" (1988), "O Negro no Rio de Janeiro e Sua Tradição Musical" (1992), "Zé Kéti, O Samba Sem Senhor" (2000), "Logunedé; santo menino que velho respeita"(2000), além de um "Dicionário Banto do Brasil" (1996) e um volume de poemas "Incursões sobre a Pele" , também de 1996, entre outras publicações. Desde 1995, Nei trabalha na elaboração da "Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana", sua obra mais ambiciosa, a qual contempla centenas de verbetes sobre o universo do samba e do choro.
QUINTANA PARA SEMPRE - Candeia, Nei Lopes: insuperáveis. E geração aqui nada tem a ver com idade. Tem a ver com convívio, com o verbo compartilhar: repartir o privilégio de termos, numa mesma época, a nação, a terra, a música, a poesia. Sem isso, nada somos. Sobre evolução, lembro Mario Quintana. Ele tinha um baú cheio de poemas. Tiraram apenas os sonetos para fazer seu primeiro livro. Depois, desencavaram os de verso livre. Os críticos tiveram uma iluminação: ele evoluiu! Ao que o insuperável poeta respondeu: “Jamais evoluí. Sempre fui eu mesmo.”
DIA DE GRAÇA - O disco maior da música brasileira é Axé, de Antonio Candeia. Ali estão reunidas as linhagens mais poderosas do que o povo brasileiro já produziu. Com uma diferença fundamental: tudo, desde as músicas baseadas em bordões de rua, como Peixeiro Granfino (Bretas-Candeia) , passando pelos temas clássicos como a traição conjugal, até a sofisticada obra-prima Ao povo em forma de arte (Wilson Moreira e Nei Lopes), manifesta-se a denúncia, a conscientização, a indignação embalada no talento de mestre. Candeia usa a expressão do povo sofrido para apontar-lhe um rumo. Em Dia de graça,
ele chama a atenção para a ilusão do Carnaval, a necessidade de o povo se unir e se fortalecer para superar a miséria. “Aí, então, jamais tu voltarás ao barracão”. Com melodias inesquecíveis e letras primorosas como Pintura sem arte, ou o inacreditável Ouro desça do seu trono (com Paulo Portela), o mestre deixa um legado de grandeza sem sair da sua roda, sem abandonar o seu mundo, sem fazer a mínima concessão. Mas ele não se submete ao panfleto, apesar de bater o disco todo na injustiça. Por isso o disco desemboca no deboche total, no magnífico Beberrão (Aniceto do Império-Mulequinho), que tem rimas maravilhosas, como pode-se ouvir na sucessão de frases que pontuam o bordão “você já começa a beber”: no domingo de manhã/ com Manuel Bam-bam-bam/ não estás com a cuca sã/ vai te deitar no divã. Correndo junto, existem ainda outras jóias, como Vivo isolado do mundo (Alcides), que diz: “eu vivia/isolado do mundo/ eu era um vaganbundo/ sem ter um amor/ hoje em dia/ eu me regenerei/ sou um chefe de família/ com a mulher que eu amei”. E ainda Ouço uma voz (sobre texto de Nelson Amorim), Vem amenizar (com Waldir 59), Mil réis, Nova escola, O invocado (Casquinha), Maria Madalena da Portela (Aniceto do Império). Peça para ouvir Candeia. Ouça Candeia. O disco está também reproduzido na coleção Mestres da MPB, da Warner, projeto de Carlos Alberto Sion e Tárik de Souza e direção técnica de Sérgio Bittencourt. Está na minha casa há muitos anos. Vivo desse tipo de obra, dessa inspiração que nos alimenta, dessa base que segura o Brasil que jamais entenderemos o quanto é imenso.
QUILOMBO - A genial música que citei acima como obra-prima tem letra do professor Nei Lopes, compositor de primeiro time, intelectual do Brasil superior: “Quilombo/ pesquisou suas raízes/ dos momentos mais felizes/ da sua história singular/ e hoje/ vem mostrar sua pesquisa/ na ocasião precisa/ em forma de arte popular/ há mais/ há mais de 40 mil anos atrás...” Todo desfile de carnaval deveria ter uma representação dessa música. Já a imaginei de mil formas. É absolutamente impressionante. Quem não ouvir essa música em poucos dias me deve uma. Um pequeno perfil do grande xará, tirado da rede (http://www.samba-choro.com.br/artistas/neilopes): “Nei Lopes é autor e intérprete de música popular, nasceu no subúrbio de Irajá, Rio de Janeiro, RJ, em 9 de maio de 1942. Bacharel pela Faculdade Nacional de Direito da antiga Universidade do Brasil, no início dos anos 70 abandonou a recém-iniciada carreira de advogado para dedicar-se à música e à literatura. Compositor profissional desde 1972, notabilizou-se principalmente pela parceria com Wilson Moreira e pela obra gravada por quase todos os grandes intérpretes do samba tradicional. É escritor de vasta obra toda centrada na temática afro-brasileira e compreendendo ensaios como "O Samba, na Realidade" (1981), "Bantos, Malês e Identidade Negra" (1988), "O Negro no Rio de Janeiro e Sua Tradição Musical" (1992), "Zé Kéti, O Samba Sem Senhor" (2000), "Logunedé; santo menino que velho respeita"(2000), além de um "Dicionário Banto do Brasil" (1996) e um volume de poemas "Incursões sobre a Pele" , também de 1996, entre outras publicações. Desde 1995, Nei trabalha na elaboração da "Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana", sua obra mais ambiciosa, a qual contempla centenas de verbetes sobre o universo do samba e do choro.
QUINTANA PARA SEMPRE - Candeia, Nei Lopes: insuperáveis. E geração aqui nada tem a ver com idade. Tem a ver com convívio, com o verbo compartilhar: repartir o privilégio de termos, numa mesma época, a nação, a terra, a música, a poesia. Sem isso, nada somos. Sobre evolução, lembro Mario Quintana. Ele tinha um baú cheio de poemas. Tiraram apenas os sonetos para fazer seu primeiro livro. Depois, desencavaram os de verso livre. Os críticos tiveram uma iluminação: ele evoluiu! Ao que o insuperável poeta respondeu: “Jamais evoluí. Sempre fui eu mesmo.”
18 de março de 2004
O COTOVELO DE VIDRO
A casa era pequena, mas bem planejada por um oficial da Marinha. Os ventos podiam fazer escândalo na vizinhança, mas nossas portas não batiam. Copa e cozinha eram a mesma peça, e a sala um cotovelo todo ajanelado que dava para a praia de São José, cidade grudada a Florianópolis. Lá mergulhei mais uma vez na literatura, enquanto a família compartilhava esse trabalho e um espaço privilegiado de areia, mar e árvores que davam limões, ameixas e bananas.
LUA DE PRATA - Sentei em frente à Olivetti rodeado pela paisagem: pescador que embocava seu fino e comprido barco no rastro do sol recém nascido, lua grande de prata que subia, fazendo ruído silencioso de lua cheia. Resgatei o tempo em que estive perto dali dez anos antes, saído de Porto Alegre, quando me reuni com alguns amigos para dividir a mesma casa. O que não esperava era o papel que coube a cada um no texto, que saiu assim, de primeira, como dizem em Uruguaiana. As memórias tornaram-se apenas insumo e ponto de partida.Os personagens ganhararam vida própria e me conduziram para inúmeras revelações. Descobri nossa extrema precariedade, fruto de dupla exclusão. Primeiro, estávamos fora do mercado (isso em 1972, época em que acontecia a história, e também em 1981, quando escrevi aquele relato ficcional, o que diz tudo sobre a crise permanente que se abate sobre nossa profissão). Segundo, estávamos fora das decisões do centro do país. Praticamente fugimos para a ilha, nossa descoberta daquele tempo, mal imaginando que um dia aquilo iria virar moda, não só entre gaúchos, mas também entre paulistas, e agora, mais do que nunca, um imã para povos do mundo inteiro. A revelação maior foi deixar que cada personagem mostrasse a integridade específica de vidas diferentes da minha. Mesmo o personagem que é baseado em mim ganhou uma forma totalmente diversa do que eu imaginava. Isso significou um alívio para a carga que caía nas minhas costas. Por meio daquelas pessoas irreais descobri um pouco mais do que somos. Podem chamar de psicanálise, mas prefiro literatura mesmo. Naquele cotovelo de vidro, escrevi inteira a primeira parte do romance que lanço no próximo dia primeiro de abril, na Fnac de Pinheiros, junto com autores maravilhosos, como Maria José Silveira, Roberto Freire e Paulo Francis (in memoriam). A segunda parte do romance é outra história, embora pareça ser (talvez seja mesmo) a continuação da primeira.
SENTIDO - Cabo Adão ouviu meu relato acima na sua postura habitual, a de sentido. Fiquei curioso com a maneira cerimoniosa com que me tratava, como se me devesse algo.
- Por que o senhor é tão sério, Cabo Adão? E o que me intriga é que certamente é muito mais velho do que eu mas aparenta ter trinta anos no máximo.
O militar tinha colocado parte do seu rosto fora da sombra enquanto acendia outro palheiro, já na posição de descansar.
- Nós, da Brigada, somos preparados para tudo, disse. E tratamos todos com o maior respeito. Somos legalistas, por isso usamos o lenço branco. Defendemos o governo, seja quem for. Prefiro o tacão do Estado do que a degola das revoluções...
E me olhou, quase de maneira desafiadora. Seu rosto mulato quase escuro de índio de cabeça ovalada tinha no alto um curtíssimo pixaim bem cuidado. Sobrancelhas muito finas, boca firme, falava como quem emitia ordens, mas, paradoxo total, num tom de quem só obedecia.
- O senhor se sente em dívida comigo, cabo Adão?
- Devo favores ao seu tio que me salvou na guerra de um monte de ferimentos. E fui amigo do teu pai. Mas o que devo mesmo são as palavras que ouvi do teu tio no dia em que fui humilhado por um tenentinho lá no Rio de Janeiro.
Lembrei então da história que Waldemar Ortiz contava quando eu era pequeno. De que um anspeçada (aquele militar que fica entre o soldado e o cabo), por ser analfabeto, recebeu uma reprimenda no Rio, em plena revolução de 30, diante da tropa. Waldemar perfilhou-se e respondeu ao oficial. Disse o velho tio:
- Esse homem lutou comigo em quatro revoluções. Merece mais respeito. Na hora de matar, ninguém perguntou se sabia ler.
Isso foi dito, claro, depois que a tropa tinha dispersado, um frente ao outro. Mas Cabo Adão tinha escutado tudo.
- Quem é da sua família manda e não pede, disse cabo Adão.
Fez um longo silêncio, recolheu-se novamente para o canto. Eu estava cansado de ficar de pé naquele corredor, cercado por ruídos de elevador e teto velho.
- Não tem um lugar para a gente sentar e conversar? perguntei.
Cabo Adão apagou o palheiro num velho cinzeiro abandonado no canto. Acocou-se para fazer isso. Depois levantou-se, de cabeça erguida, como sempre:
- Vamos ficar de pé. Não é hora de descansar. Me conte agora sobre a segunda parte do romance, aquela em que aparece o caudilho.
Dito isso, olhou mais uma vez ao redor, como se estivesse escutando o barulho da espada do general Honório raspando algum andar acima, onde certamente se aquartelava a tocaia dos maragatos.
