Páginas

20 de dezembro de 2020

CACHORROS

 Nei Duclós 


Os passarinhos são cachorros 

Correm atrás dos pneus dos carros

Latem o dia inteiro

Mijam nos  portões dos vizinhos

Cheiram as  compras 

Se soltam pelas ruas e só voltam dois dias depois


De qualquer raça  pintassilgo gorriao bem te vi João do barro

São cachorros livres do canil

Bravos como buldogues sinistros como corujas 

em bandos como pombas

Os cachorrinhos voam sobre muros e telhados

E entram nas casas para ocupar os sofás 


Foram libertos das gaiolas

E mordem os passantes 

Mas sempre tem alguém para cuidar deles quando quebram a pata ou precisam de banho e tosa


Por isso são pilantras 

E vivem atormentando os gatos



ATENAS

 Neo Duclós 


Estás resolvida, tens teus amores

Com quem divides prazer e jantares 

És inacessível para o risco na sombra

Não apostas no azarão, que sou urso e ogro


Poderias ser feliz nas pradarias

Mas preferes as grutas do conforto

Pintas bisontes nas paredes nuas

Enquanto percorro trilhas pelas nuvens


Não dá certo, amor

Estamos presos ao viver à  toa

A não ser que eu rompa esse casulo torpe

E te faça sofrer, estátua de Atenas



ETERNO RETORNO

 Nei Duclós 


Lugar de trabalho são moradas eternas 

Você volta para a mesma redação

Sempre que te identificam imóvel no tempo 

Esse tirano que te engessa na moldura dos contemporâneos  


Você já deixou a profissão

Que acabou e foi substituída pela correção automática

Mas o chefe de reportagem continua lá 

Te obrigando a fazer aeroporto depois de uma tarde suada


Você não tem mais pique para tomar todas depois do fechamento

E assim conseguir parar de tremer

Chove na saída em altas horas

O último ônibus partiu


Você mora na rua alagada

No intervalo entre o expediente

E a madrugada no bar das putas

Onde todos se reunem

Desatentos ao extermínio dos dias

E à  persistencia desse amor pelo que fizemos

E que nos condenou para sempre


Corte cinco linhas

Depois pode ir embora

Dizem quando já é  tarde demais

Voltamos encharcados pelo que somos

Palavras impressas em corações de ouro

SOPRO

 Nei Duclós 


Arte não é  abandono 

Deixar à própria sorte

A criação que depende do artesão 

E não do sonho

Uma construção se faz com pedra

E só depois desenha 


Há força no ramo da armadura

Nunca o ar que é o vento quando se espreguiça


Inventar é  tornenta, não a calmaria

A pressão sobre a flor que está contigo

O poema torto ainda no estribo

Antes que te acordes

Que sou eu o sopro que me levanta

E recebes acima de qualquer suspeita


Arte se adona do céu que inventas  ao sair da linha

14 de dezembro de 2020

TESTEMUNHO

Nei Duclós 


Falo a verdade, mas ninguém escuta

Preferem que eu minta, água com açúcar 

Trago novidades,  criaturas novinhas

Vem bem do fundo, invisivel reduto

O que brilha bonito na superfície


Eu também  quero subir à tona

Boiar no sonho, rir dos mais velhos

Mas sou lava de vulcão extinto

Preso no impulso que não se derrama


Não dou mais testemunho, só de birra

Fecho-me em copas com a ladainha

A mesma que o árcade compunha

Para a pastora, melhor fantasia


Se escutarem no intervalo do trânsito 

Sou eu que proponho ao  tocar a buzina



6 de dezembro de 2020

RESTO

 Nei Duclós 


Não vai acontecer o que fantasio

É impossível o que parece explícito 

Haverá sempre conflito entre água e vinho

O açúcar não substitui o vício


A solidão se preserva imaginando vidas

Que não se concretizam, antes se esfumam

O cerco aperta e te confinas

Algozes invisíveis fazem a ronda

Inventas uma história mas é  só cinema


As luzes se acendem é  hora da faxina

Limpas os pés na suja inconfidência

És autor, resta a  literatura 



4 de dezembro de 2020

DOUTORA

Nei Duclós 


Jogas água fria com medo da fervura

Minha tocaia no miolo da curva

Foges assim do que será um dia 

Tu em meus braços a pedir clemência 


Achas que podes desfazer costuras

O fio que nos une é de boa procedência 

O amor destruirá tua teimosia

Teu álibi perfeito, o de ser jurista


As leis não te protegem, beldade no ofício

Não cubra o inevitável com tua pose de doutora

Já entrei em teu caminho, sacerdotisa 

Subo na carruagem enquanto dás gritinhos


Sou o monstro que invocas em teu êxtase

Chega de disfarces, pilha de ternura 



VARANDA

Nei Duclós 


A brisa bate na varanda banhada em sombra pelo calorão de dezembro


É o melhor momento

Pontuado pelo silêncio e a companhia do muro, a rede e a romanzeira


Ficará como exemplo mesmo que o tempo mude e nos leve para os confins do universo 


Somos eternos graças ao vento



3 de dezembro de 2020

PERFIL

 Nei Duclós 


Vês em mim o perfil antigo

Que há muito abandonei

Não sou um talismã para tua coleção 


Recusas a mudança que me transformou

pois no fundo queres ser o que passou


Chega de saudade, como diz a canção 

Durar não é  maldade, é só meu coração 

Que continua ativo como um sonho bom

E permaneço vivo como tu


Diga adeus ao que fui e ainda guardas como teu

A única revolução é o tempo, meu amor