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30 de junho de 2013

LA DOLCE VITA: O SUICÍDIO DA CONSCIÊNCIA



Nei Duclós

São misteriosos os caminhos percorridos por uma obra de arte em nossa vida. Somos o que somos porque nos impregnamos dos grandes autores, ou apenas nos identificamos com eles? Fomos formatados pelo que nos mostraram ou temos nossa contribuição autônoma, herdada ou elaborada, de princípios, certezas, hábitos, percepções que definem nosso perfil? Faço essas perguntas depois de rever La Dolce Vita (1960), de Federico Fellini, que encaro com um romance literário via narrativa cinematográfica e que versa sobre o suicídio da consciência, em que um protagonista, interpretado por Marcello Mastroiani, vive o vazio de uma rotina de  jornalista de fofocas que desiste da carreira de escritor e acaba publicitário.


O desfecho do filme é revelador. A turma dos madrugadores aporta numa praia onde está sendo recolhido um monstro marinho, uma arraia morta há três dias, que mantém um olhar onívoro, que devora todos ao redor. Marcello rodeia o bicho e não consegue escapar daquele olhar, que é a sua consciência morta ainda encarando o que fez da sua vocação. Ele se afasta do grupo e enxerga ao longe a garota que conheceu no dia em que tentou escrever seu romance. Retrato da inocência e da pureza, a menina veste luto sobre a branca areia e tenta lhe dizer alguma coisa, mas Marcello está impermeável, já fez sua escolha. Então ele se retira e a moça é filmada em seu esplendor de vida nova e nos olha como denúncia e conivência.

Ficamos firmes em nossa vocação porque não quisemos ser aquele pobre profissional romano que circula por vários ambientes humanos com seu tédio e sua falta de escrúpulos? Sabíamos do perigo antes de ver este filme primoroso? Acredito que Fellini e tantos outros nos criaram e nos decidimos pela arte, embora tenhamos também cedido diante dos perigos da sobrevivência. A obra de arte é sempre um parâmetro e a ela retornamos para entendermos melhor o que se passa conosco. Eu tinha esquecido quase tudo do filme, foi como ver pela primeira vez, mas senti que faço parte dele. Lembrava apenas algumas cenas, como o célebre banho de Anita Ekberg na Fontana de Trevi, ou o impacto da notícia da morte da família no assédio dos paparazzi sofrido pela viúva que ainda não sabia da morte do marido e filhos.

Vejo o filme como um romance (que contou, no script de Fellini, com seus colaboradores habituais, como  Ennio Flaiano eTullio Pinelli) com capítulos bem definidos numa cidade entregue ao fetichismo religioso e da indústria do espetáculo (o que às vezes se confunde, como na cena da igreja em que Marcello ouve o amigo Steiner, interpretado por Alain Cunny, tentar jazz no órgão). A visita da estrela clone de Marilyn Monroe com sua estupidez assessorada, seus arroubos megalomaníacos, sua manipulação dos homens, é uma crônica cruel de costumes da Sétima Arte comercial e do jornalismo de entretenimento. Fellini é radical e não deixa pedra sobre pedra. A surra do tarzã Lex Baker na mulher que passou a noite fora com Marcello, que também apanha, é o final desse capítulo primoroso e inesquecível, que praticamente diz tudo sobre o vazio das vidas cooptadas para a exposição milionária de egos.

Um capítulo que me chamou a atenção pela coincidência com outro filme de Fellini, Oito e Meio, de 1963, foi a do casal de crianças que viram Nossa Senhora. Está tudo lá: as estruturas enormes de ferro num descampado com suas luzes feéricas, a loucura coletiva em torno de uma miragem, o rodopiar perdido do protagonista que participa da cena com sua indiferença criminosa. Há a destruição pela chuva e pelo vento e a apoteoso da multidão que corre como louca num cenário de ruínas.

A relação de Marcello com a namorada louca, suicida e ciumenta Emma, interpretada por Yvonne Furneaux, é um drama de excessos que mergulha num intimismo de brutalidades, onde se diz tudo e as pessoas saem machucadas e incapazes de se separar. É um capítulo que se desenrola ao longo do filme e se contrapõe, por se circunscrever ao círculo do casal, ao ruidoso desfilar de personagens bizarros, todos tirados de uma elite absurda, perdida, decadente e mortal. A porção do filme rodada num castelo onde se caçam fantasmas na festa patética, mostra o que foi feito de um poder tradicional e aristocrático que se esvaiu diante da imposição da economia invasiva americana do pós guerra.