LUA DE PRATA - Sentei em frente à Olivetti rodeado pela paisagem: pescador que embocava seu fino e comprido barco no rastro do sol recém nascido, lua grande de prata que subia, fazendo ruído silencioso de lua cheia. Resgatei o tempo em que estive perto dali dez anos antes, saído de Porto Alegre, quando me reuni com alguns amigos para dividir a mesma casa. O que não esperava era o papel que coube a cada um no texto, que saiu assim, de primeira, como dizem em Uruguaiana. As memórias tornaram-se apenas insumo e ponto de partida.Os personagens ganhararam vida própria e me conduziram para inúmeras revelações. Descobri nossa extrema precariedade, fruto de dupla exclusão. Primeiro, estávamos fora do mercado (isso em 1972, época em que acontecia a história, e também em 1981, quando escrevi aquele relato ficcional, o que diz tudo sobre a crise permanente que se abate sobre nossa profissão). Segundo, estávamos fora das decisões do centro do país. Praticamente fugimos para a ilha, nossa descoberta daquele tempo, mal imaginando que um dia aquilo iria virar moda, não só entre gaúchos, mas também entre paulistas, e agora, mais do que nunca, um imã para povos do mundo inteiro. A revelação maior foi deixar que cada personagem mostrasse a integridade específica de vidas diferentes da minha. Mesmo o personagem que é baseado em mim ganhou uma forma totalmente diversa do que eu imaginava. Isso significou um alívio para a carga que caía nas minhas costas. Por meio daquelas pessoas irreais descobri um pouco mais do que somos. Podem chamar de psicanálise, mas prefiro literatura mesmo. Naquele cotovelo de vidro, escrevi inteira a primeira parte do romance que lanço no próximo dia primeiro de abril, na Fnac de Pinheiros, junto com autores maravilhosos, como Maria José Silveira, Roberto Freire e Paulo Francis (in memoriam). A segunda parte do romance é outra história, embora pareça ser (talvez seja mesmo) a continuação da primeira.
SENTIDO - Cabo Adão ouviu meu relato acima na sua postura habitual, a de sentido. Fiquei curioso com a maneira cerimoniosa com que me tratava, como se me devesse algo.
- Por que o senhor é tão sério, Cabo Adão? E o que me intriga é que certamente é muito mais velho do que eu mas aparenta ter trinta anos no máximo.
O militar tinha colocado parte do seu rosto fora da sombra enquanto acendia outro palheiro, já na posição de descansar.
- Nós, da Brigada, somos preparados para tudo, disse. E tratamos todos com o maior respeito. Somos legalistas, por isso usamos o lenço branco. Defendemos o governo, seja quem for. Prefiro o tacão do Estado do que a degola das revoluções...
E me olhou, quase de maneira desafiadora. Seu rosto mulato quase escuro de índio de cabeça ovalada tinha no alto um curtíssimo pixaim bem cuidado. Sobrancelhas muito finas, boca firme, falava como quem emitia ordens, mas, paradoxo total, num tom de quem só obedecia.
- O senhor se sente em dívida comigo, cabo Adão?
- Devo favores ao seu tio que me salvou na guerra de um monte de ferimentos. E fui amigo do teu pai. Mas o que devo mesmo são as palavras que ouvi do teu tio no dia em que fui humilhado por um tenentinho lá no Rio de Janeiro.
Lembrei então da história que Waldemar Ortiz contava quando eu era pequeno. De que um anspeçada (aquele militar que fica entre o soldado e o cabo), por ser analfabeto, recebeu uma reprimenda no Rio, em plena revolução de 30, diante da tropa. Waldemar perfilhou-se e respondeu ao oficial. Disse o velho tio:
- Esse homem lutou comigo em quatro revoluções. Merece mais respeito. Na hora de matar, ninguém perguntou se sabia ler.
Isso foi dito, claro, depois que a tropa tinha dispersado, um frente ao outro. Mas Cabo Adão tinha escutado tudo.
- Quem é da sua família manda e não pede, disse cabo Adão.
Fez um longo silêncio, recolheu-se novamente para o canto. Eu estava cansado de ficar de pé naquele corredor, cercado por ruídos de elevador e teto velho.
- Não tem um lugar para a gente sentar e conversar? perguntei.
Cabo Adão apagou o palheiro num velho cinzeiro abandonado no canto. Acocou-se para fazer isso. Depois levantou-se, de cabeça erguida, como sempre:
- Vamos ficar de pé. Não é hora de descansar. Me conte agora sobre a segunda parte do romance, aquela em que aparece o caudilho.
Dito isso, olhou mais uma vez ao redor, como se estivesse escutando o barulho da espada do general Honório raspando algum andar acima, onde certamente se aquartelava a tocaia dos maragatos.
13 de março de 2004
DIA DA POESIA
Dizem que poesia tem data, 14 de março. Como todo dia é dia de poema, vou dar um mergulho nesse ofício, só para marcar em cima, jogar duro, desarmar e driblar. Coisa de cultura guerreira.
TRAMANDAÍ – Peguei o Maria Fumaça às sete da manhã junto com um grupo de normalistas. Aos nove anos, viajei na carona da minha irmã e suas colegas de classe para desembocar em Porto Alegre no dia seguinte. De lá me levaram para Tramandaí, onde ficamos, uma parentada enorme, numa casa de madeira de apenas quatro peças, que tinha quintal com fundos para o rio do mesmo nome da cidade. Meus parentes fizeram suspense. Me levaram por meio das dunas – naquele tempo, 1957, as dunas estavam lá – e me fizeram subir pela mais alta dela. Foi aí, ao chegar no topo, que vi aquele monstro tomando conta da paisagem. Era um dia de vento e as ondas, altas e iradas, chocavam-se no ar e me desafiavam. O mar, lá, tem uma envergadura de 180 graus, já que no Rio Grande do Sul tudo é aberto, plano, transparente. Desci a duna correndo e me joguei, aos socos, no mar que eu não compreendia. Deixava subir a onda e salpicava-lhe um manotaço de punho fechado. Era a forma de demonstrar alegria, dizer que eu conhecia um novo amigo, que não me entregava assim de primeira, que precisava antes do rito de passagem, uma luta, uma briga, um enfrentamento qualquer. Depois descobri a espuma que se forma quando as águas beijam a areia. Cavei os mais fundos buracos. Fiquei preto, preto, preto. Curei então a asma que o inverno do pampa tinha me cultivado em infernais anos da primeira infância. E quando cheguei de novo no meu “escritório” (a mesa de estudos), fiz meu primeiro poema. “Deus fez o céu, fez a terra”, dizia o primeiro verso. Foi a criação do mundo por meio da poesia. Escrevia cada uma delas na máquina Smith Corona que mais tarde meu pai deu de presente. Teclava forte e o barulho das teclas entrava agudo no meu ouvido. Escudei a audição machucada com tufos de algodão. Fui crescendo por demais da conta e coloquei alguns livros embaixo da máquina (que tinha tipos manuscritos e ficava dentro de uma caixa especial) para não me curvar tanto. Meu irmão Luiz Carlos me via com algodão na orelha, debruçado sobre a máquina, escrevendo sem parar e lamentava: “Mas que cara neurótico”. Mais tarde, quando deixei a faculdade de engenharia para entrar no jornalismo, Luiz Carlos foi o único que saiu em minha defesa. Meu irmão quase gêmeo, com apenas 13 meses de diferença. Implicava comigo, mas sempre foi meu braço amigo.
PRAÇA – Estava eu e Marco Celso Viola colocando poemas em cartolina. Era 1969, o ano graça, segundo Marco Celso. Dizíamos: ei, vamos fazer mais deste, pois está vendendo melhor (cada cartolina com poema, pregada nas árvores da Praça da Alfândega, de Porto Alegre, custava um cruzeiro – e cada cruzeiro pagava um café da manhã completo). Luiz Carlos, que era alvo da nossa crítica ao capitalismo, pois nunca deu bola para nossas veleidades revolucionárias, nos flagrava: “Aí, então os ches guevaras estão pensando em dinheiro, quem diria”. E gargalhava. Já vi Luiz Carlos bravo, triste, impaciente, mas jamais de mau humor. Nada o abate, fortaleza que cruza o tempo. Na praça, juntava gente em frente aos poemas. Um velho vinha emocionado me falar de um poema meu sobre o crepúsculo (“o silêncio constrói sua varanda e eu me sento nela”). Era o auge do desconstrucionismo da linguagem, era moda bater na pobre da língua, bater na poesia a ferro frio. “Ponho minha camisa amarela e saio porta afora” gritava Marco Celso para o público. Nada tínhamos a ver com as modas. Éramos poetas de rua, vivíamos do que escrevíamos. “Somos os melhores”, garantia Marco Celso. Éramos mesmo: os melhores loucos da cidade. Fomos em direção ao abraço do que chamávamos “povo”. Nosso ídolo era Maiakovski e A plenos pulmões nosso poema favorito. Vi uma noite dessas uma atriz declamar esse poema na TV Cultura de São Paulo como quem brinca de roda. “Os cem tomos dos meus versos militantes”, dizia, sorrindo. Dá licença. Maiakoviski não pode ser tratado com frivolidade. Se alguém disser “caros camaradas futuros”, o primeiro verso do genial poema, precisa ficar de pé, usar o timbre mais bruto, gritar se for preciso. Revolução não é frescura.
RETORNO - Hoje foi dia de manutenção do cybershark.net, que administra o portal Consciencia, que por sua vez abriga o meu site (www.consciencia.org/neiduclos). daniduc encarregou-se pessoalmente da migração do servidor e nisso investiu seu sagrado domingo. daniduc, mito da informática free, querídissimo colega dos micreiros revolucionários do Gulib, e meu primogênito, rules.
O CABO ADÃO CONVIDA
Ainda existem telegramas. Recebi um ontem, que dizia: “cheguei procure hotel centro quarto 93”. Sem assinatura. Ou melhor, com um “pseudônimo”: Argeu Teodomiro Santiago, que é o verdadeiro nome do Cabo Adão. Gelei. O misterioso militar enfim tinha dado as caras. Ia ter de me explicar. Logo agora, perto do lançamento do meu romance.
SAFANÃO NO ELEVADOR - Arranjei duas horas para sair de onde estava. Como o trânsito ficou pior depois do Carnaval, decidi pegar um ônibus, senão iria gastar uma fortuna em taxi. Cruzei a ponte nova e desovei na rua Butantã, onde fiquei à mercê do barulho do motor (que ocupa lugar dentro do veículo, junto com os passageiros, uma solução da engenharia marota escravagista), e do calor infernal. Em 20 minutos cruzei a Faria Lima. Subi penosamente a Teodoro Sampaio e depois de uma légua de tempo, aportei na Consolação. Também estava tudo engarrafado. Só depois de uma hora e meia cheguei na rua Aurora, onde se hospedava aquele sujeito que eu citava tanto e que mal conhecia. Meu tempo já estava praticamente esgotado. Mas aquele encontro não podia ser adiado (não sei porquê, lembrei facão faiscando ao sol, barulho de rifle, canhoneio). Pisei na sujeira da calçada – a mesma de milhares de anos atrás – e me arrisquei na portaria do hotel barato, que despencava em tudo, inclusive no vetusto elevador movido a manivela e que ringia à menor aproximação. Subi até o novo andar, não sem antes levar um susto no sétimo, quando a pouca luz se foi e o elevador, movido a vapor, estacionou para sempre. Como estava munido de toda paciência do mundo, aguardei. Só depois notei que o bicho subiu dois andares quando tudo ainda estava escuro. Alguém puxava o dito pelo cangote. Desconfiei quem poderia ser.
LENÇO BRANCO - Mas a porta abriu e eu não enxergava ninguém. Acendi um fósforo depois de algumas tentativas frustradas, pois costumo guardar os palitos usados dentro da caixa. Fui queimando os dedos por um dos corredores, mas tive de voltar. Era no outro lado, o que dava para uma janela minúscula, gradeada, que lançava uma luz fosca do dia lá fora, abafado e com nuvens pesadas. Finalmente consegui que um dos últimos fósforos iluminasse o número 93, que estava torto, carcomido em seu metal de nenhuma categoria. Fui bater, mas uma chama atrás de mim chamou a atenção:
- 1893, disse uma aparição, que se confundia numa dobra do corredor. A guerra da degola!
