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30 de setembro de 2009

NOITE VELOZ


Nei Duclós

Vento de estrelas
sopra no vôo
que invento

Nado sobre mim
Viagem de espanto
Vagas visões de sonho

Na direção da cabeça
Planetas sem corpo
e espaços em branco

A lua, longe
me pensa
enquanto esqueço

Procuro o tempo
que o céu esconde

(Poema do livro No meio da rua, L&PM Editores, 1979)


RETORNO - A imagem é "Mandala Herança", quadro de Juliana Duclós.

29 de setembro de 2009

JOVENS PROFESSORES SINDICALISTAS ASSASSINADOS


"MANIFESTO DE REPÚDIO AOS ASSASSINATOS DOS PROFESSORES SINDICALISTAS EM PORTO SEGURO

Mártires

Matar líderes sindicais atuantes, como Álvaro Henrique (foto) e Elisney Pereira, professores determinados que estavam dispostos a enfrentar pressões, é um tiro a queima-roupa na Democracia. E não torna as coisas mais fáceis.

Trata-se de um banho de sangue na Constituição brasileira, que joga a reputação da cidade de Porto Seguro na lama.

E isso no Brasil de Lula e na Bahia de Wagner.

O Estado Democrático de Direito não pode tombar mortalmente nos braços da impunidade.

A sociedade impotente se entrega refém do medo.

Morre também com Álvaro e seu colega Elisney um pedaço de cada um de nós que tem sede de Justiça e de Paz.

Vai para debaixo da terra toda a esperança que eles plantaram em suas trajetórias de luta como educadores e dirigentes sindicais.

E cabe a nós sobreviventes a tarefa de regar os rebentos que porventura surjam dessas sementes, mesmo que alguns desistam, ainda assim é preciso regar de novo o sonho de um mundo justo e pacífico.

Mataram Álvaro e Elisney covardemente, numa emboscada, ato brutal e repugnante.

Mas a impunidade não pode prevalecer. Temos a obrigação moral de resistir e seguir em frente, em respeito a honra dos professores mártires dessa história.

Devemos e podemos reerguer o Estado Democrático de Direito, convocar a sociedade para saber quem está do lado de quem. As entidades constituídas precisam dar as mãos e formar uma corrente capaz de enfrentar a realidade.

Precisamos cobrar das autoridades que encontrem os verdadeiros culpados e que eles sejam punidos.

Que Álvaro e Elisney vivam para sempre em nossos corações e mentes.

Geraldinho Alves
REDE IMPRENSA LIVRE – BLOG E JORNAL

APLB - EUNÁPOLIS / PORTO SEGURO

CREA - BAHIA/ INSPETORIA DE EUNÁPOLIS

ASSOCIENGE - ASSOCIAÇÃO REGIONAL DOS ARQUITETOS E ENGENHEIROS DE EUNÁPOLIS

SINTERP (SINDICATO DOS TRABALHADORES EM EMPRESAS DE RÁDIO E PUBLICIDADE)

CDL (CÂMARA DOS DIRIGENTES LOJISTAS) DE PORTO SEGURO

SITE POPULAR

RÁDIO 98 FM"

Deu no Jornal Imprensa livre


"Dor e revolta em Porto Seguro

POPULAÇÃO CHORA A MORTE DOS DOIS PROFESSORES SINDICALISTAS ASSASSINADOS


"Uma forte comoção tomou conta de milhares de pessoas no dia 24 de setembro, em Porto Seguro, durante o velório do corpo do professor Álvaro Henrique, 28 anos, que era presidente da APLB - Sindicato dos professores - e liderava uma greve da categoria no município. Ele tinha afirmado que a Educação municipal era a pior do estado e estava uma bagunça. Também fez denúncias envolvendo a prefeitura local e a gestão anterior da entidade que presidia.

A greve foi iniciada no dia 16. No dia seguinte três homens atraíram Álvaro para uma emboscada. Ele estava em companhia do professor e secretário da APLB, Elisnei Pereira, que também foi assassinado. O professor Álvaro assumiu a direção da APLB em junho deste ano. Ainda na véspera do atentado, ele afirmou à imprensa que a greve era por causa do descaso do Executivo com a Educação. Disse que proposta do governo municipal foi de 0% para reajuste salarial da categoria. A Secretaria de Segurança Pública do Estado nomeou quatro investigadores especiais para cuidar do caso, que está sob sigilo.

O professores sindicalistas da APLB foram atingidos por vários tiros disparados por três pessoas no dia 17 , numa emboscada feita na zona rural de Porto Seguro, conhecida como Roça do Povo.

O governo municipal publicou Nota Oficial, dia 18, declarando que era saudável o processo de negociação com os professores, fato que é desmentido pelo próprio Álvaro, na entrevista que deu à rádio 88 FM, dois dias antes de sofrer o atentado. Uma atitude considerada por muitos como erro político foi o governo municipal ter marcado uma coletiva de imprensa, reunindo autoridades locais, para o mesmo horário do velório e do enterro do professor Elisnei Pereira, no dia 18.

No dia 24, quando o corpo do professor Álvaro chegou em Porto Seguro, um fato revoltou ainda mais os professores, a negativa do Corpo de Bombeiros em ceder o carro para o cortejo fúnebre. A negativa criou um clima muito ruim entre as pessoas que estavam organizando o cortejo."

RETORNO - O manifesto (primeiro texto) foi publicado no blog Imprensa Livre.

FRASES LONGAS


Nei Duclós (*)

A frase longa servia para expressar pensamentos completos, complexos. Para isso eram usados todos os recursos, especialmente os apostos, aquele tipo de oração complementar que ajuda a refletir a intensidade do autor. Mas como a frase longa assumiu prestígio num tempo em que não havia tanto ruído, e as pessoas se dedicavam a escutar ou ler o que os outros diziam ou escreviam, imediatamente os oportunistas adotaram o estilo, para prejuízo geral.

Os textos adquiriram ostentação, em que os ornamentos escondiam objetivos escusos, sob a pretensa preocupação com a integridade das mensagens. O excesso contribuiu para a imposição de uma cultura artificial que contaminou a literatura e sufocou a cidadania. Quando vemos as catilinárias dos políticos, as justificativas extenuantes dos advogados ou as arengas do Executivo, sabemos que o pesadelo da linguagem assumiu o poder.

Para compensar o desvio de conduta, os escritores dedicaram mais espaço para a frase curta, que servia de contraponto nos textos clássicos, mas que, com as vanguardas, atingiu status de grande arte e beneficiou outras atividades, como o jornalismo, evoluindo para a contundência expressa em poucos caracteres, como vemos hoje nos microblogs. Ao mesmo tempo, a escassez das palavras, no lugar de representar a profundidade do pensamento sem os arabescos e firulas, acabou produzindo um rastro de ruínas. Vemos diariamente, em todas as rodas, a redução da lógica em função da repetição de jargões, tidos como pílulas fundamentais de sabedoria.

Ficou abandonado o ofício árduo capaz de reunir, num único conjunto de revelações, todo o espectro de uma situação real, reproduzida de maneira compensatória para interlocutores atentos e exigentes. Diminuiu o nível da compreensão, com o efeito colateral de ter sido jogado no ralo um acervo razoável de conhecimento. Ficamos com a reprodução infinita de sons recorrentes, restos de sílabas e palavras, em que se invoca o dom da telepatia para entender o que no fundo não guarda nada dentro de si.

É preciso resgatar a frase longa, no que ela de tem de grandeza e lucidez. Isso vai também recolocar no devido lugar a eficiência das frases curtas, quando perdem o excesso de importância insuflado pelo hábito, a soberba ou a preguiça.

RETORNO - 1. Imagem deste post: Island girl, obra de Juliana Duclós. 2. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 29 de setembro de 2009, no caderno Variedades, do Diário Catarinense.

