Nei Duclós
Improvisei um alongamento no quintal quando ouvi um barulho
no telhado.
- Bem te vi! gritou o invasivo.
Pássaro sentinela como o quero-quero, meu testemunha de
exercícios toscos matinais deve ter aprendido com os portugueses seu grito de
guerra, repassando a lição de geração em geração de penas e ninhos, pois o
bicho fatalmente se sentiu útil com a chegada dos colonizadores. Avisava os
movimentos gerais das populações nos aldeamentos, anunciava visitas e alertava
para o perigo. Fora ensinado talvez por dedicados veteranos que já não podiam
mais subir morros ou escalar árvores para fazer o papel de vigia.
Na Guerra do Paraguai, era comum as tropas construírem
andaimes para lá de cima vislumbrar o inimigo. Esse hábito foi substituído
pelos voos de reconhecimento aí pelos anos 20. Foi um teco-teco que alertou
Flores da Cunha que a tropa acantonada de tocaia de Honório Lemes tinha
escolhido um rincão próximo para acampar. Pegou-os então de surpresa. O
tiroteio fez voar panelas das carroças de mantimentos, obrigando o soldado
tropeiro de 1893, já com mais de 60 anos em 1924, montar seu cavalo e gritar:
- Estende linha estende linha.
Os bem-te-vis devem ter achado que foram eles que avisaram
os chimangos sobre a posição dos maragatos. Devem ter se assustado quando o
pequeno avião sobrevoou o pampa, sorrateiro na nobre tarefa de entregar o ouro,
numa época e lugar em que não havia muita preocupação com estratégia. O próprio
Honório tinha se locomovido deixando à vista os rastros de seus combatentes ,
pistas de todo tipo, desde ferraduras marcando o barro até os novos sulcos de carros
precários sulcando a grama molhada. Sua tropa eram um festival de voluntários e
convocados. Tinha velho, tinha china e até mesmo atiradores sempre abraçados a
suas armas de fogo, que carregavam pelas revoluções afora.
No passo do Guaçu Boi, onde se deu o entrevero, o estrago
foi grande e pegou de calça na mão dois nordestinos pouco afeitos aos hábitos
do pampa. Com engulhos diante da carne fria servida de manhã entre os gaúchos
guerreiros, eles foram atrás de uma matriz que lhes fornecesse leite, algo que
conheciam de suas infâncias no interior de Pernambuco. Foi assim que Juarez
Távora e João Alberto, meio perdidos no ermo, ouviram a metralha e a gritalhada
ao longe e voltaram correndo para o lugar da batalha. Mas já era tarde. Honório
batia em retirada enquanto Flores fazia prisioneiros e vencia aquela quadra da
longa guerra dos anos 20.
Foi só no ano seguinte que Flores conseguiu encurralar
Honório na beira tormentosa do Uruguai. Muitos maragatos tentaram atravessar o
rio mas se afogaram. Honório dispensou a todos e entregou-se junto com os seus
filhos.
- Devo lhe chamar de doutor ou general? perguntou Honório
para Flores.
- Sou bacharel em direito, pode me chamar de doutor, disse o
caudilho.
- Está certo. General até um índio rude como eu pode ser, já
doutor são poucos que conseguem, disse Honório. E entregou-lhe o revólver.
- Guarde sua arma, general, disse Flores. Um bravo não se
separa do seu instrumento de luta.
E foi assim que se deu o encontro entre dois guerreiros do
Brasil profundo, num tempo submerso, numa época pouco estudada e compreendida e
que hoje soa como parábola ou anedota. Talvez pela solenidade dessas cenas os
bem-te-vis resolveram manter seu grito, tornado então obsoleto. E é de memória
que anunciam no mundo forrado de olhos digitais por toda parte, presenças
adventícias nas ruas, avenidas, matos ralos que sobreviveram, janelas e
quintais.
Bem te vi, dizem eles. Alguém se aproxima para desafiar a
bravura.