Steiner, o amigo de Marcello, é seu modelo de dedicação à família, de concentração e sobriedade, avesso à roda viva em que está metido. Mas é uma ilusão. O próprio Steiner avisa que não é feliz e que preferia se desperdiçar numa vida sem compromissos do que se reduzir a uma cela doméstica. O assassinato dos filhos seguido de suicídio é a prova de que aquela casa tão cheia de talentos o tempo todo, de festa entre intelectuais e artistas, era tão vazia quanto a reunião de nobres falidos ou estrelas do jornalismo e do cinema.

A salvação de Marcello não estava nos outros, mas em si. Ele não teve coragem de encarar essa verdade e entregou-se para o pior dos mundos, a mentira da publicidade, onde se transforma num bruto manipulador de pessoas, um execrável personagem da noite romana. Teve sua chance quando tentou entregar-se ao seu verdadeiro ofício, o talento que no fim abandonou. Preferiu que sua consciência se suicidasse por preguiça e covardia. Eis a lição profunda do Mestre Federico Fellini, insubstituível na sua obra que colocou o cinema no mais alto nível da arte humana.

Ninguém se compara a ele hoje. O remédio é revisitá-lo para redescobrir o que precisamos. Revendo grandes filmes como este, podemos nos conhecer melhor e encarar a vida com menos dor e mais vontade de acertar.



29 de junho de 2013

ESTADO DE ARTE




Nei Duclós
 


Minha fuga não tem conserto, te reencontro quando fecho o círculo.

Caprichaste ao vir ao mundo. Mulher em estado de arte.

Não acredite quando dizem que falo coisas sem motivos. Tudo passa pelo crivo do sentimento, meu oficial de Justiça.

Linda, palavra que se esvazia, com exceção da tua imagem, que melhora a cada dia.

Surpreendes o olhar cansado de ler o que estava escrito És um cristal lapidado pela doçura infinita.

A toda hora te clico, estou ficando ridículo. Voarei para outras redes, para escapar do teu visgo. Talvez não seja preciso, pois lá estarás , feminina.

Só assim o dia faz sentido. Quando te mostras inteira, à mercê da poesia.

Sorris enquanto puxas o joelho com tuas mãos que combinam. Quem te ensina ser tão bela, flor de obra tão íntima?

Pare de ser tão bonita. Fico sem saber o que dizer.

Mudaste o foco. Demorei a entender pois o amor é uma espécie de miopia.

O que não amarra é a mentira. Diga o que sinto.

Quando sonhei, queriam que eu despertasse. Quando acordei disseram que estava sonhando.

Gelei com tua frieza. Depois não peça calor, que já não tenho.

Mensagem urgente: sonhei com teu beijo.

Te atiras antes que eu suma. Aparo teu pouso em minha trilha.

Juntinha como coberta de lã, das que não mais se fabricam, vinda de relentos e que se aconchega nesta friagem noturna .

Evito as palavras óbvias, gastas de tanto uso. Mas elas são um vício. Resgato todas do exílio quando, desarmado, falo contigo.



RETORNO - Imagem desta edição: obra de Renoir.

COSMO PURO



Nei Duclós

Por que temer a morte se temos o céu?
A redoma da noite sem lua protegia
o olhar órfão das estrelas.
Foi-se a energia, ficou o cosmo puro.

Faltou luz para obtermos o solo
brilho terreno, vislumbre nos confins
lá onde nascemos e iremos um dia
quando o sol se puser no fundo escuro

Janela de sonho que Deus guarda
solidão gerada pela consciência
viagem além do ser, oculto plenilúnio

Chamam de mistério, mas somos fonte
de tudo o que dispõe o espesso rosto
nossa miragem na catedral de espelhos

28 de junho de 2013

FERRO NA UNHA: DITADURA, O DESMANCHE DO INDIVÍDUO






Nei Duclós
Invasão de privacidade é tratar todo mundo como terrorista. Hoje temos prova disso, quando o universo digital se presta à espionagem imperial. A diferença é que estamos na época da espionagem industrial, enquanto os anos de chumbo, no Brasil, estavam mais para a ação artesanal. Em vez de bits e bytes, ferro e unha.