28 de setembro de 2009

O QUE DIZ A LETRA DO HINO NACIONAL


Nei Duclós

(Como agora, por lei, as escolas são obrigados a fazer seus alunos cantar o Hino Nacional uma vez por semana - um exagero, nem precisava tanto, nem deveriam transformar essa ordem em lei -, reproduzo aqui, com algumas modificações, a edição do Diário da Fonte “O Poema Fundador” sobre o significado da letra do Hino Nacional, de Osório Duque Estrada)

A letra do Hino Nacional está crivada de críticas, como um São Sebastião amarrado ao poste. Existe até uma versão considerada mais popular, já que se faz escândalo sobre a linguagem usada, que estaria obsoleta, com metáforas exageradas. Diz-se que é grande demais, mas tem apenas 1.200 caracteres. Acho a letra de Joaquim Osório Duque Estrada uma obra-prima. Está fundamente enraizada na História do país e serve como desafio permanente pelas dificuldades que propõe. Em vez de fugir delas, precisamos abordá-las com espírito livre. E entender o que diz cada estrofe.

Ouviram do Ipiranga as margens plácidas
De um povo heróico o brado retumbante,
E o sol da liberdade, em raios fúlgidos,
Brilhou no céu da Pátria neste instante


A primeira estrofe seleciona o momento de decisão, o grito do Ipiranga, como semente do novo país. O desfecho, a Independência, não se resume à convocação do príncipe para a guerra. O conflito armado já estava desencadeado desde o ano anterior, em 1821, e só chegou ao fim no dia 2 de julho de 1823. O que raiou naquele instante foi a promessa da liberdade, o sol que cega (com raios fúlgidos), a luz ostentada, a liberdade imaginada. Um brilho no céu. O céu escuro da pátria (até então não-existente) se revelou com essa faísca. O brado retumba porque havia ressonância nacional, havia a percepção de que era preciso se separar de Portugal.

Se penhor desta igualdade
Conseguimos conquistar com braço forte,
Em teu seio, ó liberdade,
Desafia o nosso peito a própria morte


A segunda estrofe é o compromisso, o penhor, o significado do grito que coloca a nova nação contra a parede: ou se liberta, ou morre. Ou continua dependente, ou vira o jogo. O bordão da Pátria amada cria (ou faz referência a) o vínculo amoroso com a nova nação, que se torna objeto de adoração: Ó Pátria amada,/Idolatrada,/Salve! Salve!

Brasil, um sonho intenso, um raio vívido
De amor e de esperança à terra desce,
Se em teu formoso céu risonho e límpido,
A imagem do Cruzeiro resplandece.


O país nasce então, na terceira estrofe, desse raio vívido vislumbrado no momento do grito, desse sonho, dessa esperança e desse amor proposto para que a nação exista. A Pátria é uma revelação sem nenhum risco ou rasura. A imagem do novo país é como um céu límpido que se expressa com identidade própria, com a marca do Cruzeiro do Sul na sua face.

Gigante pela própria natureza.
És belo, és forte, impávido colosso.
E o teu futuro espelha esta grandeza


Esse país, que tem uma constelação como marca, possui a vocação de grandeza, ditada pelo vasto território conquistado em séculos e com o sacrifício de muitas gerações. Esse esforço coletivo transfere grandeza à nação que nasce, um gigante que não se abala, sereno (impávido colosso, metáfora maravilhosa). Nasce forte e é eterno, pois seu futuro é como o seu território, gigante, belo e forte. Ao mesmo tempo, em oposição aos invasores e colonizadores é uma terra abençoada e que cuida dos seus filhos, pois a todos os filhos acolhe, num projeto de irmandade social: Terra adorada,/ Entre outras mil,És tu, Brasil,/ Ó Pátria amada!/ Dos filhos deste solo és mãe gentil,/ Pátria amada,/Brasil!

Deitado eternamente em berço esplêndido,
Ao som do mar e à luz do sol profundo,
Fulguras, ó Brasil, florão da América,
Iluminado ao sol do Novo Mundo!


"Berço esplêndido" é a soberania, o regaço onde se aninha o país recém nascido, depois de muita luta. O país nasce soberano, bem plantado, para todo o sempre, no seu território, embalado pela sua vocação de grandeza. Ao som do mar , sua música primordial, inspiradora da sua música e poesia e à luz do céu profundo, um espelho que reflete a grandeza da nação soberana. Aquela faísca inicial, graças à grandeza da nova nação, faz do país uma criatura luminosa, gerada pelas promessas de um mundo renovado, num continente novo, a América. Esse país é de tamanho brilho e grandeza que pode ser visto como um ornamento de ouro, central, em forma de flor, nesse novo continente.

Do que a terra mais garrida
Teus risonhos, lindos campos tem mais flores,
“Nossos bosques tem mais vida”
“Nossa vida” em teu seio “mais amores”


Isso o torna diferente das demais (aqui, Osório Duque Estrada usa as metáforas da Canção do Exílio, de Gonçalves Dias,por isso esses dois versos estão entre aspas) . A natureza generosa sugere uma vida também diferente, fundada na felicidade e no amor. Por isso ela é idolatrada e sua representação (bandeira, mapa, cultura) deve ser saudada como um estandarte, um símbolo do amor eterno: Ó Pátria amada, Idolatrada, Salve! Salve!

Brasil, de amor eterno seja símbolo
O lábaro que ostentas estrelado,
E diga o verde-louro desta flâmula:
-Paz no futuro e glória no passado.


O poema define as cores do país (verde-louro) e seus fundamentos, sua vocação: paz no futuro e glória no passado.

Mas, se ergues da justiça a clava forte,
Verás que um filho teu não foge à luta,
Nem teme, quem te adora, a própria morte.


Há, entretanto, perigo na esquina. O país que nasce e se consolida pode ser ameaçado. A arma do novo país então é a clava forte da justiça, a guerra justa, que serve para reunir os cidadãos em torno de uma luta legítima, para valer, até a morte se for preciso. A certeza no país, o amor devotado a ele, não permite defecções. Esse país tão amado deve ser sempre como uma mãe amorosa para com seus filhos. Amor retribuído, de cidadão para a nação e vice-versa. Amor mútuo, recíproco: Terra adorada,/ Entre outras mil,És tu, Brasil,/ Ó Pátria amada! /Dos filhos deste solo és mãe gentil,/ Pátria amada, Brasil!

ANTOLOGIA - O hino é apenas linguagem, e linguagem é pura representação. Isso não o torna irreal. Ele existe concretamente e serve de parâmetro para a idéia de soberania do país, com identidade própria, legitimidade e futuro garantido. O hino não propõe uma situação estática. Ele propõe uma História, a nação que nasce a partir de uma decisão irrevogável; uma mitologia, a da grandeza soberana, representada pelas cores, o estandarte (a bandeira), a marca da sua legitimidade natural (o Cruzeiro).

O que é insuportável é alguém fazer trejeitos com a voz para tornar o hino mais "moderno". O que não devemos aceitar é usar os símbolos nacionais para implantar uma ditadura, para fazer patriotadas. O que não podemos esquecer, nesta maré alta da pirataria internacional, que os territórios continuam sendo conquistados, invadidos, comprados, tomados à força.

O Brasil existe porque está enfeixado em seus símbolos. Por isso a bandeira tremula ao vento e levamos a mão ao peito quando entoamos o poema fundador desse poeta fundamental, que tem sobrenome de rota, caminho, direção. E que deve fazer parte de qualquer antologia da nossa literatura, pois coube a ele dizer o que o país significa nos momentos mais solenes. Quando perdemos as eleições das diretas-já. Ou quando somos campeões do mundo. Ou quando enterramos um herói, que pela Pátria arriscou todos os minutos da sua vida.

