Nei Duclós
Invasão de privacidade é tratar todo mundo como terrorista. Hoje temos
prova disso, quando o universo digital se presta à espionagem imperial. A
diferença é que estamos na época da espionagem industrial, enquanto os
anos de chumbo, no Brasil, estavam mais para a ação artesanal. Em vez de
bits e bytes, ferro e unha.
A diferença fundamental, no entanto, é que nenhuma ação invasiva que
se limite à linguagem, às mensagens e aos telefonemas se compara ao que
foi feito nos porões da ditadura, quando não havia o sequestro da
palavra apenas, mas do corpo. No caso do romance“OS VITRAIS DA SALA À PROVA DE SOM”, de MARCO ROZA , de todo o corpo, das vísceras à pele. A
tortura, sob o álibi da repressão e prevenção de crimes contra o Estado,
fazia uma autópsia sobre organismos ainda vivos, que perdiam os
contornos de fora e dentro, da diferença entre criatura e atestado de
óbito.
O que faz a literatura com esse evento, como lidar com a tragédia? Uma
narrativa tradicional se prestaria à alienação, pois se fundaria sobre
percepções irremovíveis, fronteiras consensuais, acordos. É preciso ser
fiel ao esquartejamento, o que Marco Roza faz com a eficiência de um
legista. A ditadura destruiu o indivíduo, mas não suas pistas, seus
rastros. Os órgãos flutuam num ambiente de pesadelo, expostos para o
leitor como um funeral de horror, transparente e sem conexões lógicas. O
narrador, neste livro, faz parte do desmanche e divide-se em 134
porções fatiadas de textos, que cruzam os monólogos de personagens
submetidos ao terror, tanto como vítimas quanto como algozes dos outros e
de si mesmos.
Ser fiel ao que aconteceu de fato implica essa apropriação radical de
uma literatura sem concessões, trabalhada como síncopes, como fosse
também o resultado da dor infligida por um tempo indeterminado, eterno,
já que anexou a morte no seu desfecho. Mas a morte, verdadeira, brutal,
torna-se forçosamente aparente pois os espíritos vagam com suas heranças
de misérias para tentar recuperar o que foi irremediavelmente
dissolvido. Brota então todos os humores, suores, rebotalhos,
sangramentos, excrementos, medos, ansiedades, gozos e esperanças
partidas de quem já foi individuo e se descosturou ao se submeter ao mal
lacrado num ataúde que pousa bem no miolo da transparência.
Os personagens se enxergam e trocam de papéis, se cruzam em
interprelações intensas, fogem para memórias que voltam mais cruas,
tentam expressar o que a tortura sepultou. Mas a realidade, ou o toque
definitivo nessa arena confusa que ainda alimenta alguma esperança, é o
caixão de conteúdo indevassável. A claridade dolorosa da narrativa
tropeça na escuridão do que foi imposto. A ditadura vence e os
personagens só conseguem escapar quando transcendem o beco sem saída em
que foram metidos. Encontram então um país modificado, indiferente à
sorte dos combatentes, de olhos tão fechados quanto o que foi enterrado
em lugar remoto.
Os vitrais da dor exposta, em confronto coma escuridão do caixão bem no
meio da sala onde a linguagem das vítimas dominam, é a espinha desse
livro que soma os gritos de quem se foi e que ao mesmo tempo revela seu
espólio. Pois aqui a literatura não se presta ao jogo das aparências sob
custódia, que sobram no imaginário imposto por inúmeras linguagens,
tanto as corporativas quanto as políticas, culturais e religiosas.
Trata-se de recuperar o perfil perdido de uma história brutalmente
assassinada e que se presta a manipulações de todas as tendências. E que
remove, pela literatura, a capa criminosa de quem ainda tenta
escondê-lo.
RETORNO - Serviço: Email do autor: marcoroza@gmail.com - Contato através de 0800-11-1239. O livro aqui. |
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