- Sr. Argeu! exclamei, no susto.
O outro empertigou-se. Não gostava de ser tratado como civil. Usava ainda farda da Brigada Militar, no tempo em que essa tropa era um exército bem municiado e em ação constante.
- Cabo Adão, às suas ordens, se não for incômodo me chamar assim, disse.
Vi então o reflexo da luz que entrava filtrada pela janela do corredor nos botões outrora dourados da sua farda amarela. Notei também que a vestimenta estava limpa, quase passada e que para completar o quadro faltava apenas um capacete. Mas o que se destacava era o imenso lenço branco pendurado no pescoço.
- Sempre fui chimango, disse. O senhor não tem nada contra os blancos, tem, senhor escritor? Ou prefere os maragatos como aquele...
(deu uma cuspidinha de lado)...
-...teu “general” (sua entonação pedia aspas) Honório de Lemos.
- Sou isento, cabo Adão, disse, me aproximando. Para mim tanto faz.
- O senhor é quem sabe. Mas é bom lembrar que teu tio Waldemar era do nosso lado. Usava também lenço branco naquelas guerras todas.
Talvez por isso cabo Adão me tratasse com um pouco mais de consideração do que Honório. Mas uma dúvida me ocorreu:
- Ué, Honório me falou que o tio tinha lhe curado de um balaço na paleta.
BALAÇO - Cabo Adão sorriu-se todo. Mostrava com isso que sabia mais, apesar de eu ter tido encontro cara a cara com Honório, como está descrito no meu novo romance.
- Ele foi nosso prisioneiro e a bala era minha. Te assustaste?
O branco de susto da minha cara contrastava com o ambiente. Já estava cansado daquelas aparições.
- O que o traz a São Paulo, cabo Adão?
O militar fechou a cara em sua posição de sentido (coisa que fazia sempre, jamais relaxava).
- O senhor me convocou. Vim cuidar dos que querem faltar ao lançamento do seu romance.
Meti a mão na cabeça. Por que eu invento essas coisas?
- Era brincadeira, rapaz...Ninguém pode ser obrigado a ir!
Cabo Adão fechou mais ainda a cara. Não acreditava em e-mail, não admitia defecção, não gostava de ser convocado em vão. Estava, ainda, em guerra.
- Quer dizer que o senhor me convocou à toa?
- Foi meu jeito de dizer que gostaria de ver todo mundo lá. Usei uma metáfora da fronteira.
Cabo Adão intensificou sua cara de estranhamento. Vi que tinha enorme ruga vertical em cima do olho, que atravessava até o topo da testa preta-mulata, olhos amarelos-terra, sombrancelhas finas, rosto meio ovalado e puxado, como se um índio tivesse laçado uma escrava fugida. Me olhava desconfiado, mas não perdia o respeito:
- Estarei de plantão. Pode deixar que, para os mais renitentes, eu entrego pessoalmente o convite.
Que enrascada! Imaginei algum pobre convidado, recebendo tarde da noite o papel timbrado da editora pela mão do guerreiro que fatalmente colocaria o pé no vão da porta que se abririria, só para garantir a presença. Falei:
- Estamos ainda confirmando data, hora e local. E ainda não imprimimos o convite.
- Não faz mal. Eu espero.
E desembrulhou um pacote amassado, marrom, onde tinha uma boa quantidade de fumo de corda e com sua faca que tirou da cintura, de trás,começou a fazer um palheiro.
Quando acendeu, lembrei de outro parente meu, o tio Antenor. O pescador de beira de rio. O cara-massada. O sem-dentes contador de causos. O pai de dezenas de filhos e marido de várias esposas. O rei do desalinho. Tio Antenor agora era apenas lembrança, palavra que o rio Uruguai sopra, prometendo novas aparições.
- Escuta aqui, disse Cabo Adão, meio sem cerimônia ( o que não era do seu feitio). De que trata afinal o teu livro?
E me olhou com aquele rosto impenetrável, parede de sombra em meio à escuridão do corredor do hotel, ereto como um marechal, concentrando naquele perfil toda a majestade perdida de um povo. Fiquei, por alguns instantes, completamente mudo antes de responder.
SAFANÃO NO ELEVADOR - Arranjei duas horas para sair de onde estava. Como o trânsito ficou pior depois do Carnaval, decidi pegar um ônibus, senão iria gastar uma fortuna em taxi. Cruzei a ponte nova e desovei na rua Butantã, onde fiquei à mercê do barulho do motor (que ocupa lugar dentro do veículo, junto com os passageiros, uma solução da engenharia marota escravagista), e do calor infernal. Em 20 minutos cruzei a Faria Lima. Subi penosamente a Teodoro Sampaio e depois de uma légua de tempo, aportei na Consolação. Também estava tudo engarrafado. Só depois de uma hora e meia cheguei na rua Aurora, onde se hospedava aquele sujeito que eu citava tanto e que mal conhecia. Meu tempo já estava praticamente esgotado. Mas aquele encontro não podia ser adiado (não sei porquê, lembrei facão faiscando ao sol, barulho de rifle, canhoneio). Pisei na sujeira da calçada – a mesma de milhares de anos atrás – e me arrisquei na portaria do hotel barato, que despencava em tudo, inclusive no vetusto elevador movido a manivela e que ringia à menor aproximação. Subi até o novo andar, não sem antes levar um susto no sétimo, quando a pouca luz se foi e o elevador, movido a vapor, estacionou para sempre. Como estava munido de toda paciência do mundo, aguardei. Só depois notei que o bicho subiu dois andares quando tudo ainda estava escuro. Alguém puxava o dito pelo cangote. Desconfiei quem poderia ser.
LENÇO BRANCO - Mas a porta abriu e eu não enxergava ninguém. Acendi um fósforo depois de algumas tentativas frustradas, pois costumo guardar os palitos usados dentro da caixa. Fui queimando os dedos por um dos corredores, mas tive de voltar. Era no outro lado, o que dava para uma janela minúscula, gradeada, que lançava uma luz fosca do dia lá fora, abafado e com nuvens pesadas. Finalmente consegui que um dos últimos fósforos iluminasse o número 93, que estava torto, carcomido em seu metal de nenhuma categoria. Fui bater, mas uma chama atrás de mim chamou a atenção:
- 1893, disse uma aparição, que se confundia numa dobra do corredor. A guerra da degola!
- Sr. Argeu! exclamei, no susto.
O outro empertigou-se. Não gostava de ser tratado como civil. Usava ainda farda da Brigada Militar, no tempo em que essa tropa era um exército bem municiado e em ação constante.
- Cabo Adão, às suas ordens, se não for incômodo me chamar assim, disse.
Vi então o reflexo da luz que entrava filtrada pela janela do corredor nos botões outrora dourados da sua farda amarela. Notei também que a vestimenta estava limpa, quase passada e que para completar o quadro faltava apenas um capacete. Mas o que se destacava era o imenso lenço branco pendurado no pescoço.
- Sempre fui chimango, disse. O senhor não tem nada contra os blancos, tem, senhor escritor? Ou prefere os maragatos como aquele...
(deu uma cuspidinha de lado)...
-...teu “general” (sua entonação pedia aspas) Honório de Lemos.
- Sou isento, cabo Adão, disse, me aproximando. Para mim tanto faz.
- O senhor é quem sabe. Mas é bom lembrar que teu tio Waldemar era do nosso lado. Usava também lenço branco naquelas guerras todas.
Talvez por isso cabo Adão me tratasse com um pouco mais de consideração do que Honório. Mas uma dúvida me ocorreu:
- Ué, Honório me falou que o tio tinha lhe curado de um balaço na paleta.
BALAÇO - Cabo Adão sorriu-se todo. Mostrava com isso que sabia mais, apesar de eu ter tido encontro cara a cara com Honório, como está descrito no meu novo romance.
- Ele foi nosso prisioneiro e a bala era minha. Te assustaste?
O branco de susto da minha cara contrastava com o ambiente. Já estava cansado daquelas aparições.
- O que o traz a São Paulo, cabo Adão?
O militar fechou a cara em sua posição de sentido (coisa que fazia sempre, jamais relaxava).
- O senhor me convocou. Vim cuidar dos que querem faltar ao lançamento do seu romance.
Meti a mão na cabeça. Por que eu invento essas coisas?
- Era brincadeira, rapaz...Ninguém pode ser obrigado a ir!
Cabo Adão fechou mais ainda a cara. Não acreditava em e-mail, não admitia defecção, não gostava de ser convocado em vão. Estava, ainda, em guerra.
- Quer dizer que o senhor me convocou à toa?
- Foi meu jeito de dizer que gostaria de ver todo mundo lá. Usei uma metáfora da fronteira.
Cabo Adão intensificou sua cara de estranhamento. Vi que tinha enorme ruga vertical em cima do olho, que atravessava até o topo da testa preta-mulata, olhos amarelos-terra, sombrancelhas finas, rosto meio ovalado e puxado, como se um índio tivesse laçado uma escrava fugida. Me olhava desconfiado, mas não perdia o respeito:
- Estarei de plantão. Pode deixar que, para os mais renitentes, eu entrego pessoalmente o convite.
Que enrascada! Imaginei algum pobre convidado, recebendo tarde da noite o papel timbrado da editora pela mão do guerreiro que fatalmente colocaria o pé no vão da porta que se abririria, só para garantir a presença. Falei:
- Estamos ainda confirmando data, hora e local. E ainda não imprimimos o convite.
- Não faz mal. Eu espero.
E desembrulhou um pacote amassado, marrom, onde tinha uma boa quantidade de fumo de corda e com sua faca que tirou da cintura, de trás,começou a fazer um palheiro.
Quando acendeu, lembrei de outro parente meu, o tio Antenor. O pescador de beira de rio. O cara-massada. O sem-dentes contador de causos. O pai de dezenas de filhos e marido de várias esposas. O rei do desalinho. Tio Antenor agora era apenas lembrança, palavra que o rio Uruguai sopra, prometendo novas aparições.
- Escuta aqui, disse Cabo Adão, meio sem cerimônia ( o que não era do seu feitio). De que trata afinal o teu livro?
E me olhou com aquele rosto impenetrável, parede de sombra em meio à escuridão do corredor do hotel, ereto como um marechal, concentrando naquele perfil toda a majestade perdida de um povo. Fiquei, por alguns instantes, completamente mudo antes de responder.
12 de março de 2004
O ÓDIO À LIBERDADE
O regime de 1964, que faz 40 anos no próximo Primeiro de Abril, continua em vigor. Sua principal obra foi a destruição da liberdade dentro das pessoas. Algo quebrou-se no coração (e na cabeça) e o que vemos é uma falsa democracia, que corta o acesso a uma vida decente à maioria da população, já que perdemos o principal, a garantia de uma convivência pacífica entre quem produz e quem depende de salário, entre autoridade e cidadania. O país está em pé de guerra. E o inimigo avança: basta ver o que fizeram com os arquivos do blog Espinha para começar a chorar.