26 de setembro de 2009

A AVÓ DAS HAVAIANAS E A CENSURA


Tiraram o comercial das novas Havaianas, em que a avó sugeria à neta que “desse” para o galãzinho da Globo. O que rola no comercial? Um duelo entre as duas mulheres para provar quem é mais moderna. A garota acusa a velha de ser ultrapassada por reclamar o uso de uma sandália num restaurante chic. Isso diz que a avó em questão segue a etiqueta, o código normativo de comportamento coletivo. Senão, ela não reclamaria. Diria: “Olha que moderna você é, assim como eu. Usa sandália num lugar onde deveria usar sapato e eu só dou força”. Mas ela fez o contrário, reclamou do relaxamento da outra.

Isso significa que a avó se preocupa com a imagem da neta, quer que ela se vista bem, se apresente de maneira adequada num restaurante fino. Normalmente, essa exigência está ligada a um objetivo óbvio: a de que a neta, bem vestida e apresentada, possa arrumar alguém para namorar e casar. Ou seja, na hora que a avó se manifesta contra a displicência da adolescente, ela mostra de que lado está, do lado do casamento, do relacionamento duradouro e oficializado.

Há um consenso sobre isso, tanto é que na fala seguinte, quando a velha sugere o galã da Globo para um namoro, a moça observa que deve ser chato casar com celebridade. O casamento está implícito no conhecimento mútuo. A neta sabe que a avó se preocupa com o encaminhamento dela, neta, para a vida adulta, e isso se faz por meio de uma roupa apresentável, sapato certo na hora certa etc. Nem passa pela cabeça da adolescente que a avó , de uma hora para outra, vá mudar de time.

Mas é o que acontece e aí está o impacto do apelo publicitário. A vovozinha finge que nem se referia ao casamento, como estava implícito desde o primeiro momento. Ela, para se mostrar moderna, diz que só pensou em sexo, o que é, notoriamente, mentira. Só é verdade se invocarmos a sublimação: no fundo, era a velha que queria transar com o garotão e usou a neta e a chamada revolução dos costumes como álibis. Mas a avó só queria ganhar o duelo e por isso apelou. É lógico que ela pensou num bom partido, famoso, jovem, bonito e rico, para a neta anônima, mas bonita e bem vestida. Se pintasse casamento, a velha senhora poderia até, nos almoços de domingos, tirar uma lasquinha. Como a netinha aprontou, chamando-a de ultrapassada, ela chutou o balde.

A avó deve estar com uma idade acima dos 55 anos, portanto faz parte da minha geração, que tentou romper os paradigmas sexuais liberando geral. Acabou todo mundo casando, pois relacionamento não é uma festa, implica descendência, solidariedade, destino, dor, prazer, coisas sérias demais para levar na gandaia. Mas ficou o resquício, a imagem, a vontade de não dar o braço a torcer. Ficou a pose. Todo mundo que se considera revolucionário acha que meter a esmo “não tem nenhuma” porque isso está ligado com a imagem da modernidade.

O sexo sem responsabilidade é mais antigo do que andar de a pé. Existe desde sempre. Mas como as novas gerações encontram os adultos já ressabiados, convencidos de que sexo faz parte de algo mais profundo, que tem a ver com coisas pesadas como a sobrevivência, psicológica ou física, então lhes parece, aos jovens, que os adultos são uns babacas que ficam se podando, quando o negócio é sair metendo bronca. Sabemos que a gravidez precoce hoje é pandemia. Tem a ver com essa moda, que pegou, já que os adultos, muitos ex-jovens radicais da revolução dos costumes, não se convenceram ainda e disseminam pela mídia, as ruas e praças a boa nova de “vamos fazer isso em plena rua” como dizia John Lennon.

A gandaia virou negócio milionário e temos a Madonna, com 230 anos, se achando gostosa e sacudindo as partes em público. Nas novelas, o roça-roça permanente e explícito nas inúmeras variações, significa apenas uma coisa: apelação pura e simples para ganhar índices positivos no Ibope, já que, para um povo escravo, endividado, castrado, sexo fácil disponível gera uma grana fabulosa. Mas por que não proíbem essa putaria geral e se invocaram com a velhinha? Porque o comercial mostra como o último reduto do sexo seguro, o casamento com amor, está sendo desmoralizado pelos que deveriam dar o exemplo. Isso pegou forte.

Não deveriam proibir o comercial, mas decifrar suas inúmeras mensagens. Nem adiantou, porque agora o filminho está na rede para quem quiser ver. Censura é besteira. O que devemos nos perguntar é se vamos ficar fazendo pose de “jóóóvens” à custa das novas gerações, que precisam do nosso exemplo e não das nossas partes baixas, nem de conselhos sacanas disfarçados de modernidade.

RETORNO - 1.Imagem desta edição: Lucia Berta no papel da avó. 2. Parece que Obama não gostou da chavecada do Berlusconi para cima da primeira dama americana, nas fuças de todo mundo. O italiano escroto comportou-se como o abominável que é fazendo gracinhas para a mulher do outro, olhando-a de alto a baixo e exclamando: "Fantástica", como se tivesse o direito de fazer isso. Ué, quando olhou para a brasileira menor de idade no encontro de cúpula, Obama parecia à vontade. Não gostou? Sentiu como dói uma saudade?

CONSPIRAÇÕES


Como vive num puxadinho ao lado de um grande menir, pedra debruçada sobre o mar há milhões de anos, Sinistrus Joe está sempre de antena ligada. A praia onde mora há vinte anos é escondida, não ia quase ninguém lá, até abrirem uma birosca. Isso atraiu gente e é preciso tomar cuidado.

A ilha está intensificando sua sintonia com os grandes centros e vai que algum guampa torta resolve querer se fazer de engraçadinho com nosso recluso ex-tudo. Ainda mais agora, quando conseguiu instalar um micro que capta banda larga gratuita (de captura intermitente) com pequena antena parabólica.

Fui exatamente saber como estava se dando com o novo aparelho, que ele ganhou de presente de amigo rico e pão-duro, alimentado por uma gambiarra puxada de um dos poucos postes da praia.


Ele me recebeu como sempre, me olhando longamente com aquele olhar de “tu, por aqui?” Até se costumar com minha presença, emitiu todos os sinais para provocar constrangimento(é um teste, para ver se você realmente está a fim de fazer a visita). Mas não costumo dar bola para essas pirações de Joe e fui direto ao assunto:

- Que você achou dos últimos acontecimentos, Joe, agora que você segue mais de perto o noticiário via web?
- Ficou mais fácil fazer as ligações, disse ele.
- Ah, é? Conseguiste um bom técnico para arrumar tua instalação?
- Não, isso não te diz respeito. O que estou falando é que agora dá para entender melhor a fonte dos acontecimentos, aquilo que se situa mais no fundo e que as hardnews são só uma amostra pálida e superficial.
Vendo minha cara incrédulo, atacou:
- Sei, teoria da conspiração. É preciso deixar claro o seguinte: coincidências existem, mas não com intenções políticas! Quando dois mais dois é igual a quatro num evento, é melhor seguir por esse caminho, que assim vamos entender do que se trata. Se não fizermos isso, o tempo passa, tudo fica impune e mais tarde, anos depois, a gente descobre que de fato tínhamos razão em desconfiar.
- Em que você exatamente está falando, Joe?

