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18 de março de 2004

O COTOVELO DE VIDRO

A casa era pequena, mas bem planejada por um oficial da Marinha. Os ventos podiam fazer escândalo na vizinhança, mas nossas portas não batiam. Copa e cozinha eram a mesma peça, e a sala um cotovelo todo ajanelado que dava para a praia de São José, cidade grudada a Florianópolis. Lá mergulhei mais uma vez na literatura, enquanto a família compartilhava esse trabalho e um espaço privilegiado de areia, mar e árvores que davam limões, ameixas e bananas.

LUA DE PRATA - Sentei em frente à Olivetti rodeado pela paisagem: pescador que embocava seu fino e comprido barco no rastro do sol recém nascido, lua grande de prata que subia, fazendo ruído silencioso de lua cheia. Resgatei o tempo em que estive perto dali dez anos antes, saído de Porto Alegre, quando me reuni com alguns amigos para dividir a mesma casa. O que não esperava era o papel que coube a cada um no texto, que saiu assim, de primeira, como dizem em Uruguaiana. As memórias tornaram-se apenas insumo e ponto de partida.Os personagens ganhararam vida própria e me conduziram para inúmeras revelações. Descobri nossa extrema precariedade, fruto de dupla exclusão. Primeiro, estávamos fora do mercado (isso em 1972, época em que acontecia a história, e também em 1981, quando escrevi aquele relato ficcional, o que diz tudo sobre a crise permanente que se abate sobre nossa profissão). Segundo, estávamos fora das decisões do centro do país. Praticamente fugimos para a ilha, nossa descoberta daquele tempo, mal imaginando que um dia aquilo iria virar moda, não só entre gaúchos, mas também entre paulistas, e agora, mais do que nunca, um imã para povos do mundo inteiro. A revelação maior foi deixar que cada personagem mostrasse a integridade específica de vidas diferentes da minha. Mesmo o personagem que é baseado em mim ganhou uma forma totalmente diversa do que eu imaginava. Isso significou um alívio para a carga que caía nas minhas costas. Por meio daquelas pessoas irreais descobri um pouco mais do que somos. Podem chamar de psicanálise, mas prefiro literatura mesmo. Naquele cotovelo de vidro, escrevi inteira a primeira parte do romance que lanço no próximo dia primeiro de abril, na Fnac de Pinheiros, junto com autores maravilhosos, como Maria José Silveira, Roberto Freire e Paulo Francis (in memoriam). A segunda parte do romance é outra história, embora pareça ser (talvez seja mesmo) a continuação da primeira.

SENTIDO - Cabo Adão ouviu meu relato acima na sua postura habitual, a de sentido. Fiquei curioso com a maneira cerimoniosa com que me tratava, como se me devesse algo.
- Por que o senhor é tão sério, Cabo Adão? E o que me intriga é que certamente é muito mais velho do que eu mas aparenta ter trinta anos no máximo.
O militar tinha colocado parte do seu rosto fora da sombra enquanto acendia outro palheiro, já na posição de descansar.
- Nós, da Brigada, somos preparados para tudo, disse. E tratamos todos com o maior respeito. Somos legalistas, por isso usamos o lenço branco. Defendemos o governo, seja quem for. Prefiro o tacão do Estado do que a degola das revoluções...
E me olhou, quase de maneira desafiadora. Seu rosto mulato quase escuro de índio de cabeça ovalada tinha no alto um curtíssimo pixaim bem cuidado. Sobrancelhas muito finas, boca firme, falava como quem emitia ordens, mas, paradoxo total, num tom de quem só obedecia.
- O senhor se sente em dívida comigo, cabo Adão?
- Devo favores ao seu tio que me salvou na guerra de um monte de ferimentos. E fui amigo do teu pai. Mas o que devo mesmo são as palavras que ouvi do teu tio no dia em que fui humilhado por um tenentinho lá no Rio de Janeiro.
Lembrei então da história que Waldemar Ortiz contava quando eu era pequeno. De que um anspeçada (aquele militar que fica entre o soldado e o cabo), por ser analfabeto, recebeu uma reprimenda no Rio, em plena revolução de 30, diante da tropa. Waldemar perfilhou-se e respondeu ao oficial. Disse o velho tio:
- Esse homem lutou comigo em quatro revoluções. Merece mais respeito. Na hora de matar, ninguém perguntou se sabia ler.
Isso foi dito, claro, depois que a tropa tinha dispersado, um frente ao outro. Mas Cabo Adão tinha escutado tudo.
- Quem é da sua família manda e não pede, disse cabo Adão.
Fez um longo silêncio, recolheu-se novamente para o canto. Eu estava cansado de ficar de pé naquele corredor, cercado por ruídos de elevador e teto velho.
- Não tem um lugar para a gente sentar e conversar? perguntei.
Cabo Adão apagou o palheiro num velho cinzeiro abandonado no canto. Acocou-se para fazer isso. Depois levantou-se, de cabeça erguida, como sempre:
- Vamos ficar de pé. Não é hora de descansar. Me conte agora sobre a segunda parte do romance, aquela em que aparece o caudilho.
Dito isso, olhou mais uma vez ao redor, como se estivesse escutando o barulho da espada do general Honório raspando algum andar acima, onde certamente se aquartelava a tocaia dos maragatos.

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