MEDÍOCRES NO PODER - Como todo mundo, eu especialmente, Hélcio Toth pode tornar-se às vezes insuportável. Não é portanto por simpatia ao próximo que defendo sua liberdade de expressão. É por obrigação. E porque admiro o seu trabalho. Ontem, ao fazer uma pesquisa no Google, cliquei no Espinha de determinada data e o que vi foram molduras vazias, como se o magnífico trabalho do nosso artista fosse agora uma casa de fantasmas. E por que? Qualquer porcaria fica para sempre na rede. Por que os belos arquivos do Espinha, datados, cheio de fotos magníficas, registros de momentos da cidade neste começo de século, que serviria para qualquer pesquisa futura para se descobrir como era realmente a cidade de São Paulo em nosso tempo, é destruída de maneira tão brutal? Porque um burocrata/consultor provou que esses arquivos tomavam espaço desnecessário? Ou é simplesmente algo feito de propósito, fruto do ódio à liberdade? O mais grave é que Toth realmente deletou os arquivos para continuar com o seu blog e depois que fez esse corte - porque é uma pessoa responsável, porque queria continuar - foi jogado fora. Isso não é apenas crueldade, é política. É mais do que censura, é terrorismo. Sinal de que pessoas com poder estão de olho na grande massa crítica que aflorou com os blogs. Eles esperavam que isso fosse apenas uma brincadeira de adolescentes, e eis que tornou-se a mídia dos excluídos. Isso é feito para manter o costume implantado principalmente a partir de 1968: a de que não vale a pena opor-se, é preciso adaptar-se à mediocridade vigente. O ódio à liberdade manifesta-se por meio dos incapazes de criar, que assumem o poder de olho em quem sabe e consegue criar alguma coisa. O que é realmente insuportável, para eles, é a capacidade que temos de tirar coelho da cartola. Nossa mágica os deixa assustados. Eles não conseguem entender, já que não desenvolveram a alma e tornaram-se pedreiras desumanas, habitadas pelos mais vis interesses econômicos ( o que é uma burrice, pois poderiam ganhar muito mais dinheiro se pagassem Hélcio para ter seu blog).
FUROS - Dar "furos" - veicular antes as abobrinhas de sempre - parece ser lei em algumas redações de veículos endividados, que compraram a peso de ouro as consultorias, o que faz parte não só do desespero (a curva descendente dos leitores é irreversível, fruto do ódio à liberdade estampado nas matérias), mas possivelmente de acertos internos para ganhar fortunas nas empresas de comunicação, plano que não inclui as redações. A prova de que os jornais não precisavam de jornalistas veio em 1979, com a grande greve que acabou em tragédia. Os jornais continuaram saindo e o que se viu foi início da poda. Uma geração foi sacrificada e as gerações emergentes aportaram em lugares totalmente dominados pelos burocratas. Antes disso, nenhum departamento vinha dar cartas na redação. Havia censura política, mas assim mesmo ainda sobrevivia o jornalismo. Agora cada editoria parece que deve informar quantos furos dá por dia, e dependendo do lugar que ocupa nesse ranking, pode continuar acorrentado ao jornal ou vai se tornar novo militante de blog. Pois acho que estão fazendo o recolhimento no varejão da rede: quem sobrou na "comunicação" (mas que palavrinha chata) e fez seu blog agora está sendo punido. Furo é bobagem, o que vale é a matéria bem apurada para atrair leitura.
RETORNO - TRÊS ALEGRES NOTAS: 1. Recebo mensagem da Comunicação, Cultura e Política , liderada por Denis de Moraes. As atualizações recentes incluem: John Lennon, Milton Santos, Steven Johnson, Julio Cortázar, Dominique Wolton, Paulo Freire, Francisco Fernández Buey, Fábio Konder Comparato, Jacques Derrida, Bernard Cassen, Maria Rita Kehl, Aloysio Biondi, Paulinho da Viola, Panorama de Arte e Tecnologia, Luiz Gonzaga Belluzzo, Umberto Eco. E tem mais : Por uma outra comunicação, organizado por Dênis de Moraes, é indicado ao Prêmio Jabuti de 2004, na categoria Ciências Humanas; Vale a pena ler de novo: Dossiê Jean-Paul Sartre.Comcult rules. É o apreço à liberdade.
2. Amor à liberdade: nosso genial, imprescindível, radical, impressionante artista visual (que chamam de fotógrafo)Marcelo Min está de endereço novo. Deu um chega para lá nos blogs e detona em seu novo endereço: www.fotogarrafa.com.br.
3. Regina Agrella, a fotógrafa da magia do olhar, faz um link para meu texto "A idade adulta do blog". Chama minhas palavras de sábias. E Gim Tones está preparando uma. Aguardem. O solerte repórter policial vai tomar o poder. Medo!!!
MEDÍOCRES NO PODER - Como todo mundo, eu especialmente, Hélcio Toth pode tornar-se às vezes insuportável. Não é portanto por simpatia ao próximo que defendo sua liberdade de expressão. É por obrigação. E porque admiro o seu trabalho. Ontem, ao fazer uma pesquisa no Google, cliquei no Espinha de determinada data e o que vi foram molduras vazias, como se o magnífico trabalho do nosso artista fosse agora uma casa de fantasmas. E por que? Qualquer porcaria fica para sempre na rede. Por que os belos arquivos do Espinha, datados, cheio de fotos magníficas, registros de momentos da cidade neste começo de século, que serviria para qualquer pesquisa futura para se descobrir como era realmente a cidade de São Paulo em nosso tempo, é destruída de maneira tão brutal? Porque um burocrata/consultor provou que esses arquivos tomavam espaço desnecessário? Ou é simplesmente algo feito de propósito, fruto do ódio à liberdade? O mais grave é que Toth realmente deletou os arquivos para continuar com o seu blog e depois que fez esse corte - porque é uma pessoa responsável, porque queria continuar - foi jogado fora. Isso não é apenas crueldade, é política. É mais do que censura, é terrorismo. Sinal de que pessoas com poder estão de olho na grande massa crítica que aflorou com os blogs. Eles esperavam que isso fosse apenas uma brincadeira de adolescentes, e eis que tornou-se a mídia dos excluídos. Isso é feito para manter o costume implantado principalmente a partir de 1968: a de que não vale a pena opor-se, é preciso adaptar-se à mediocridade vigente. O ódio à liberdade manifesta-se por meio dos incapazes de criar, que assumem o poder de olho em quem sabe e consegue criar alguma coisa. O que é realmente insuportável, para eles, é a capacidade que temos de tirar coelho da cartola. Nossa mágica os deixa assustados. Eles não conseguem entender, já que não desenvolveram a alma e tornaram-se pedreiras desumanas, habitadas pelos mais vis interesses econômicos ( o que é uma burrice, pois poderiam ganhar muito mais dinheiro se pagassem Hélcio para ter seu blog).
FUROS - Dar "furos" - veicular antes as abobrinhas de sempre - parece ser lei em algumas redações de veículos endividados, que compraram a peso de ouro as consultorias, o que faz parte não só do desespero (a curva descendente dos leitores é irreversível, fruto do ódio à liberdade estampado nas matérias), mas possivelmente de acertos internos para ganhar fortunas nas empresas de comunicação, plano que não inclui as redações. A prova de que os jornais não precisavam de jornalistas veio em 1979, com a grande greve que acabou em tragédia. Os jornais continuaram saindo e o que se viu foi início da poda. Uma geração foi sacrificada e as gerações emergentes aportaram em lugares totalmente dominados pelos burocratas. Antes disso, nenhum departamento vinha dar cartas na redação. Havia censura política, mas assim mesmo ainda sobrevivia o jornalismo. Agora cada editoria parece que deve informar quantos furos dá por dia, e dependendo do lugar que ocupa nesse ranking, pode continuar acorrentado ao jornal ou vai se tornar novo militante de blog. Pois acho que estão fazendo o recolhimento no varejão da rede: quem sobrou na "comunicação" (mas que palavrinha chata) e fez seu blog agora está sendo punido. Furo é bobagem, o que vale é a matéria bem apurada para atrair leitura.
RETORNO - TRÊS ALEGRES NOTAS: 1. Recebo mensagem da Comunicação, Cultura e Política , liderada por Denis de Moraes. As atualizações recentes incluem: John Lennon, Milton Santos, Steven Johnson, Julio Cortázar, Dominique Wolton, Paulo Freire, Francisco Fernández Buey, Fábio Konder Comparato, Jacques Derrida, Bernard Cassen, Maria Rita Kehl, Aloysio Biondi, Paulinho da Viola, Panorama de Arte e Tecnologia, Luiz Gonzaga Belluzzo, Umberto Eco. E tem mais : Por uma outra comunicação, organizado por Dênis de Moraes, é indicado ao Prêmio Jabuti de 2004, na categoria Ciências Humanas; Vale a pena ler de novo: Dossiê Jean-Paul Sartre.Comcult rules. É o apreço à liberdade.
2. Amor à liberdade: nosso genial, imprescindível, radical, impressionante artista visual (que chamam de fotógrafo)
3. Regina Agrella, a fotógrafa da magia do olhar, faz um link para meu texto "A idade adulta do blog". Chama minhas palavras de sábias. E Gim Tones está preparando uma. Aguardem. O solerte repórter policial vai tomar o poder. Medo!!!
11 de março de 2004
A IDADE ADULTA DO BLOG
Foi Marcelo Min o pioneiro que deu o alerta para que surgissem o Espinha e Outubro. Jornalistas que não se enquadram na atual fase das redações (que, fico sabendo por Gim Tones, fazem balanço diário de “furos” em cada editoria) transformaram esta nova mídia num exercício completo de tudo o que foi aprendido. Forçamos, junto com muita gente, algo que não estava no gibi: conseguimos atingir a idade adulta do blog.
AUTORIA - O importante não é o blog, é o seu autor. Ferramenta como outra qualquer, o blog não pode ser mitificado nem execrado, como acontece normalmente. Gostei do despreendimento de Hélcio Toth, que deu adeus ao Espinha do seu jeito: pedalando e rindo. A cabeça feita do nosso artista nos ensina a não ficarmos presos ao que conquistamos. Mesmo nossas vitórias podem ser pesadas correntes. Marcelo Min também já tinha demonstrado essa mesma postura quando seu dinâmico, genial e imprescindível Fotogarrafa tornou-se para ele quase que uma compulsão diária. Seu talento e marginalidade estavam sendo devorados pelos leitores afoitos. Pois vão fazer seus blogs! parece-nos dizer. Sejam também produtores, sejam fotógrafos, artistas, escritores! No fundo, a Internet conseguiu viabilizar um velho sonho: o da criação individual sendo colocada à disposição do público sem intermediação nenhuma. Mas essa vantagem mostra-se agora ilusória. Existe, sim intermediação, que começa a mostrar as garras. Isso não quer dizer que a liberdade na rede esteja acabada. Mas sim que a Internet obedece às injunções de sempre. E que a liberdade depende da força e importância da nossa reação.
O conflito deve ser trabalhado como insumo para a maturidade, e não para a desistência. Uma busca rápida no Google nos revela uma série de depoimentos sobre a briga atual dos blogs com seus servidores – matéria magnífica que já deveria estar estampada em todos os jornais, se houvessem mais pauteiros eficientes e editores fora da rotina na grande imprensa. Escolho a esmo um desses depoimentos, intitulado Casa nova, publicado no final do ano passado: “Mudei o blog de endereço mais uma vez. O motivo é simples: a partir de janeiro de 2004, os serviços do blogger e kit.net ficarão disponíveis somente para clientes do provedor da Globo.com. Mas já estava interessado em mudar de servidor já tinha um tempo, pois o kit.net não permitia que pessoas de fora do Brasil acessassem o site. (marlborocity.topcities.com/dezembro2003.htm - 68k)”. Ou seja, já existia o aviso e agora a coisa estourou. O estrago que está fazendo, podemos adivinhar. Ou então, fazer uma boa reportagem sobre o assunto.