BOMBA EM SANTO ANDRÉ

- Você não acha estranho, escritor, que logo na região do ABC, reduto do partido do governo, tenha havido uma megaexplosão em pleno coração urbano, bem no momento em que todas as atenções se voltavam para Tegucigalpa?
- Não vejo nenhuma ligação, disse.
- Veja bem, o noticiário tem um limite, certo? Mesmo na rede, isso existe – ele é a capacidade limitada da tua leitura, ok? Ou você consegue ver tudo ao mesmo tempo? Não. Então, o que eles chamam de conteúdo atinge um nivel que não ultrapassa, não vai adiante. Pode ser o tempo de duração,como é o caso dos jornais televisivos normais,que ocupam no máximo uma hora. Nos impressos, esses limites são mais claros, ou tenho que explicar a quadratura do círculo?
- Não, eu entendi, é preciso editar, ciscar na infinidade dos acontecimentos algo que seja representativo do dia.
- Exatamente. Mas as hardnews se impõem, você não pode fugir do rolo em Honduras e colocar no lugar dele a pesquisa sobre a sexualidade dos adolescentes, por exemplo. Esse tipo de fato acaba tomando conta da maior parte do noticiário, impedindo que as abobrinhas normais emerjam, certo? Ora, é público e notório que o Brasil interferiu em país estrangeiro, impôs uma situação complicada na véspera de uma eleição que, se o presidente não tivesse sido deposto, seria apenas a confirmação de mais um mandato para ele, o que a Constituição proíbe sob pena de expulsão do poder, certo?
- Sim, não há dúvida. O golpismo é de quem contrariou a Constituição, não de quem tomou medidas contra isso.
- Isso nem precisa discutir.
- Mas parece que vão chegar a um acordo e o sujeito pode voltar ao poder.
- Mesmo que volte, não poderá ser candidato, que a Constituição proibe. Pelo menos por enquanto.
- Ok, mas vamos em frente.

- Muito bem. Para evitar constrangimentos, é preciso que o noticiário oficial se limite a alguns enfoques premeditados, como chamar de golpista o governo que a Suprema Corte autorizou. O resto, como a opinião de juristas independentes (não aparelhados) que esclarecem a situação, ou o fato de os hondurenhos na embaixada negarem comida para os brasileiros fica de lado? Isso criaria um desconforto. Era preciso desviar a atenção, preencher com algo explosivo.
- Você acha que...
- Exatamente. Esse troço está mal contado. Os donos do local estavam sumidos, se esconderam, custaram a dar sinal de vida. O chefe dos bombeiros disse que fogo de artifício não tem aquele poder de explosão. O repórter que esteve no local disse textualmente que parecido ter explodido uma bomba lá. É o que eu acho. Alguém colocou uma bomba lá para desviar a atenção de Tegucigalpa.

BATIDA DE CAÇAS

O mar, nesta primavera, anda agitado, com ventos súbitos, friacas insistentes, tempestades mal-assombradas.Gaivotas se ressentem e acabaram entrecortando a conversa de Joe várias vezes. Fiquei em silêncio.

-E os caças franceses? Perguntou Joe. Você não acha estranho que logo agora tenha tido uma acidente com dois caças, idênticos aos que o Brasil quer comprar?
- Pois queria comentar, disse. A França tem só 17 caças e o Brasil quer comprar 36, não é demais? Parece que eles estão querendo selivrar da trolha.
- Não se trata disso, falou Joe. É que existe uma concorrência pesada internacional e essa transação significa muitos milhões de dólares, além do aspecto estratégico, em que a América Latina, graças ao Chavez e oujtros energúmenos, está pronta para ficar igual ao Iraque. Escreve o que eu digo.

Fiquei chocado com as observações de Joe. E se ele tivesse razão? Tudo pode acontecer quando a ambição política está em jogo. Ao mesmo tempo, me pareceu muita forçação de barra. Vai saber.

Permaneci mais um tempo, mas não me demorei. O cara é recluso demais e fica nervoso com a presença alheia. Nem gaivota mais ele suporta. E foi escutando o sábio do puxadinho de pedra espantando os pássaros da praia que fui-me embora, com a cisma provocado por suas palavras. Mas antes de pegar a reta, Joe me chamou:

- Ei, escritor, a explosão na casa de fogos foi em Santo André, não foi?
- Sim, respondi, aos gritos, porque já estava afastado do alpendre onde tínhamos conversado.
- Não foi lá que mataram aquele prefeito? O Celso Daniel? Crime que aquele jornalista do New York Times denunciou?
- O Larry Rohter, aquele que foi expulso porque chamou o presidente de bêbado?
- Não, o Larry foi expulso porque denunciou as ligações do crime, foi por isso.
- Verdade? respondi. Impressionante.

RETORNO - Imagem desta edição: foto de Daniel Duclós.

24 de setembro de 2009

O QUE É LIMITE?


Aproveito o mote da escritora Vera Molina no jornal Momento de Uruguaiana, que abordou o tema dos limites, para tentar definir algo sobre o assunto. Vera fala da diferença entre a imposição – para crianças e alunos, em casa ou na escola – e o respeito aos limites, que se refere ao comportamento adulto. O segundo depende do primeiro. O que é limite? Uma barreira intransponível, algo que claramente não pode ser ultrapassado. Não é dizer “não pode, viu?” ou, “olha que você não vai ganhar doce”. Ou: “não invada Honduras, só porque te achas o dono da razão”. É algo que se equipara a uma arma apontada contra você. Porque se existe um exemplo radical de limite, esse é o assalto. Na hora agá, você sabe que não pode fazer nada que faça disparar a arma.

Para que haja limite, é preciso que exista entre os adultos a noção clara, o conceito explícito da barreira a ser interposta. Não é possível que alguém se sinta no direito de pixar uma escola que foi pintada em mutirão por pais, alunos e professores, como aconteceu recentemente em Viamão. A professora foi criticada porque colocou o menino na frente de todos refazendo a besteira. O comportamento da professora também pode ser criticado, pela maneira como encaminhou a punição. Mas o ponto é a barreira. Se o garoto, de 14 anos, pixou, é porque o limite não existe, já que não funciona.

O grande problema é que não há consenso, no mundo adulto, sobre o limite. “Não deve haver punição senão traumatiza”, dizem os pedagogos. Deve-se manter o diálogo etc. Sei bem o que era diálogo quando fui adolescente. Um dia, meu pai soube que respondi mal para um professor e me mandou pedir desculpas imediatamente. Detalhe: estávamos no meio do almoço. Corri até o colégio, que fica na frente da casa onde me criei e procurei o célebre Cachorrão, ou Irmão Eugênio (seria esse o nome? Santanenses, acorrei), mas não o encontrei. Voltei e expus a dificuldade. Meu pai então sacudiu o dedo para cima de mim e me ordenou que pedisse desculpas logo que o encontrasse. Viu? Houve diálogo. O moleque ouve e obedece, desde que o adulto tenha razão e saiba também de seus próprios limites (não precisa espancar nem nada, basta a moral).

Os brasileiros vêem agora a educação sendo vilipendiada em plena gestão do “deficiente intelectual”, como se definiu Lula recentemente. Violência sem limites nas escolas entre alunos, professores, pais e orientadores, num quebra pau generalizado, confinado no noticiário a casos isolados. “Bate como eu te ensinei”, dizia a mãe de uma briguenta, por coincidência “monitora” do estabelecimento de ensino. “Bate que teu pai está lá no carro”, ou seja, te garante. Tiros, facadas, socos, pontapés, perdeu-se completamente a noção de limite. Não há barreiras, porque os adultos no Brasil perderam o pulso e a nação está à deriva.

O limite é implantado dentro da pessoa quando ainda é criança. É a velha história do elefante bebê preso por uma corda frágil, suficiente para deixá-lo na soga, fácil de rebentar quando vira adulto, mas, como está acostumado, não arrebenta. Claro que isso contraria a moderna pedagogia, que faz pesquisas para provar que a palmada atrapalha o desenvolvimento psicológico da criança. A violência física bruta, exercício do poder sem limites, é que estraga as crianças. A imposição de limites, semente do futuro respeito (fundamental numa democracia) é outra coisa. Nossos pais aprovavam a palmada, mas não era a surra o fundamento, mas sim o exemplo, a cobrança, a barreira imposta como algo impossível de transgredir.

