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20 de abril de 2013

BEM-TE-VI, SENTINELA DA BRAVURA



Nei Duclós

Improvisei um alongamento no quintal quando ouvi um barulho no telhado.
- Bem te vi! gritou o invasivo.
Pássaro sentinela como o quero-quero, meu testemunha de exercícios toscos matinais deve ter aprendido com os portugueses seu grito de guerra, repassando a lição de geração em geração de penas e ninhos, pois o bicho fatalmente se sentiu útil com a chegada dos colonizadores. Avisava os movimentos gerais das populações nos aldeamentos, anunciava visitas e alertava para o perigo. Fora ensinado talvez por dedicados veteranos que já não podiam mais subir morros ou escalar árvores para fazer o papel de vigia.

Na Guerra do Paraguai, era comum as tropas construírem andaimes para lá de cima vislumbrar o inimigo. Esse hábito foi substituído pelos voos de reconhecimento aí pelos anos 20. Foi um teco-teco que alertou Flores da Cunha que a tropa acantonada de tocaia de Honório Lemes tinha escolhido um rincão próximo para acampar. Pegou-os então de surpresa. O tiroteio fez voar panelas das carroças de mantimentos, obrigando o soldado tropeiro de 1893, já com mais de 60 anos em 1924, montar seu cavalo e gritar:
- Estende linha estende linha.

Os bem-te-vis devem ter achado que foram eles que avisaram os chimangos sobre a posição dos maragatos. Devem ter se assustado quando o pequeno avião sobrevoou o pampa, sorrateiro na nobre tarefa de entregar o ouro, numa época e lugar em que não havia muita preocupação com estratégia. O próprio Honório tinha se locomovido deixando à vista os rastros de seus combatentes , pistas de todo tipo, desde ferraduras marcando o barro até os novos sulcos de carros precários sulcando a grama molhada. Sua tropa eram um festival de voluntários e convocados. Tinha velho, tinha china e até mesmo atiradores sempre abraçados a suas armas de fogo, que carregavam pelas revoluções afora.

No passo do Guaçu Boi, onde se deu o entrevero, o estrago foi grande e pegou de calça na mão dois nordestinos pouco afeitos aos hábitos do pampa. Com engulhos diante da carne fria servida de manhã entre os gaúchos guerreiros, eles foram atrás de uma matriz que lhes fornecesse leite, algo que conheciam de suas infâncias no interior de Pernambuco. Foi assim que Juarez Távora e João Alberto, meio perdidos no ermo, ouviram a metralha e a gritalhada ao longe e voltaram correndo para o lugar da batalha. Mas já era tarde. Honório batia em retirada enquanto Flores fazia prisioneiros e vencia aquela quadra da longa guerra dos anos 20.

Foi só no ano seguinte que Flores conseguiu encurralar Honório na beira tormentosa do Uruguai. Muitos maragatos tentaram atravessar o rio mas se afogaram. Honório dispensou a todos e entregou-se junto com os seus filhos.
- Devo lhe chamar de doutor ou general? perguntou Honório para Flores.
- Sou bacharel em direito, pode me chamar de doutor, disse o caudilho.
- Está certo. General até um índio rude como eu pode ser, já doutor são poucos que conseguem, disse Honório. E entregou-lhe o revólver.
- Guarde sua arma, general, disse Flores. Um bravo não se separa do seu instrumento de luta.

E foi assim que se deu o encontro entre dois guerreiros do Brasil profundo, num tempo submerso, numa época pouco estudada e compreendida e que hoje soa como parábola ou anedota. Talvez pela solenidade dessas cenas os bem-te-vis resolveram manter seu grito, tornado então obsoleto. E é de memória que anunciam no mundo forrado de olhos digitais por toda parte, presenças adventícias nas ruas, avenidas, matos ralos que sobreviveram, janelas e quintais.

Bem te vi, dizem eles. Alguém se aproxima para desafiar a bravura.