RED ACTION? - Esse trocadilho é do Lindolf Bell, numa dedicatória que me fez lá por 1971, em Blumenau. Eu achava um escândalo que o novo jornal da cidade, o Jornal de Santa Catarina (que na época era JSC e hoje chamam de "Santa", o que é horrível) não fizesse um convite ao grande poeta da terra para participar do novo projeto. Bell ficou emocionado e tornou-se meu amigo. Achava nossa redação bastante contundente e linkou a palavra redação com "ação vermelha", o que é de uma graça sem par. Achávamos que só numa redação tradicional poderíamos ser "jornalistas" - e isso incluía as redações alternativas, de pequenos jornais de oposição. Hoje sabemos que um jornalista de verdade, mesmo afastado das redações tradicionais, consegue superar o muro que o leva para longe do que todos acham ser o exercício profissional normal. A experiência que consegui desenvolver na Fiesp por cinco anos na revista de lá, quando Toth e Min cravavam capas históricas sobre o fazer no Brasil – o chão de fábrica – é um exemplo do que pode ser feito para enfrentar as imposições. Claro que havia todo o tipo de interferência, mas para isso servem os adultos: agir estrategicamente é uma maneira de sair da infância e fazer História. O grande problema é o silêncio: enquanto fui editor da revista Notícias Fiesp/Ciesp, houve citação zero na imprensa sobre o veículo, apesar de nossas matérias surgirem, milagrosamente, em vários jornais e revistas, sem que jamais alguém citasse a fonte.
GÁS - Outra saída é a própria Internet. Jornalismo de primeira é feito na rede. Basta ver o portal Nomínimo por exemplo, ou a revista Sagarana, ou a Comunicação e Cultura. Hoje, a crítica contundente está a cargo dos sites e blogs, que conseguem veicular com liberdade (e isso implica grandes responsabilidades, especialmente com a qualidade, a transparência e a sinceridade do que é dito). A paranóia pode apontar sinais evidentes de que também está sendo minado esse espaço conseguido à força (já que cercaram a rede de toda espécie de preconceito, tanto na chamada “comunicação” – estou farto dessa palavra – quando na universidade). Vi gente falar mal da rede em plena sala de aula da mais conceituada universidade do país, e não eram alunos não, eram catedráticos. Adaptaram velhas teorias ao fenômeno emergente. Outros, que ainda não dominavam as novas ferramentas, sentiam apenas inveja de quem estava na vanguarda. Agora que os espaços de luminares começam a ocupar a rede, talvez a poeira baixe. Mas o que vale são os pioneiros, os que ocupam o front antes de todos. Agora que estão chegando as instituições, talvez seja hora de dar uma volta por cima, criar alguma outra ruptura radical. Pode ser dentro da rede mesmo. Estamos atentos e cheios de gás.
RETORNO - 1. Mas blog não é apenas jornalismo. É diário, é literatura, é qualquer coisa que se queira. Essa liberdade continuará, criando sempre novos parâmetros e possibilidades. A liberdade dos outros nos ensina, todos os dias.
2. Anderson Petroceli cria uma nova formatação para o Cantinho do Poeta no Portal Uruguaiana. Os poemas que fiz sobre fotos dele estão lá. Achei mais do que um novo site dentro do grande portal da fronteira. Achei uma homenagem. E mais do que isso, uma condecoração. Vejam lá: ficou demais! Um trabalho a dois que se debruça sobre uma paisagem eterna e histórica, que tenta decifrar o que aquele canto do planeta nos sugere por meio da memória, da inspiração e da liberdade do olhar.
10 de março de 2004
O FIM DO BLOG ESPINHA
Hélcio Toth despede-se e diz que o Espinha não existe mais. Um calafrio passa por todo mundo. Como que um espaço que é criatividade pura, arte na sua extensão maior, link total com os contemporâneos, invenção e reportagem, jornalismo de verdade e descompromisso com qualquer cânone da chamada “comunicação” recebe um chega para lá depois de anos de trabalho ininterrupto, feito com desprendimento e determinação, e acaba de um momento para outro?
DEPOIMENTO - Toth informa que o rolo, em tese, teria sido provocado pelo excesso dos seus arquivos, que estariam ultrapassando 10 megas. Ele diz que fez o corte, mas assim mesmo foi tirado do ar. Ou seja, a Internet, que até aqui estava isenta de censura, mostra pela primeira vez a face muito conhecida da velha senhora indigna, a que nos criou no auge da ditadura civil/militar. O fim do blog Espinha – e de quebra, ainda sem confirmação de que isso seja irreversível, também o genial blog Fotogarrafa, de Marcelo Min – é um marco do fim da liberdade na rede. No mínimo deveriam entrar nem acordo com nossos artistas, que inconformados queriam a liberdade que desfrutaram desde o início. Quer dizer que o jogo é só desligar da tomada? E como fica o vasto acervo disponível na Internet, que agora entra para o buraco negro das gavetas, do boicote ao talento, na fila da espera da mesmice? Acho uma tragédia e deveria ser renegociado. Desistir simplesmente não vale a pena.
PROPOSTA - Vamos tentar reverter o quadro? Cartas para a redação. Proponho um debate equilibrado, sem xingamentos e acusações, pois precisamos encontrar uma saída deste imbróglio. Volta, Toth!!! A não ser que estejas a fim agora de correr mundo com tua magrela e livrar-se do encargo de nos brindar com fotos geniais todos os dias. O blog nos livrou da gaveta. É agora o fim do fim da gaveta?
RETORNO - Fico sabendo, nos comentários, que outros blogs culturais estão sendo tirados do ar. Gostaria que os autores desses blogs me enviassem depoimentos não só sobre o desligamento, como sobre o trabalho desenvolvido neles. O Outubro quer fazer uma edição especial sobre essa tragédia.
9 de março de 2004
NOS CAMPOS DE EURICO LARA
Mais memórias, desta vez centradas no futebol. A cidade celeiro de craques não consegue chegar ao campeonato estadual. Mas o Esporte Clube Uruguaiana já está entrando em campo para disputar a segundona. Quem sabe vira campeão e entra na seleção de times para enfrentar a dupla Grenal?
O TIME - Tive também meu 16 de julho - a data fatídica do futebol brasileiro, quando perdemos a copa para o Uruguai em 50 e virou símbolo de tragédia esportiva. Tinha conseguido convencer o treinador de futebol do Colégio, Irmão Eugênio, de que eu era um goleiro eficiente. Minha fama veio do time da rua, que fundamos uma noite de verão. Estava eu, meu irmão Luís Carlos, seu amigo Getúlio, mais o Chiba (também de nome Luiz Carlos, da enorme família dos Etcheverria, que morava próxima à minha casa e tinha como patriarca um funcionário da destilaria), além do João Carlos, meu irmão de criação (hoje advogado). Formávamos um time de futebol de salão. Organizamos a bagunça, abrimos uma conta na Caixa Federal, cobramos mensalidade da gurizada da "zona" (era o nome que dávamos a bairro) e compramos uniformes - camisetas bordadas por uma faixa azul em diagonal. Fui voto vencido: queria que o time se chamasse Charrua, mas acabou sendo votado o manjado nome de Guarani.
O Irmão Arno, professor de História, hoje diretor do Colégio Santana, em seguida nos apelidou de Gelsa, uma marca de manteiga existente na época (talvez porque tínhamos topete, tínhamos força). Jogávamos contra os internos e eu, como nunca fui bom de bola, acabei me especializando no gol. Meu grande feito foi ter sido goleiro da minha aula. Num inesquecível campeonato, decidi nossa classificação para a final defendendo pênaltis. Ostentava uma camisa de goleiro - que na época era toda acolchoada - e as joelheiras, hoje instrumento erradicado do futebol. Sempre me pergunto como os goleiros podem defender as bolas - no Rio Grande do Sul, o goleiro não defendia, "atacava" a bola - sem as joelheiras, sem esfolar os joelhos no chão sem grama. “Ataca lá” me diziam, quando eu furava a terceira bola ao tentar jogar no ataque.
O VÔO DE BARBOSA - O futebol mundial entrou na minha vida na copa de 58. Tinha 10 anos e, como sempre fazia, fui ao cinema. Não sabia da decisão com a Suécia. No meio do filme, para meu desespero, interrompiam para anunciar mais um gol do Brasil. Saí do cinema e vi a praça Barão do Rio Branco toda branca de fumaça de fogos. Amigos bêbados se abraçavam aos berros. “Que aconteceu?” perguntei. “Somos campeões do mundo,” deve ter dito alguém. A partir daí, prestei mais atenção no futebol fora da cidade. Mas o quente mesmo era assistir aos grandes jogos entre meu colégio, o Santana, contra os outros - o União, protestante, o Dom Hermeto, público e os gigantes do seminário de padres, todos gringos parrudos.
O grande goleiro do colégio era apelidado de Barbosa. Quando a imprensa insiste na maldição de Barbosa, lembro que esse era o apelido de goleiro na minha época. Muito antes de Gilmar, Barbosa pontificava. Haviam outros grandes goleiros, como o Nicanor. Tinha físico de halterofilista e fechava o gol. Sua maior defesa foi, ao se adiantar demais numa jogada, atirar-se para trás, virar totalmente o corpo no ar e cair encaixado com a bola. Barbosa era diferente. "Avoava". Ou seja, gostava mesmo era de buscar a bola no ângulo. Mesmo quando a bola ia ciscando para sua meta, era defendida em grande estilo. E lembro ainda do Pato, que era mais um palhaço. Se a bola ia para a linha de fundo, ele se atirava no chão, como se estivesse "desconstruindo" o estilo charmoso dos grandes goleiros. E tinha, já entre os juvenis, o Mosquito, que defendia bola cruzada: se alguém chutasse muito forte, da extrema direita, ele se atirava e encaixava a bola no ar.
Eles eram meu modelos, mas eu tinha um defeito: fechava os olhos na hora agá. No campeonato em que brilhei, consegui defender a maioria dos pênaltis (decisão de empates), mas na final em atirei na bola de olhos fechados e fomos vice-campeões. “Eu sabia que tu não estava em forma”, dizia o chato (sempre tem um), de plantão atrás do gol.
Mas esse não foi meu 16 de julho. Aconteceu o seguinte: do outro lado do rio, na Argentina, era moda o que hoje se chama de futebol soçaite, mas que chamávamos de futebol suíço. Seis para cada lado, em campo de grama. Nada de fubebol de salão, onde a bola era pesada, murcha e que morria no nosso peito, por mais forte que fosse o chute. Esse outro futebol, suíço, tinha uma bola número três, diferente da de número cinco, que acima do Rio Grande do Sul chamavam de capotão. Nunca chamamos a bola número cinco de capotão. Era de couro e tinha uma abertura para a bexiga de borracha, interna, ser inflada. Passávamos banha de porco no couro, para torná-la lisinha, sem nenhuma aspereza.
Irmão Eugênio ficou impressionado com minha atuação no campeonato do colégio (e também com minhas defesas nos amistosos contra os internos) e me escalou como titular. Treinamos e fomos então para Paso de los Libres para um torneio. Mas eu ainda não me acostumara com a número três. Em duas bolas, o biroço bateu no meu peito e voltou (se fosse de salão, ela amorteceria). No rebote, os correntinos fizeram os gols necessários para nos tirar o título. Irmão Eugênio ficou furioso. Me arrancou do campo com um grande safanão. Fui substituído pelo irregular Orelha de Burro.
GESSY E DEGRAZIA - Muitos anos mais tarde, visitei Uruguaiana e descobri, deslumbrado, que o Guarani tinha virado time sério, grande, de futebol de campo e uma torcida organizada, a Força Índia. Virou tricolor (vermelho, preto e verde). Os guris da minha época, que faziam parte do terceiro time, eram então treinadores. O time deu certo porque organizamos uma estrutura e ela permaneceu ao longo das décadas. Hoje o Guarani tem até sede própria e já foi várias vezes campeão da cidade. Soube também que é um celeiro de craques, tendo fornecido jogadores para a dupla Grenal e até para o Santos. Não confirmei nada disso, porque virei um uruguaianense de orelhada, muito distante.