O método tem de vir do consenso entre adultos. Há interesse em impor limites? Ou seremos todos mortos pelas novas gerações em fúria, à vontade para fazer o que bem entendem? Ou não teremos chance de exercer uma educação amorosa e pacífica,porque a falta de limites extrapolou e jogou todo mundo na vala comum?

Na política, o limite chama-se Constituição. Não pode, viu Zelaya? É punido, viu? Não atente contra a segurança interna nem externa, viu presidente Lula? Se atentar contra a segurança, como está acontecendo agora em Tegucigalpa, pode sofrer impeachment, que é o nome certo do limite nesta altura do campeonato. No mínimo, vai levar umas palmadas do vice-presidente, José Alencar (demorou, Excelência, passou da hora de dar um corretivo em quem desrespeita a soberania alheia).

RETORNO - Imagem desta edição: peguei daqui.

A LEBRE, A COBRA E A POMBA


Bola, por natureza, é lebre: quica, pula, salta, escapa, sobra. Os jogadores que se virem. Eles precisam colocá-la nos eixos, defini-la como cobra, como aconteceu nesta quarta-feira, no Mineirão, quando o palmeirense Cleiton Xavier rasga o gramado com um rastejar fulminante , que se enrodilha nos pés de Wagner Love lá longe, livre no meio e em direção impiedosa rumo ao gol do Cruzeiro. No lugar do bote, essa serpente manipulada pelo craque avança até o goleiro para atraí-lo.

O engano é percebido tarde demais. O arqueiro acredita que vai chegar antes, mas é driblado pelo atacante, que cruza então para o fundo da rede. É um lance diferente do primeiro gol do Palmeiras, quando a bola serpenteia no topo da barreira, impulsionada pelo efeito do pé de Diego Souza e obedecendo aos caprichos de um vento lunar próprio, gerado não se sabe onde. Essa bola que acaba indo no canto oposto à expectativa do goleiro é uma pomba destrambelhada no vôo.

São os diversos personagens assumidos pela bola na pedreira, uma boa parte dela abaixo de chuva. Criações de serpentes agulham a linha de fundo nos ataques simultâneos dos dois lados. Lebres se agigantam na área fazendo quicar a surpresa na frente do gol. E pombas lançadas a esmo varrem o estádio por cima do travessão. É como se bola obedecesse a uma narrativa singular, planejada antes que os jogadores entrassem em campo. Ela decide, junto com a geometria do gramado, o que fará naquela noite, para divertimento da platéia.

Não que os contendores não saibam dominá-la, ao contrário. Mas se os dois times se igualam no mesmo tipo de sufoco e pressão, quando o carrinho (a serpente que morde) rompe o tornozelo da lebre e as pombas se jogam assustadas para cima dos goleiros indefesos, a bola assume o lugar do protagonista do jogo, deixando como coadjuvantes todo o resto, Muricy inclusive, desesperado para que tudo acabe de uma vez e os 2 x 1 sacramente a liderança do Palmeiras, como de fato aconteceu.

Faltou falar do gol do Cruzeiro, que até a metade foi parecido com o lançamento de Cleiton Xavier, mas sem Wagner Love, pois Thiago Ribeiro, recebendo uma bola da estrela potencial do jogo, que não se consumou, Kleber, chutou abrindo o placar. Foi uma cobra, à vontade para penetrar a cidadela adversária nos minutos iniciais do confronto, quando os envolvidos ainda estavam curtindo o nervosismo de uma “meia-decisão” do campeonato, como foi definido pelos locutores esportivos que fizeram a cobertura.

Quando os dois times se equivalem, os espaços nobres do gramado estão ocupados. Resta então aqueles cantos esquecidos, as laterais quase fora dos muros, os nichos sem importância para gols imediatos. É ali nesses lugares abandonados que se travam as piores disputas. Quando tropeçam, cotovelos assomam, sangue jorra, tombos inventados se desmancham. Uma tripa muito fina de gramado junto à lateral pode ser a salvação de um cruzador habilidoso, que coloca a bola no miolo do drama, como aconteceu várias vezes nesta peleja.

Não digam que um observador sem time é isento quando vê futebol. É como voluntário em Legião Estrangeira. A guerra não é nossa, mas estamos prontos para entrar em combate. As regras proíbem que a gente entre em campo. Mas toda vez que um desenlace se desenha, o anônimo torcedor assume uma persona. É assim como a bola. Às vezes nossa atenção quica sem parar de um lado para outro. De repente, nosso olhar cruza o meio de campo como se estivesse amarrando a presa. E então tudo voa em direção às redes como um barulho de asas. É quando vemos o goleirão Marcos se atirar inteiro, apostando na sorte. Mas é que seu corpo sabe onde a bola vai bater e não há bicho que o engane, o caçador veterano.

Diante de Marcos, a bola encharcada se recolhe. O goleiro é a gaiola dos bichos soltos do futebol, esse exercício que só pode ser praticado pelos espíritos livres.

RETORNO - Temos governo: "É preciso que haja respeito pela situação e que ele não faça da embaixada uma base política, eleitoral, ou coisa que o valha. Ele está lá na condição de abrigado, não é exilado." José Alencar, presidente em exercício, sobre Manuel Zelaya.

23 de setembro de 2009

HONDURAS: PRESIDÊNCIA ILEGAL E ESCRAVIDÃO


Presidência ilegal é aproveitar-se do mandato para contrariar a constituição e tentar espichá-lo por meio de um plebiscito. Democracia não é a ditadura da maioria, é o acordo entre forças políticas adversárias que disputam a maioria dos votos. Se há uma lei proibindo um segundo mandato, como no caso de Honduras, ou de um terceiro, como no Brasil, cumpra-se a lei. Manuel Zelaya tentou repetir Chavez (que está há uma década no poder), mas se deu mal. Foi demitido do cargo à força pelos outros poderes, sendo que o judiciário já consolidou a nova situação de fato. Ou seja, se existe alguém ilegal no país é Zelaya, acoitado na embaixada brasileira por Lula, que fez o que fez por um só motivo: tentar o terceiro mandato. É isso que está em jogo.

O caso Zelaya abria um precedente perigoso para Lula, pois demonstra que a vontade política pode impedir que um aventureiro use um expediente maroto para continuar no poder. Reinstaurá-lo não é para salvar a democracia no continente, mas é para provar que um oportunista pode muito bem se eternizar no palácio lançando mão de um recurso pretensamente democrático. Se Lula não quisesse um terceiro mandato, não escolheria um poste, Dilma, para candidata. É óbvio que essa candidatura fará água no percurso até as eleições, que são daqui a mais de um ano.

Bastará algumas marolas fortes nas grandes capitais para criar uma atmosfera de pânico e pronto, está oferecida a solução: o sujeito que mente sem parar e que sonha em sair vitorioso da enrascada em que se meteu, motivado por sua ambição e sua irresponsabilidade. Ele gerou uma enorme dívida com os países hispânicos, de todos os lados. Com os chavistas, pois ao ser usado pelo governo venezuelano para colocar Zelaya na embaixada, amarrou o rabo para sempre. Com os hondurenhos, pois transformou a embaixada no quartel do presidente deposto, o que está longe de ser um asilo político, transformando-se numa grossa interferência. E com o resto da gang, Morales, Lugo etc., que agora sabem que o Brasil perdeu a moral que tinha e podem continuar passando a mão como têm feito até agora.

