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19 de fevereiro de 2012

KIAROSTAMI E A DIALÉTICA DO FALSO E O VERDADEIRO



Nei Duclós

A cópia certificada, reconhecida como fiel ao original, dele se destaca por sua especificidade, pois não se trata da mesma coisa. Não pode, portanto, ser desprezada como mera clonagem, já que somos, por exemplo, reproduções reconhecidas de nossos ancestrais, mas criaturas diversas. Há uma dupla natureza no ser, como se ele imitasse o princípio quântico da porção básica de energia que tanto pode ser partícula quanto onda. Em seu filme Copie conforme, de 2010, Abbas Kiarostami trabalha essa dialética entre o falso e o verdadeiro, em que ambos trocam de papel, por meio do relacionamento de um casal, interpretado por Juliette Binoche e William Shimell.

A mulher é o compromisso, o homem, a irresponsabilidade. Ela arrosta com todos os problemas do filho adolescente, viciado em jogos eletrônicos e McDonald´s, e está separada do marido depois de 15 anos de relacionamento. Ele acha que o homem tem de viver uma vida à parte da família e acha o garoto um ssábio pelo seu hedonismo. Paradoxalmente, a mulher é a fantasia, o homem o pragmatismo. Ela sonha com um relacionamento duradouro, ele aposta numa vida sem vínculos.

O homem acaba de lançar um livro, que tem o mesmo título do filme, em que explora com diletantismo a dupla personalidade da cópia e do original na história da Arte. Por abordar o tema de modo pessoal, a partir de estímulos não acadêmicos, ele é uma espécie de cópia de um scholar, um especialista. Por negociar produtos da Arte sem se aprofundar no assunto, ela é também a imitação de uma especialista no mercado das esculturas e pinturas.

A cena e a história do filho que segue a mãe sem nunca alcançá-la, de propósito, é uma metáfora desse jogo entre a origem e sua reprodução. Trata-se do insight que originou o livro do autor, que está sendo alvo do assédio da mulher. Pois o filho flagra a mãe de olho no escritor, que lança sua obra participando de maneira irresponsável de um evento, deixando as pessoas esperando por nada, só porque o dia está bonito lá fora. O álibi dela é seu interesse pelo tema e por isso compra vários exemplares para dar de presente.


Ela cria a oportunidade do encontro levando-o para uma aldeia que combina exposição de arte com hotelaria e lugar de celebração de casamentos, pois é famoso para dar sorte a quem começa uma vida conjugal. Está na cara a armadilha: ela precisa de um novo casamento e por isso carrega seu futuro marido para um lugar inspirador. Mas a dialética da dupla natureza das coisas e situações se manifesta.

Binoche mostra uma Gioconda tida como verdadeira, de ancestralidade romana, mas era apenas cópia encomendada por Lorenzo de Médici a um falsário. A percepção sobre a obra a certificava como verdadeira, mas foi considerada falsa. Mas a população que freqüenta o lugar não se importa e celebra uma escultura na praça, também cópia, como se fosse verdadeira. O relacionamento fictício que se estabelece no casal, em que ele faz o papel do marido que volta e ela da esposa que recupera seu casamento, é também uma cópia, mas soa como verdadeira. É verdadeira para o espectador, pois o cineasta nos lembra que a interpretação é também a reprodução certificada de originais. Personagens são cópias ou são autênticos? São as duas coisas ao mesmo tempo, ás vezes se repelem, outras se confundem numa só.

Um personagem histórico interpretado numa peça ou filme é apenas representação, mas é encarado como verdadeiro para a história funcionar. Assim é o cinema, assim é a Arte: um desdobramento infinito de referências que tanto o amador quando o profissional tentam decifrar nas suas origens e trajetórias. Kiarostami nos brinda com um filme brilhante, que tem Juliette Binoche como a grande presença. Ela é uma Gioconda fiel ao seu original, a mulher de meia idade que se reinventa por meio da arte num novo relacionamento, que é ao mesmo tempo resgate do antigo.

O título brasileiro é Cópia Fiel, deveria ser Cópia Certificada, como fizeram os americanos. Devemos lembrar que nunca vemos o filme original, mas uma cópia sua. Kiarostami, que é de ramo, sabe que todo filme é sobre cinema.

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