O grande craque da minha cidade foi Eurico Lara, o goleirão que defendeu o Grêmio e hoje está no hino desse time, feito pelo Lupiscínio Rodrigues (que criou para ele o verso “Lara, o craque imortal”). Fui criado a um quarteirão do Estádio Eurico Lara, do Esporte Clube Uruguaiana, que ganhou outro nome. Em torno de Lara, formaram-se todas as grandes histórias de goleiros excepcionais. Como o de quebrar um braço numa partida e continuar em campo até o final, sem tomar gols.
Nos anos cinqüenta, eu ficava no portal de casa e via o a saída do jogo. A maioria dos torcedores usava terno e chapéu. “Quanto foi o jogo?” perguntava. “Dois a zero”, diziam. Daí a pouco, repetia a pergunta. Era uma maneira de eu me enturmar numa coisa que ainda estava distante de mim. Outra grande craque foi Gessy, irmão do nosso vizinho IIldebrando, mais tarde radialista (é de Uruguaiana a grande dupla de narradores esportivos de rádio: Degrazia e João Carlos Belmonte, esse várias vezes premiado como locutor na rádio Guaíba, de Porto Alegre. Degrazia, filho de estancieiros, genial, ficou em Uruguaiana) . Gessy, que um dia participou daqueles campeonatos intermináveis entre o Uruguaiana, o Ferro Carril e o Sá Viana, foi craque do Grêmio. Todos os times continuam tendo seus próprios estádios.
Mas jogador mesmo era o Gringo, outro vizinho, que mais tarde jogou no Uruguaiana, time de grandes nomes, como Abeguar e Paré. Abeguar era da minha aula, tinha muito mais idade e driblava, nas aulas de educação física, todo o time adversário, mais o próprio time, entrava com bola e tudo e, fominha, pegava a bola para colocar de novo no centro do gramado. Paré era meio de campo. Jogava o fino. No Sá Viana, pontificava Chirunga e no Uruguaiana, o Altemir (também da minha aula, zagueiro que só tirava a bola de puxeta) e seu irmão Altair (um ponta dos velhos tempos, muito magro e "liso"). Havia também o baixinho Nick, especialista em bolas no peito do pé.
Quem pegava na veia era o Gorrinha, do time dos Andradas, time da várzea. Gorrinha era empregado do meu pai, carregava lenha, fazia todos os serviços. O chute de Gorrinha, que pegava na veia, foi batizado por ele de Chedinho.
LHAMBY - O Colégio Santana tinha dois campos, um em cima, de pedra, para os juvenis e outro gramado, em baixo, para os adultos. Luís Carlos Lhamby foi o autor da maior jogada que vi naqueles campos. A bola veio pelo alto, ele estava na ponta direita. Ele levantou a perna e gritou para o companheiro, sugerindo que iria passar a bola. Mas enganou todo mundo. Deixou a bola passar e num giro de corpo saiu na frente com a criança dominada.
Acompanhei a copa de 62 pelo rádio e a de 70, pela televisão em praça pública, em Porto Alegre. Estava já pós-graduado em futebol. Uruguaiana tinha me dado o serviço.
RETORNO - Tragédia no ar: os blogs de Helcio Toth e Marcelo Min estão fora do ar. O que aconteceu?
7 de março de 2004
MEMÓRIAS DA FOLHA DA MANHÃ
O jornal que mexeu com os brios da ditadura em Porto Alegre entre 1973 e 75 era o caçula daquela poderosa Companhia Jornalística Caldas Junior, a empresa que foi destruída depois que se arvorou a ter um canal próprio de TV sem o beneplácito dos poderosos de sempre. Naquela redação, uma equipe estelar fez História apenas com alguns ingredientes: talento, coragem e respeito ao leitor. Em poucos anos, a Folha da Manhã foi, claro, assassinada.
AO ANDAR - Duas pessoas carregaram meus arquivos sobre a Folha da Manhã. Uma delas é a Valderez, secretária daquela equipe, que deixou um belo recado no livro de visitas do meu site. E a outra é Eduardo San Martin, que chegou de Nova York para uma visita rápida em São Paulo, de passagem para Portinho, de onde voltará em pouco tempo (San Martin é movimento constante). Com quatro livros de sucesso sobre piratas (pela editora Artes& Ofícios), mais alguns de poesia (como O Círculo do suicida) e ainda duas novelas inéditas, Eduardo me atualiza sobre Licínio Azevedo, me revelando que foi Licínio quem, fazendo matéria pela cidade para a sua editoria de Polícia da Folha da Manhã (a mais louca, a mais incrível, a mais contundente, a mais brilhante seção de polícia de todos os tempos), encontrou num táxi o nosso Caco Barcelos. Estimulado por Licínio, Caco deixou a profissão de taxista para abraçar para sempre uma magnífica carreira de repórter, sendo hoje um dos melhores jornalistas do país em atividade. Licínio, depois do assassinato da Folha da Manhã, deu por encerradas suas atividades no Brasil e mudou-se de mala e cuia para Angola, onde desenvolve um trabalho internacional como cineasta e autor de livros de reportagem. É uma pena que não tenhamos acesso ao Licínio, um cara que deixou funda marca na imprensa do Brasil e merece ser conhecido pelas novas gerações.
EDGAR E FRAGA - Eu fazia parte de um grupo de copy-desks, que pegava material de todas as editorias para dar um trato no texto, nem chegando perto, claro, das obras-primas escritas para a seção de Polícia. Pegávamos mais o material internacional e de economia e a reportagem geral. Mas era aquele trato fino, dado por meus companheiros de copy, como Carlos Urbim (hoje um escritor de sucesso), Ademar Vargas de Freitas (grande repórter que tem feito uma série brilhante de entrevistas no jornal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde trabalha também o maior jornalista cultural do país, Juarez Fonseca), o saudoso Dorival Pacheco, muitas vezes citado aqui no blog, e José Antonio Simch, que mais tarde trabalhou comigo na Folha de S. Paulo e hoje vive na sua Porto Alegre amada. Mas tinha muito mais. Lá trabalhava o irmão de José Simch, Edgar Vasquez, o mais radical artista da imprensa do país, um talento sem fim que nos brinda com inúmeros trabalhos ao longo de uma carreira maravilhosa. Havia também o Osmar Trindade, um dos muitos jornalistas formados na imprensa de Livramento, especialmente no tradicional A Platéia, jornal que desovou no Brasil inteiro profissionais do mais alto nível, um grupo pontificado pelo incansável Jorge Escosteguy, que foi-se prematuramente e também já foi homenageado aqui. Junto com Edgar trabalhava o Fraga, humorista e agitador cultural (que empresta sua cara para as capas do Analista de Bagé, de Luís Fernando Veríssimo), que provocou todo mundo incentivando-nos a fazer humor . O que mais? Pois José Onofre, Ruy Carlos Ostermann e Luis Fernando Veríssimo, para dizer o mínimo. Foi demais. Não agüentaram. Baixaram a intervenção.
TEMPO - A redação era tão louca que nos envolvemos numa polêmica terrível pelo mural, pois uma parte da redação não gostou quando Caco Barcelos entrevistou o prefeito-interventor da cidade. Não podia, nós, os politicamente corretos fomos em cima. Dá para acreditar? O pobre do Caco ficou surpreso, pois, como sempre, fez uma bela matéria. Mas os ânimos estavam exaltados e todo mundo sonhava com a revolução. Hoje sabemos que a revolução verdadeira é o Tempo.
RETORNO - É bom que os leitores deste blog se agendem, pois até o final do mês estarei lançando um novo livro. Por enquanto é surpresa. Quando chegar a hora, digo. E quero todo mundo lá, senão chamo o cabo Adão para decidir a parada. Como todos sabem, o cabo Adão resolve.-
AO ANDAR - Duas pessoas carregaram meus arquivos sobre a Folha da Manhã. Uma delas é a Valderez, secretária daquela equipe, que deixou um belo recado no livro de visitas do meu site. E a outra é Eduardo San Martin, que chegou de Nova York para uma visita rápida em São Paulo, de passagem para Portinho, de onde voltará em pouco tempo (San Martin é movimento constante). Com quatro livros de sucesso sobre piratas (pela editora Artes& Ofícios), mais alguns de poesia (como O Círculo do suicida) e ainda duas novelas inéditas, Eduardo me atualiza sobre Licínio Azevedo, me revelando que foi Licínio quem, fazendo matéria pela cidade para a sua editoria de Polícia da Folha da Manhã (a mais louca, a mais incrível, a mais contundente, a mais brilhante seção de polícia de todos os tempos), encontrou num táxi o nosso Caco Barcelos. Estimulado por Licínio, Caco deixou a profissão de taxista para abraçar para sempre uma magnífica carreira de repórter, sendo hoje um dos melhores jornalistas do país em atividade. Licínio, depois do assassinato da Folha da Manhã, deu por encerradas suas atividades no Brasil e mudou-se de mala e cuia para Angola, onde desenvolve um trabalho internacional como cineasta e autor de livros de reportagem. É uma pena que não tenhamos acesso ao Licínio, um cara que deixou funda marca na imprensa do Brasil e merece ser conhecido pelas novas gerações.
EDGAR E FRAGA - Eu fazia parte de um grupo de copy-desks, que pegava material de todas as editorias para dar um trato no texto, nem chegando perto, claro, das obras-primas escritas para a seção de Polícia. Pegávamos mais o material internacional e de economia e a reportagem geral. Mas era aquele trato fino, dado por meus companheiros de copy, como Carlos Urbim (hoje um escritor de sucesso), Ademar Vargas de Freitas (grande repórter que tem feito uma série brilhante de entrevistas no jornal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde trabalha também o maior jornalista cultural do país, Juarez Fonseca), o saudoso Dorival Pacheco, muitas vezes citado aqui no blog, e José Antonio Simch, que mais tarde trabalhou comigo na Folha de S. Paulo e hoje vive na sua Porto Alegre amada. Mas tinha muito mais. Lá trabalhava o irmão de José Simch, Edgar Vasquez, o mais radical artista da imprensa do país, um talento sem fim que nos brinda com inúmeros trabalhos ao longo de uma carreira maravilhosa. Havia também o Osmar Trindade, um dos muitos jornalistas formados na imprensa de Livramento, especialmente no tradicional A Platéia, jornal que desovou no Brasil inteiro profissionais do mais alto nível, um grupo pontificado pelo incansável Jorge Escosteguy, que foi-se prematuramente e também já foi homenageado aqui. Junto com Edgar trabalhava o Fraga, humorista e agitador cultural (que empresta sua cara para as capas do Analista de Bagé, de Luís Fernando Veríssimo), que provocou todo mundo incentivando-nos a fazer humor . O que mais? Pois José Onofre, Ruy Carlos Ostermann e Luis Fernando Veríssimo, para dizer o mínimo. Foi demais. Não agüentaram. Baixaram a intervenção.
TEMPO - A redação era tão louca que nos envolvemos numa polêmica terrível pelo mural, pois uma parte da redação não gostou quando Caco Barcelos entrevistou o prefeito-interventor da cidade. Não podia, nós, os politicamente corretos fomos em cima. Dá para acreditar? O pobre do Caco ficou surpreso, pois, como sempre, fez uma bela matéria. Mas os ânimos estavam exaltados e todo mundo sonhava com a revolução. Hoje sabemos que a revolução verdadeira é o Tempo.