O fato de Lula usar o discurso da ONU (que sempre, na abertura, conta com o Brasil, desde Oswaldo Aranha, secretário-geral da ONU e ministro do Brasil soberano) para exigir a volta de Zelaya ao poder desmascara todas as mentiras de que não sabia de nada. Foi tudo armado para coincidir com a presença de Lula na ONU. Viramos assim escravos da nossa própria brutalidade. Devemos não apenas trilhões para os especuladores que aqui se refestalam com nossa política de juros, mas também à comunidade internacional, ao participar como protagonista de uma palhaçada histórica. Como poderemos pagar as mortes que já começam a pipocar? E a instabilidade de Honduras? E os favores a Chavez, que se encarregou da operação invasora? Certamente Chavez convenceu Lula de que o Brasil sairia do episódio coberto de glórias. Milonga de malandro é fácil de detectar. Tem gente que não conhece as figuras e acaba se enredando, porque cai no conto do vigário: quer ser mais malandro do que o meliante.

A DÍVIDA IMPAGÁVEL

"A soberania nacional, para ser respeitada, deve conter-se nos seus limites", disse Joaquim Nabuco no livro fundamental da nacionalidade, O Abolicionismo. O mau uso da bandeira nacional nas alocuções do ex-presidente panamenho é apenas uma profanação, idêntica à dos navios negreiros que se escudavam no verde-amarelo para o tráfico ilegal. Esse episódio, que está sendo considerado "o Waterloo da política externa de Lula", além de encher o país de vergonha, gera uma dívida moral difícil de resgatar. Como poderemos exigir respeito se desrespeitamos a soberania de Honduras?

Como sabemos desde "O Abolicionismo", escravidão é dívida impagável. A imagem usada por Nabuco é a de Shylock, o cobrador da dívida na peça de Shakespeare, o Mercador de Veneza, que emprestou dinheiro em troca de uma libra de carne do corpo do devedor. Como cortar um braço para pagar uma dívida? A dependência, então, se eterniza.

No Brasil, nos ensina Nabuco, o escravo era uma dívida ao senhor. Valia pouco ao nascer, mas a mãe não tinha dinheiro para resgatá-lo. Ele crescia e o seu valor crescia junto. Para tirá-lo do cativeiro, só pagando muito caro, o que não acontecia. O normal era que outro proprietário resgatasse a dívida e o levasse para seus domínios. Vemos como esse expediente continua valendo no Brasil de hoje. Não falo apenas dos lavradores que ficam devendo até as botas que usam no trabalho para seus patrões e por isso não conseguem pagar a dívida, tornando-se escravos. Mas de todos nós que devemos nas megalojas e nos bancos: nunca se consegue pagar essa dívida totalmente, pois ela joga com nossas necessidades no país sem fundos (que, por sua vez, deve os tubos para os estrangeiros) e que é rolada indefinidamente. Somos, portanto, ainda escravos.

O Abolicismo é um livro admirável e impressionante. Nabuco esmiúça as idas e vindas dos senadores que conseguiram adiar indefinidamente a emancipação dos escravos por meio de várias artimanhas. Na Lei do Ventre Livre, de 1871, chegaram ao cúmulo de libertar os escravos que não tinham nascido e manter sob o jugo os adultos que, por lei, estavam emancipados desde 1831, segundo acordo internacional lavrado pela Regência Trina. O cativeiro ilegal assumia foro de lei, porque é assim que funciona: eles emendam uma lei óbvia até torná-la irreconhecível para que alguém como o Sarney assine. Isso pode acontecer na tentativa de eternização dos mandatos pretensamente apoiados pela maioria.

Presidência ilegal e escravidão: é isso que está em jogo em Tegucicalpa.



"Existe um povo que a bandeira empresta
Pr'a cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?!...
Silêncio!... Musa! chora, chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto...


Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra,
E as promessas divinas da esperança...
Tu, que da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança,
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...


Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu na vaga,
Como um íris no pélago profundo!...
...Mas é infâmia de mais... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo...
Andrada! arranca este pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta de teus mares!"

(Castro Alves, Navio Negreiro)


RETORNO - 1. Imagem desta edição: Al Pacino como Shylock, no filme O Mercador de Veneza. 2. Ao longo do dia, esta edição foi aprimorada, já que joga com uma sintonia complicada entre a tradição escravagista brasileira e a intervenção em Honduras. O objetivo é colocar os eventos em contextos integradores, para que possamos entendê-los melhor. Nem sempre o trabalho é bem sucedido, mas vale a vontade de não se entregar a evidências e a versões datadas, que são superadas no dia seguinte. As edições do Diário da Fonte, em sete anos de existência, são lidas simultaneamente, todos os dias. Quanto menos "pontuais", melhor.

COM FRONTEIRAS


Nei Duclós (*)

A indignação repetitiva revela a incapacidade ou a falta de preparo do raciocínio diante das complexidades reais. “Isto é um absurdo” ou “isto é uma vergonha” são falas distribuídas com fartura em território estéril. O comportamento político bizarro ou os desvios de recursos de qualquer natureza continuam impunes, enquanto o levantar ofendido e coletivo de queixos demonstra as amarras da denúncia vazia.

Os fatos estão escancarados diante da cidadania que clama por justiça. Quem está devendo é a produção de pensamento, escassa apesar da abundância dos canais e o número impressionante de protagonistas. As reações migram do engessamento ideológico para o consenso forjado. O vício bipolar de ver sempre as mesmas coisas da mesma forma leva para o esvaziamento. O ápice é a recorrente cara de espanto decidindo que chegamos, mais uma vez, ao fundo do poço.

O impasse vem do atrelamento carnal dos pensadores aos poderes de plantão. Onde estão os autores que ainda defendem a soberania como fator de sobrevivência física da população brasileira? O que temos há décadas é a exposição das raízes sinistras da nacionalidade, do destino manifesto para o fracasso, do triunfo da inferioridade. Todos esses expedientes servem a potenciais líderes que emergem com algum antídoto salvador.

Como no imaginário viramos terra arrasada, é fácil para os aventureiros acenarem com a redenção por meio de palavras mágicas. Foi assim com o desenvolvimentismo, mais tarde o Brasil Grande , depois os planos econômicos e enfim o professor de ética ou o emergente vindo das classes subalternas. São representações dessa dívida que o Brasil teria em relação à sua própria natureza social, vista endemicamente como algo a ser punido.

A base de um pensamento voltado para a grandeza da obra, que é a nação consolidada em vasto território, foi dinamitada.

Separatismo, interdependência, ditadura ou voto útil, entre outros venenos, são receitados no fosso gerado pela falta de um sentimento genuíno de pertença. Princípios duradouros, alimentados pela lógica e a justiça, poderiam substituir a atual febre da falsa correção do comportamento.

Do jeito que está, brasileiros de todas as classes acabam empurrando o conceito de Pátria só para os estrangeiros, que não são trouxas e fazem de sua formação e suas fronteiras a garantia perene da própria integridade.

RETORNO - 1.(*) Crônica publicada no caderno Variedades, do Diário Catarinense, no dia 22 de setembro de 2009. 2. Imagem desta edição: Caipira picando fumo, de Almeida Junior.

BATE O BUMBO: CECÍLIA NO FACEBOOK

Maria Novais republicou meu texto no Facebook sobre Cecília Meireles e escreveu a seguinte mensagem:

"Prezado Poeta, acabo de ler, emocionada, o artigo que escrevestes sobre a tão líquida Cecília, no Diário Catarinense. Nada havia lido antes de tão belo, poético e honesto sobre ela. Tomei a liberdade de divulgar o artigo na minha página do Facebook, onde aproveito para lhe adiantar minha enorme admiração pelo teu trabalho.Obrigada e parabéns."

22 de setembro de 2009

OMBUDSMAN, FUNÇÃO OBSOLETA


Enquanto a embaixada brasileira em Honduras era cercada, o jornal Hoje da Globo se concentrava num tema candente, o mau hálito. Para isso eles mantém bonequinhos em frente às câmaras: para falar de mimos enquanto o mundo despenca. Na internet, a cobertura é on line, candente, pungente, completa, explosiva. Mas isso nem chega aos píncaros da obsolescência em forma de veículo.