A diferença fundamental, no entanto, é que nenhuma ação invasiva que se limite à linguagem, às mensagens e aos telefonemas se compara ao que foi feito nos porões da ditadura, quando não havia o sequestro da palavra apenas, mas do corpo. No caso do romance“OS VITRAIS DA SALA À PROVA DE SOM”, de MARCO ROZA , de todo o corpo, das vísceras à pele. A tortura, sob o álibi da repressão e prevenção de crimes contra o Estado, fazia uma autópsia sobre organismos ainda vivos, que perdiam os contornos de fora e dentro, da diferença entre criatura e atestado de óbito.

O que faz a literatura com esse evento, como lidar com a tragédia? Uma narrativa tradicional se prestaria à alienação, pois se fundaria sobre percepções irremovíveis, fronteiras consensuais, acordos. É preciso ser fiel ao esquartejamento, o que Marco Roza faz com a eficiência de um legista. A ditadura destruiu o indivíduo, mas não suas pistas, seus rastros. Os órgãos flutuam num ambiente de pesadelo, expostos para o leitor como um funeral de horror, transparente e sem conexões lógicas. O narrador, neste livro, faz parte do desmanche e divide-se em 134 porções fatiadas de textos, que cruzam os monólogos de personagens submetidos ao terror, tanto como vítimas quanto como algozes dos outros e de si mesmos.

Ser fiel ao que aconteceu de fato implica essa apropriação radical de uma literatura sem concessões, trabalhada como síncopes, como fosse também o resultado da dor infligida por um tempo indeterminado, eterno, já que anexou a morte no seu desfecho. Mas a morte, verdadeira, brutal, torna-se forçosamente aparente pois os espíritos vagam com suas heranças de misérias para tentar recuperar o que foi irremediavelmente dissolvido. Brota então todos os humores, suores, rebotalhos, sangramentos, excrementos, medos, ansiedades, gozos e esperanças partidas de quem já foi individuo e se descosturou ao se submeter ao mal lacrado num ataúde que pousa bem no miolo da transparência.

Os personagens se enxergam e trocam de papéis, se cruzam em interprelações intensas, fogem para memórias que voltam mais cruas, tentam expressar o que a tortura sepultou. Mas a realidade, ou o toque definitivo nessa arena confusa que ainda alimenta alguma esperança, é o caixão de conteúdo indevassável. A claridade dolorosa da narrativa tropeça na escuridão do que foi imposto. A ditadura vence e os personagens só conseguem escapar quando transcendem o beco sem saída em que foram metidos. Encontram então um país modificado, indiferente à sorte dos combatentes, de olhos tão fechados quanto o que foi enterrado em lugar remoto.

Os vitrais da dor exposta, em confronto coma escuridão do caixão bem no meio da sala onde a linguagem das vítimas dominam, é a espinha desse livro que soma os gritos de quem se foi e que ao mesmo tempo revela seu espólio. Pois aqui a literatura não se presta ao jogo das aparências sob custódia, que sobram no imaginário imposto por inúmeras linguagens, tanto as corporativas quanto as políticas, culturais e religiosas. Trata-se de recuperar o perfil perdido de uma história brutalmente assassinada e que se presta a manipulações de todas as tendências. E que remove, pela literatura, a capa criminosa de quem ainda tenta escondê-lo.

RETORNO - Serviço: Email do autor: marcoroza@gmail.com - Contato através de 0800-11-1239. O livro aqui.

ANUNCIAÇÃO



Nei Duclós

Deus ao nascer pôs-me na forma
deu amor a quem eu tenho apreço
templo do esplendor e do começo
espírito que me habita por inteiro

poema de oração, flores da infância
que um dia ao Senhor submeteu-se
não como escravo, mas cordeiro
criatura que do coração se lança

balido de pastor, coro de montanha
anjos ordenam a próxima ciranda
jogo sem razão, corpo antes do vento

Estávamos sós na sarça ardente
quando o fogo falou, momento santo
descemos com a lei, nossa vergonha


RETORNO -  Imagem desta edição: detalhe de obra de Da Vinci.

27 de junho de 2013

RESPIRO



Nei Duclós

Amor é o mecanismo do poema
feito de encaixes, fluidos e perfumes
do pedregulho extrais a açucena
palavra doce que na dor não dura

Cai das mãos a graça mais extrema
ao perder o tom da embocadura
cansaste da palavra, musa plena
flora de olhares fartos de mesuras

Queres verdade, esse raro espécime
que não medra no vício dos arrulhos
algo que fique, a habitar o espírito

Não sou o mais indicado, tenho dúvidas
de ser o encanto que tanto procuras
Mas só respiro se em teu mar mergulho

RETORNO - Imagem desta edição: Marilyn Monroe.