RETORNO - É bom que os leitores deste blog se agendem, pois até o final do mês estarei lançando um novo livro. Por enquanto é surpresa. Quando chegar a hora, digo. E quero todo mundo lá, senão chamo o cabo Adão para decidir a parada. Como todos sabem, o cabo Adão resolve.-
5 de março de 2004
UM JORNALISTA OBRIGATÓRIO
A Carta Capital que hoje chegou nas bancas traz doze páginas sobre o mais importante jornalista investigativo do mundo, Greg Palast, autor do livro “A melhor democracia que o dinheiro pode comprar”. A bela matéria é de Mauricio Stycer e no editorial, Mino Carta faz uma comparação entre o trabalho de Palast e o da revista. A edição é da W11 Editores e deu um trabalhão danado colocar na gráfica esta cravada da editora que também é responsável pelos livros do Michael Moore no Brasil. Um trabalho da brava e aguerrida equipe da W11, da qual faço parte atualmente como Editor Executivo, e que é comanda por Wagner Carelli.
PARA TODOS – Jornalistas, professores e estudantes precisam conhecer a postura, os métodos, a coragem, a eficiência de Greg Palast (que é boicotado nos Estados Unidos e mora em Londres, onde suas reportagens são sempre premiadas) , que desmascara o processo de privatização das estatais no Brasil nos anos 90, denuncia a cama-de-gato das últimas eleições presidenciais americanas, entre muitas outras coisas, que estão destacadas na revista. Cabe aqui chamar a atenção para esta reportagem (que está acompanhada do capítulo brasileiro, que é inédito nas edições americana e inglesa). Uma aula de jornalismo que precisa ser debatida nas redações e nas universidades e colégios de todo o país. Não se trata de fazer a mera divulgação de um produto, mas de linkar o assunto principal do Diário da Fonte – jornalismo e todos os seus desdobramentos – com esse livro-bomba. Greg não esconde suas posições sobre o papel do jornalista: “A primeira missão de um repórter é maltratar os que estão no poder”. O livro chega nas livrarias no próximo dia 15 deste mês de março.
GERALDINE PAGE - A atriz maior decide marcar para sempre sua trajetória com uma interpetação magistral em Trip to Bountifull, que passou na madrugada na Film and Arts (TVA), quando os programadores sabem que as pessoas, cansadas de perseguir algo que preste, desistem e vão dormir. É o horário escolhido para transmitir Geraldine nessa que é talvez a maior prerformance dramática do cinema, confirmando o que foi dito aqui depois da noite do Oscar (ela ganhou o prêmio em 1985 com esse filme), de que o cinema é mulher (Greta Garbo inventou aquele rosto, Elizabeth Taylor é absolutamente genial em Quem tem medo de Virginia Wolf, não haveria cinema romântico se não fosse Audrey Hepburn). Ela interpreta uma mulher que serve de empregada para seu filho e nora e decide fazer uma viagem ao lugar onde nasceu e se criou, sem pedir licença e praticamente sem dinheiro. Geraldine despenca no drama, e o que é mais tocante é que sua personagem está sempre se superando, em força física e determinação. Ela exibe o rosto entre o desespero e o alívio, o corpo que se arrasta e anda depressa, a lágrima que sai sem jamais exibir sentimentalismo, mas emoção verdadeira, profunda, que revela frustração e revolta, sabedoria e esperança, derrota e grandeza. Nada comparável a qualquer outro trabalho no cinema.
Quando Geraldine Page entra em cena, todo mundo deveria começar a tremer.
3 de março de 2004
O LIVRE DEBATE
Nada mais irritante do que um contemporâneo: ele tem as mesmas necessidades e compete em idéias e presença. Gostamos mesmo é de projetar os outros como se fossem nossos clones, ou criaturas da nossa necessidade. Mas eles costumam ter mais força do que nós, porque nos contrariam a cada passo. A Internet é um canal poderoso para o livre debate com esses estranhos seres, os Outros, que habitam o outro plano do Universo, aquele que não faz parte de nós e portanto prova a cada segundo nossa falta de importância.
OPERAÇÕES COMPLEXAS - Fazer acontecer é uma espécie de semente pré-bigbang. Parece uma pequisa na bola sem brilho, que guarda em si um bilhão de gestos, providências, ações , tentativas e erros. Um dia qualquer que passa lotado por nós guarda todos os segredos. Se fôssemos desembrulhá-lo com cuidado veríamos dentro uma bomba. Como desconectar o sistema? Corta o fio azul ou o vermelho? Se eu puxar aquele fiapo de luz, sairá dele, enrodilhado sobre si como um cachorro no crepúsculo (dá-lhe, Neruda) meu destino? Ou devemos deixar que ele fique em forma de bola luzidia como a de boliche, que atiramos nas nossas forças postas em guarda, que parecem como soldados de Beau Geste no deserto, já fora de combate mas ainda ostentando inúteis fuzis sob o ombro, apontados contra um horizonte de perguntas? O que fazer com um texto, que puxa palavra sobre palavra como um trem carregado de minério, a despencar pela serra em direção à voragem dos mercados unidos num continente único? Será possível perder tempo com o que aparentemente não interessa, gerar pensamento a esmo, perseguir o coelho da palavra entocado em dez mil pedaços amassados de papel? Escorregar bem na beira do abismo e na queda escutar seu contemporâneo rir de outra coisa? A solidariedade assim é uma criação excêntrica, um fórceps cultural, balsa de bambu no meio do maremoto. Se tua fala provoca bocejo nos outros, é porque teu bocejo é maior e veio antes. Distraído, estás pronto para repetir teu hábito ao fechar o portão e uma carta te surpreende. Deves aguardar passar todos os carros, diz a mensagem. Fique onde está. Não atravesse a rua. No lado de lá, um milhão de pessoas esperam. Eles não esperam por ti. Esperam por um milagre.
É, MAS... – Emita qualquer certeza para ver o resultado: ou o silêncio ou o troco: ”Não é bem assim". Em vez de irritação, o que se solta de ti deve ser uma pergunta. Falar, normalmente, é uma maneira de reiterar o que pensamos sobre os outros. Já sabemos o que os outros devem escutar, por isso não custa repetir. As tentativas de quebrar essa regra geram solidão. Então temos mil monólogos simultâneos, como se fossemos bobos de uma corte inexistente. É bom saber que ninguém nos explora, não somos vítimas de ninguém. Somos resultados de uma incapacidade cultural, não a de não “nos comunicar” (que dessa droga estamos fartos). Não sabemos como sair do trilho. Anulamos a possibilidade de verdadeiro encontro. Perdemos tempo com o entulho de linguagens jamais decifradas. Concordamos para não nos desesperar. Ou implicamos até o osso para reiterar nossa individualidade, a auto-estima da galáxia que formamos, com buraco negro e tudo. Quando tudo falha, o único recurso é a literatura. Um poema, feito em algum dia, e que até já recebeu melodia. Cante comigo e com o compositor Muts Weyrauch, aquele que em pleno 1969 lançou sua candidatura a presidente do centro acadêmico da arquitetura com slogans radicais como: "Mutuca põe o dedo no nariz; Mutuca não está inserido no contexto; Mutuca não faz crítica nem autocrítica". Nessa campanha histórica, um vasta pôster com Mutuca olhando para o alto, super-cool de óculos escuros, em imagem em silk-screen, emitia um balão de quadrinhos com a seguinte expressão: “That´s wonderful!” Foi execrado pela esquerda e direita. Quase ganhou a eleição. Foi carregado em triunfo pela rua.
HUBBLE – Esse é o nome do poema. Vamos lá: “Sou um desses planetas soltos sem sistema/ Longe do abraço circular/ da grave estrela/ Acompanhado apenas pelo olhar oblíquo Hubble/ A desandar errante como cauda/ de cometa/ A me arrastar em velocidade/ extrema/ no cosmo sujo sem jamais/ olhar para trás/ A única chance de parar é você levantar-se/ desse banco de jardim e dar-me/ um beijo” (Nei Duclós, com música de Mutuca).
RETORNO - O escritor revelação Tony Monti escreve no seu blog que os textos daqui estão ótimos, "com os quais não dá para discordar nem concordar em tudo", o que ele acha perfeito. Eu também.
OPERAÇÕES COMPLEXAS - Fazer acontecer é uma espécie de semente pré-bigbang. Parece uma pequisa na bola sem brilho, que guarda em si um bilhão de gestos, providências, ações , tentativas e erros. Um dia qualquer que passa lotado por nós guarda todos os segredos. Se fôssemos desembrulhá-lo com cuidado veríamos dentro uma bomba. Como desconectar o sistema? Corta o fio azul ou o vermelho? Se eu puxar aquele fiapo de luz, sairá dele, enrodilhado sobre si como um cachorro no crepúsculo (dá-lhe, Neruda) meu destino? Ou devemos deixar que ele fique em forma de bola luzidia como a de boliche, que atiramos nas nossas forças postas em guarda, que parecem como soldados de Beau Geste no deserto, já fora de combate mas ainda ostentando inúteis fuzis sob o ombro, apontados contra um horizonte de perguntas? O que fazer com um texto, que puxa palavra sobre palavra como um trem carregado de minério, a despencar pela serra em direção à voragem dos mercados unidos num continente único? Será possível perder tempo com o que aparentemente não interessa, gerar pensamento a esmo, perseguir o coelho da palavra entocado em dez mil pedaços amassados de papel? Escorregar bem na beira do abismo e na queda escutar seu contemporâneo rir de outra coisa? A solidariedade assim é uma criação excêntrica, um fórceps cultural, balsa de bambu no meio do maremoto. Se tua fala provoca bocejo nos outros, é porque teu bocejo é maior e veio antes. Distraído, estás pronto para repetir teu hábito ao fechar o portão e uma carta te surpreende. Deves aguardar passar todos os carros, diz a mensagem. Fique onde está. Não atravesse a rua. No lado de lá, um milhão de pessoas esperam. Eles não esperam por ti. Esperam por um milagre.
É, MAS... – Emita qualquer certeza para ver o resultado: ou o silêncio ou o troco: ”Não é bem assim". Em vez de irritação, o que se solta de ti deve ser uma pergunta. Falar, normalmente, é uma maneira de reiterar o que pensamos sobre os outros. Já sabemos o que os outros devem escutar, por isso não custa repetir. As tentativas de quebrar essa regra geram solidão. Então temos mil monólogos simultâneos, como se fossemos bobos de uma corte inexistente. É bom saber que ninguém nos explora, não somos vítimas de ninguém. Somos resultados de uma incapacidade cultural, não a de não “nos comunicar” (que dessa droga estamos fartos). Não sabemos como sair do trilho. Anulamos a possibilidade de verdadeiro encontro. Perdemos tempo com o entulho de linguagens jamais decifradas. Concordamos para não nos desesperar. Ou implicamos até o osso para reiterar nossa individualidade, a auto-estima da galáxia que formamos, com buraco negro e tudo. Quando tudo falha, o único recurso é a literatura. Um poema, feito em algum dia, e que até já recebeu melodia. Cante comigo e com o compositor Muts Weyrauch, aquele que em pleno 1969 lançou sua candidatura a presidente do centro acadêmico da arquitetura com slogans radicais como: "Mutuca põe o dedo no nariz; Mutuca não está inserido no contexto; Mutuca não faz crítica nem autocrítica". Nessa campanha histórica, um vasta pôster com Mutuca olhando para o alto, super-cool de óculos escuros, em imagem em silk-screen, emitia um balão de quadrinhos com a seguinte expressão: “That´s wonderful!” Foi execrado pela esquerda e direita. Quase ganhou a eleição. Foi carregado em triunfo pela rua.
HUBBLE – Esse é o nome do poema. Vamos lá: “Sou um desses planetas soltos sem sistema/ Longe do abraço circular/ da grave estrela/ Acompanhado apenas pelo olhar oblíquo Hubble/ A desandar errante como cauda/ de cometa/ A me arrastar em velocidade/ extrema/ no cosmo sujo sem jamais/ olhar para trás/ A única chance de parar é você levantar-se/ desse banco de jardim e dar-me/ um beijo” (Nei Duclós, com música de Mutuca).