E nem adianta mais ter ombudsman (a Gobo nunca teve), ou ouvidor, que é o profissional intermediário entre a pressão dos cidadãos, leitores, contribuintes, consumidores e a corporação. É um cargo criado numa situação em que os canais de opinião eram restritos. Hoje, com a internet, onde sobra crítica por todo lado, é uma função obsoleta. Mas eles não se dão por vencidos. A Folha e a Globo proibiram seus jornalistas e funcionários de ter blog e cortaram também o acesso ao twitter.

Ou seja, ensaiam a censura geral que está por vir (a situação de liberdade que usufruímos hoje na rede será conhecida no futuro como a Idade de Ouro da Internet, assim como tivemos a Era de Ouro do Cinema e do Rádio). Assim, procuram manter intactas as estruturas a que estão acostumados. A Folha coloca no ar sua versão digital. O que é a versão digital da Folha? É o jornal impresso copiado na internet. Não é um jornal adaptado às novas tecnologias, apenas as usa para manter a mesma estrutura. A Folha On Line é apenas uma pálida versão do jornal impresso. Deveria ser o próprio jornal.

Numa entrevista, o atual ombudsman da Folha diz que a direção não acata a maioria das suas sugestões. Também não dá a mínima bola para a pressão dos leitores, que querem José Sarney fora da equipe de articulistas. Não que eu defenda a saída de Sarney da Folha, pois basta defender alguma coisa para acontecer exatamente o contrário. O Sarney sairá do seu espaço quando morrer ou quando bem entender. Tudo é vitalício no exercício do poder no Brasil. Não há ombudsman que agüente.

Fico imaginando (já que não tenho mais contato) um jornalista desses grandes (por enquanto) veículos tendo que se podar, vendo o resto da humanidade se divertindo, exercendo o que ele não dispõe, liberdade. Naturalmente, como é costume, brota nas redações a idéia de que esses instrumentos internéticos são pura perda de tempo. É a maneira de se compensar. O bom é que a existam os grandes sites e provedores e sumam para sempre os guerrilheiros culturais, marginais e insurgentes.

Já me referi a esse assunto aqui, mas vou repetir, porque acho importante. Esses tempos um notório jornalista “cultural” disse que o sucesso do twitter entre nós é porque “o brasileiro” é novidadeiro (“o brasileiro” é algo que existe fora dele, que deve ser marciano, já que não é americano, europeu ou de qualquer país da Ásia ou Oceania). O sujeito não sabe que o twitter é um conjunto de ferramentas para a difusão rápida de informações de todo tipo e calibre, selecionadas e impulsionadas por protagonistas de todos os tipos. É uma soma de links para as mais variadas abordagens de texto e audiovisuais. É uma ferramenta poderosa de comunicação e marketing. O mundo inteiro está ligado, mas aqui os luminares torcem o nariz.

Quando há tanta diversidade de opinião, tantos canais de pressão, tantas maneiras de se fazer críticas, os veículos tradicionais se fecham em copas olhando para o próprio umbigo. Não prestam atenção à avalanche que toma conta do mundo civilizado e se concentram no seu corporativismo, adotando o patrimonialismo que os sustenta (“vejam TUDO no nosso site, não tem para ninguém”). Toda sala com um micro hoje é uma redação. Toda fonte é mídia. E a censura obtusa ensaiada hoje no Brasil pode ser que dure séculos, porque aqui tudo dura eternidades. Pior para nós, alvos permanentes da gargalhada e dos olhares penalizados de tantos cidadãos estrangeiros.

Ah, esqueci das pesquisas. Nossa imagem no Exterior, segundo os ibopes, deve estar tinindo. O mau comportamento em Honduras, disfarçado de macheza revolucionária, que o diga. Vai feder.

RETORNO - Imagem desta edição: tirei daqui.

PRECEDENTE EM TEGUCIGALPA


O Brasil não apenas fez um ato de intervenção política num país soberano, Honduras, ao contrabandear, furando o bloqueio das fronteiras estrangeiras, para dentro de sua embaixada em Tegucigalpa, o presidente eleito que tinha convocado um plebiscito ilegal para conseguir um segundo mandato e que estava proibido de voltar ao país. Bem pior que isso: o Brasil abriu um precedente para que qualquer país estrangeiro faça a mesma coisa, já que deu o exemplo. Ou seja, furar o bloqueio das nossas fronteiras e contrabandear personas non gratas para cá - e, de quebra, invadir o país como bem lhes aprouver. Pois foi isso que o Brasil fez, já que Manuel Zelaya (foto) "brotou" na embaixada brasileira depois de cruzar a fronteira à noite.

Não deve ser levado em consideração se Zelaya é ou não ainda o presidente de direito. Isso é um problema interno de Honduras. O governo Lula não poderia ser tão irresponsável a ponto de receber um presidente deposto, um fato que foi noticiado logo por quem, pelo principal interessado no precedente, Hugo Chavez (que deve ter se baseado na vez em que voltou ao poder depois de fugir dos seus algozes; voltou porque o povo venezuelano lutou na rua espontaneamente, pois Chavez se escafedeu e só deu as caras depois que o perigo tinha passado).

Se o Brasil invade território hispânico vizinho, então o país hispânico pode muito bem entrar nas nossas fronteiras e fazer a festa e é exatamente isso que Chavez quer. Fizemos o jogo dele e ainda por cima o governo parece nem se dar conta da grande cagada. O ministro Celso Amorim aparece em frente as câmaras com um sorriso irônico da vitória de Pirro dos espertinhos, bem ao gosto da atual fase da vida nacional, em que as pessoas se acham espertas porque é assim que os governantes se comportam.

Por ter desrespeitado um país estrangeiro, o presidente Lula transformou-se em candidato legal a um processo de impeachment. Mas ao fazer o que fez, e sua responsabilidade no caso não pode ser negada (não cabe sob nenhuma hipótese dizer que ele não sabia) parece que Lula está muito satisfeito com tudo e sente-se irremovível e inatacável, totalmente à vontade para intervir num processo político fora de nossas fronteiras e ainda deixar que seu ministro do Exterior ria descaradamente para o mundo. Em país democrático, um presidente não tomaria uma decisão dessa envergadura à revelia da opinião pública e do Congresso Nacional. Como não canso de dizer, vivemos numa ditadura, em que os governantes tomam conta do butim sem prestar contas à nação.

O governo provisório de Honduras já responsabilizou o Brasil por qualquer derramamento de sangue que houver em função dessa molecagem. Num ato de insânia, jogamos definitivamente por terra todas as conquistas legais da nossa diplomacia, que já foi respeitada por todo o mundo. Agora estamos à mercê do que os vizinhos quiserem fazer conosco. O Brasil, com este governo, perdeu a moral. Tinha perdido a soberania com FHC. Agora perdeu a vergonha. Fora, Lula. E não me venham falar em golpismo. Golpista é quem intervém em país estrangeiro sob o álibi de que está defendendo a democracia. Fúúú, fora!

RETORNO - 1. Ontem, dia 21 de setembro de 2009, o Diário da Fonte alcançou recorde de visitas. Quatrocentas pessoas viram (e muitos leram) até mais de 600 edições deste jornal, com destaque para o texto acima. 2. Leia minha crônica "Com fronteiras", publicada no caderno Variedades, do Diário Catarinense, deste 22 de setembro de 2009.