RETORNO - O escritor revelação Tony Monti escreve no seu blog que os textos daqui estão ótimos, "com os quais não dá para discordar nem concordar em tudo", o que ele acha perfeito. Eu também.
1 de março de 2004
O CINEMA É MULHER
Um decepcionante Bil Murray apresentou, na noite do Oscar, a diretora Sofia Coppola como uma “garota americana” e celebrou o fato de ela ser a primeira diretora a ter indicação para o prêmio. Assim como Sean Penn, que foi reconhecido como o melhor ator da temporada, não representa a categoria “homem”, Sofia representa a si mesma e não o fato de ser “mulher”. Ser homenageada como espécie e não como indivíduo (como notou Jorge Luis Borges) é uma tragédia cultural, logo na arte maior que é o cinema. Como se as mulheres fossem uma exceção nessa atividade que deve tudo a elas e, graças a elas, sobrevive.
OUTSIDER - Sofia viu sua carreira de atriz ser destruída quando interpretou magistralmente seu papel no Poderoso Chefão III. Na noite do Oscar, ela parecia deslocada. Ganhou o prêmio de consolação, melhor roteiro, mas seu roteiro não prescinde da sua direção. Irmãos siameses, texto e imagem deságuam num filme sobre cinema, que denuncia brilhantemente o loteamento do olhar na sociedade globalizada. O crítico Rubens Edwald Filho torceu o nariz para o obra, tratando-a de “um filme sobre viagem”, o que é de uma insensibilidade a toda prova. A chamada Academia jorrou prêmios (11) para o Senhor dos Anéis, indicando assim o caminho a ser seguido: a da distorção da percepção a favor do espetáculo, velha bandeira de Hollywood. Sofia ataca a indústria da qual é uma outsider (por ser uma autora, e não uma lambe-botas do vasto comércio instalado) com um golpe na pleura: se o olhar está sufocado pela brutalidade da comercialização, é hora de buscar outro caminho, encontrar uma saída para o cerco, e essa solução está em colocar o cinema no espelho, para que se reconheça e saia do impasse. Para deixar isso claro, ela aposta na diversidade do relacionamento humano, desvinculado dos lugares comuns e cartas marcadas (portanto, fora dos padrões instalados). Esperamos que Sofia continue firme e não se renda à pressão que, ontem, ficou explícita. O que há contra ela? Não participa da estética oficial (a que destruiu Michael Jackson)? Tem o brilho do gênio num mar de mediocridades? É filha de um dos maiores cineastas do mundo – portanto, seria demais também reconhecer nela uma contribuição decisiva para o cinema? Precisa ser reconhecida como uma american girl para ser aceita? Fiquei tocado com sua maneira tímida de aparecer e falar. Timidez é a ausência do gesto forçado, é a transparência absoluta, é o espírito humano abrindo alas na estudada escola do fingimento das mídias.
Encontros e desencontros (Lost in translation), filme sobre viagem? Bah...
DEAN E PENN - Outro preterido da noite foi o mestre Clint Eastwood, apesar de ter sido parcialmente vitorioso com os dois atores do seu filme Sobre meninos e lobos, Sean Penn e Tim Robbins (melhor ator coadjuvante). Insisto na ligação entre Clint e Nickolas Ray, inclusive na direção de atores. A performance genial de Penn tem tudo a ver com o desesperado James Dean em Juventude Transviada. Essa escola americana de fazer cinema, que consegue o equilíbrio perfeito entre a autoria e a narrativa enxuta e contundente, foi percebida nos anos 50 e 60 pelos críticos franceses do Cahiers du Cinéma, especialmente Godard. Clint mantém a escrita, com o rigor da história bem contada, apesar de sempre render-se ao círculo de giz da América: sua crítica à violência não elimina o perfil americano de ser, antes o consolida, encontrando no caos o insumo necessário para a nação continuar de pé. Não seria condenável se os Estados Unidos não fossem o que são, um império, que ao reificar sua extrema nacionalidade acaba, por tabela, excluindo o resto das nações. Clint contribui com a América, sendo fiel ao espírito da origem, a de um território aberto para todos os povos do mundo, desde que prestem tributo à chamada homeland - coisa que nele chega a ter grandeza, mas em Bush transforma-se em horror e em Billy Cristal (que deitou-se sobre os chamados hispânicos na noite do Oscar) em cretinice. Clint está na dele e é um cineasta de primeira água, admirável, apesar dos seus defeitos (a aversão à Igreja Católica é um deles, e nisso o mestre compactua com os filmes americanos em geral).
O FINO DE TIM - O grande Tim Robbins, com sua cara eterna de menino, que já nos deu maravilhosas interpretações e é também um artista íntegro e crítico, consegue fazer, em Sobre meninos e lobos, um atormentado pai de família marcado por dolorosa experiência na infância. Tim despoja-se de todo maneirismo e carrega seu personagem com intensidade rara. Ele não explode no filme como Sean Penn (que transforma o ódio e o pânico em momentos seminais do cinema contemporâneo). Mas Tim também não é “contido”. Ele implode e quem é do ramo sabe como é difícil conseguir esse resultado. Tim Robbins faz parte desse seleto grupo de atores magníficos que nos lava a alma quando vamos ao cinema. Não concordo que, no filme, ele seja um coadjuvante. Está no mesmo nível dos outros personagens. Essa é a única coisa que se pode criticar no prêmio que recebeu ontem.
Denys Arcand foi também justamente premiado. Suas Invasões Bárbaras (melhor filme estrangeiro) é um tiro na pseudocultura acadêmica e um resgate da verdade nos bastidores do universo intelectual.
Não foi ainda a vez do Brasil (que, apesar de tudo, já ganhou um Oscar, o de melhor ator para William Hurt, no filme brasileiro de Hector Babenco, O beijo da mulher aranha). Mas vamos chegar lá.
RETORNO- Miguel Ramos, o melhor ator brasileiro ao lado de Othon Bastos, escreve elogiando o que falei aqui sobre Encontros e desencontros. Disse que é a primeira vez que lê algo a favor da performance de Sofia no Chefão III. E o que é mais gratificante: diz que sou do ramo. Nesse caso, sou mesmo de Ramos, Miguel Ramos (preparem-se que ele vem aí com novas interpretações magistrais).
OUTSIDER - Sofia viu sua carreira de atriz ser destruída quando interpretou magistralmente seu papel no Poderoso Chefão III. Na noite do Oscar, ela parecia deslocada. Ganhou o prêmio de consolação, melhor roteiro, mas seu roteiro não prescinde da sua direção. Irmãos siameses, texto e imagem deságuam num filme sobre cinema, que denuncia brilhantemente o loteamento do olhar na sociedade globalizada. O crítico Rubens Edwald Filho torceu o nariz para o obra, tratando-a de “um filme sobre viagem”, o que é de uma insensibilidade a toda prova. A chamada Academia jorrou prêmios (11) para o Senhor dos Anéis, indicando assim o caminho a ser seguido: a da distorção da percepção a favor do espetáculo, velha bandeira de Hollywood. Sofia ataca a indústria da qual é uma outsider (por ser uma autora, e não uma lambe-botas do vasto comércio instalado) com um golpe na pleura: se o olhar está sufocado pela brutalidade da comercialização, é hora de buscar outro caminho, encontrar uma saída para o cerco, e essa solução está em colocar o cinema no espelho, para que se reconheça e saia do impasse. Para deixar isso claro, ela aposta na diversidade do relacionamento humano, desvinculado dos lugares comuns e cartas marcadas (portanto, fora dos padrões instalados). Esperamos que Sofia continue firme e não se renda à pressão que, ontem, ficou explícita. O que há contra ela? Não participa da estética oficial (a que destruiu Michael Jackson)? Tem o brilho do gênio num mar de mediocridades? É filha de um dos maiores cineastas do mundo – portanto, seria demais também reconhecer nela uma contribuição decisiva para o cinema? Precisa ser reconhecida como uma american girl para ser aceita? Fiquei tocado com sua maneira tímida de aparecer e falar. Timidez é a ausência do gesto forçado, é a transparência absoluta, é o espírito humano abrindo alas na estudada escola do fingimento das mídias.
Encontros e desencontros (Lost in translation), filme sobre viagem? Bah...
DEAN E PENN - Outro preterido da noite foi o mestre Clint Eastwood, apesar de ter sido parcialmente vitorioso com os dois atores do seu filme Sobre meninos e lobos, Sean Penn e Tim Robbins (melhor ator coadjuvante). Insisto na ligação entre Clint e Nickolas Ray, inclusive na direção de atores. A performance genial de Penn tem tudo a ver com o desesperado James Dean em Juventude Transviada. Essa escola americana de fazer cinema, que consegue o equilíbrio perfeito entre a autoria e a narrativa enxuta e contundente, foi percebida nos anos 50 e 60 pelos críticos franceses do Cahiers du Cinéma, especialmente Godard. Clint mantém a escrita, com o rigor da história bem contada, apesar de sempre render-se ao círculo de giz da América: sua crítica à violência não elimina o perfil americano de ser, antes o consolida, encontrando no caos o insumo necessário para a nação continuar de pé. Não seria condenável se os Estados Unidos não fossem o que são, um império, que ao reificar sua extrema nacionalidade acaba, por tabela, excluindo o resto das nações. Clint contribui com a América, sendo fiel ao espírito da origem, a de um território aberto para todos os povos do mundo, desde que prestem tributo à chamada homeland - coisa que nele chega a ter grandeza, mas em Bush transforma-se em horror e em Billy Cristal (que deitou-se sobre os chamados hispânicos na noite do Oscar) em cretinice. Clint está na dele e é um cineasta de primeira água, admirável, apesar dos seus defeitos (a aversão à Igreja Católica é um deles, e nisso o mestre compactua com os filmes americanos em geral).
O FINO DE TIM - O grande Tim Robbins, com sua cara eterna de menino, que já nos deu maravilhosas interpretações e é também um artista íntegro e crítico, consegue fazer, em Sobre meninos e lobos, um atormentado pai de família marcado por dolorosa experiência na infância. Tim despoja-se de todo maneirismo e carrega seu personagem com intensidade rara. Ele não explode no filme como Sean Penn (que transforma o ódio e o pânico em momentos seminais do cinema contemporâneo). Mas Tim também não é “contido”. Ele implode e quem é do ramo sabe como é difícil conseguir esse resultado. Tim Robbins faz parte desse seleto grupo de atores magníficos que nos lava a alma quando vamos ao cinema. Não concordo que, no filme, ele seja um coadjuvante. Está no mesmo nível dos outros personagens. Essa é a única coisa que se pode criticar no prêmio que recebeu ontem.
Denys Arcand foi também justamente premiado. Suas Invasões Bárbaras (melhor filme estrangeiro) é um tiro na pseudocultura acadêmica e um resgate da verdade nos bastidores do universo intelectual.
Não foi ainda a vez do Brasil (que, apesar de tudo, já ganhou um Oscar, o de melhor ator para William Hurt, no filme brasileiro de Hector Babenco, O beijo da mulher aranha). Mas vamos chegar lá.
RETORNO- Miguel Ramos, o melhor ator brasileiro ao lado de Othon Bastos, escreve elogiando o que falei aqui sobre Encontros e desencontros. Disse que é a primeira vez que lê algo a favor da performance de Sofia no Chefão III. E o que é mais gratificante: diz que sou do ramo. Nesse caso, sou mesmo de Ramos, Miguel Ramos (preparem-se que ele vem aí com novas interpretações magistrais).