21 de setembro de 2009

PATRIOTISMO E PATRIOTADA


O colunista Fernando Rodrigues, da Folha, assumiu cedo seu ar precoce e artificialmente envelhecido da geração criada na ditadura, que substituiu a nossa, massacrada e marginalizada, cujos restos foram aproveitados pelo sistema político que a condenou. Um desses restos é a Dilma Roussef, invenção de bolso de colete do mesmo sistema, que procura manter-se à custa da nação destruída pela incúria dos governantes e o sucateamento da soberania. Os dois se merecem. Rodrigues tem a pompa do "pós patriotismo" (a expressão é dele, em artigo desta segunda-feira), a falsa modernidade que viveria sem a idéia da nação.

Como em todos os países existe patriotismo, pois sem ele não há nação e portanto não haveria sobrevivência, Rodrigues mente de que vivemos numa era onde a idéia da Pátria foi substituída pela da "integração". Cita como exemplo o Obama, que representaria o fim do peito inflado dos americanos (basta olhar a foto acima!). Nunca vi asneira maior. Obama é o retrato do patriota americano, senão jamais seria eleito. Basta vê-lo discursando nos funerais de Ted Kennedy. Ali vemos o patriota, falando para patriotas, sobre um grande patriota. Mas Fernando Rodrigues, que faz parte da desconstrução do Brasil soberano, usa Dilma para falar mal do Brasil, país que os criou e os sustenta (já que, se estivessem no Exterior, teriam de lavar pratos, dado o alcance primário de suas produções de pensamento).

Chamando Dilma de "ex-brizolista" (claro, a culpa sempre é do Brizola ou do Getúlio), identifica a patriotada da pré-candidata com a patriotada da ditadura, colocando ambos, que são realmente identicos, no balaio geral do patriotismo. O ame-o ou deixe-o, sr. Rodrigues, não é patriotismo, é patriotada, ou seja, o mau uso do patriotismo para fins sinistros, no caso, a repressão, a violência, a entrega do país e a ditadura. Não se pode falar em patriotismo da era Médici, assim como não se pode falar em patriotismo de Dilma Roussef, que faz parte de um governo entreguista, que se abraça com tiranos, do Irã à Venezuela, que se entrega como um filho da mãe desde a França até a Bolívia e o Paraguai e que não tem nada de patriota e é por isso que lança mão dessa bandeira, pois sabe que o amor à nação mora no coração do povo, dono do voto.

Para usurpar o voto dos brasileiros, para conquistar-lhe a adesão é que se fala tanto em patriotismo. Mas basta a seleção brasileira perder um jogo ou empatar para ouvirmos o clamor pró cidadania estrangeira. Basta um lenço colorado na coxilha para se falar em separatismo. Basta acontecer qualquer coisa para os entreguistas exclamarem: "Isto é Brasil!", como se invocar o nome do país fosse a prova definitiva da nossa incompetência.

Rodrigues cita a velha frase de Samuel Johnson, mas o certo é:"A patriotada é o último refúgio de um canalha". Aí a frase faz sentido. Além disso, Samuel Johnson é inglês, identificado como inglês, é uma das glórias da Inglaterra. Vai lá perguntar para os ingleses se eles não amam a pátria deles, se o povo inglês é formado apenas por canalhas, se Samuel Johnson é neo-zelandês, vai. Repetir frases a esmo é o esporte preferido das mentes superficiais, guindados ao pódium do Brasil entregue aos estrangeiros para que tudo continue como está.

O trágico é que assim Dilma se fortalece defendendo o que abomina, o Brasil, em oposição aos idiotas que negam o país sob o álibi da pós pós pós modernidade. O único país que conta com militantes 24 horas por dia empenhados em acabar com as nossas fronteiras é o Brasil, que está tinindo para ser retalhado em postas (que no fundo gostas, como diz Chico Buarque) em estados fracos e opressivos. Esses dias vi no jogo entre Coritiba e Corinthians o estádio tocando o hino do Paraná, antes do Hino Nacional. Era só o que faltava, hino estadual em jogo de futebol. Felizmente ninguém acompanhou, ficou estranho. Quando chegou a hora do Laranja da China, do Virandô, mil vozes se levantaram.

O patriotismo é o legítimo sentimento de pertença do povo brasileiro. É o que mantem o país ainda unido. Atacá-lo por meio da patriotada ou da confusão de conceitos é crime de lesa-Pátria. Estou avisando: estamos atentos. Pelego na sanga e relhaço. Depois não digam que não avisei.

RETORNO - Imagem de hoje: Obama, o "pós-patriota", ou seja, o cara que deixou de lado o patriotismo em favor da "integração", segundo o articulista da Folha. Ah ah ah ah. A foto tirei daqui.

20 de setembro de 2009

O VINTE DE SETEMBRO CONTRA A MEDIOCRIDADE


Nei Duclós

Não uso bombacha, nem bota sanfonada, nem espora ou chapéu de barbicacho, nem monto a cavalo ou uso boleadeira, não costumo tomar mate, a não ser quando me convidam. Essas limitações poderiam me diminuir diante dos meus conterrâneos tradicionalistas, mas isso não acontece e jamais cria qualquer tipo de constrangimento, pois nascemos e fomos criados numa terra que lutou pela liberdade. Podem até ser vistos como defeitos, depende do nível alcoólico do encontro, ou da sintonia da bagacerada na hora em que descobrem costumes adventícios nos nascidos no miolo do pampa.

“Mas tu não presta nem para tomar um mate”, por exemplo, é uma tirada típica quando existe chance de confronto. Nada que arranque lasca ou casca, pois o riso faz parte da linhagem humana que enfrentou a morte para criar uma nação. Essa espécie de frase e sentimento é visto de lado pelos achistas, os profissionais da desconstrução do Brasil soberano, que hoje se engancham no ensino público e privado do país, com dedo em riste, a demolir percepções, heróis e fatos. Costumam ficar invocados e furiosos com o Vinte de Setembro, data do início da Revolução Farroupilha em 1835, quando Bento Gonçalves tomou Porto Alegre, inaugurando uma guerra contra o Império brasileiro que durou dez anos.

Os achistas acham que um gaúcho pilchado impõe a representação do RGS e sufoca a diversidade da cultura e da identidade do estado. Os sujeitos que fazem essa acusação nunca viram um negro pilchado, um índio de esporas, um mestiço de lenço branco, um polaco de lenço vermelho, um mulato de chapéu de barbicacho, um ruivo montado? As pílchas, o uniforme tradicionalista, é um símbolo guerreiro, que identifica, de longe, o combatente, tenha ele a pele que tiver. Mas não é esse o ponto.

Nem mesmo quem usa as roupas tradicionais acha que esteja representando todo o Rio Grande. É uma questão de gosto, de entusiasmo e de percepção das próprias raízes. Os achistas tem certeza que milhões de pessoas, que se entregam com prazer à tradição gaúcha, sao um bando de alienados que estão apenas cultuando um anacronismo escravista ou latifundiário. A visão estreita dos analistas atuais do Brasil é confundido com "consciência crítica", quando não passa de uma cristalizaçãoo tosca de velhos preconceitos. O principal deles: o de que o povo não sabe o que está fazendo, estaria apenas obedecendo aos espertinhos que lucram com as datas históricas, como o Vinte de Setembro.

Os mediocres tem horror à História, pois adoram mesmo são as reduções teóricas da moda como o marxismo de galinheiro, o direitismo fanático, o entreguismo vocacionado e o deboche puro e simples de tudo o que diz respeito à nacionalidade brasileira. Eles se escudam em expressões como “realidade cultural, histórica e sociológica”, que seria o álibi perfeito para enterrar a celebração da cultura guerreira para em troca termos a emasculação disfarçada em teoria politicamente correta (só eles são históricos, cultos e sociológicos). Jamais vi uns desses arautos da consciência crítica denunciar a grande invasão cowboy da mídia disfarçada em hábitos sertanejos. Gostam mesmo é de calça colada na bunda, chapéu de vaqueiro americano, fivelona dourada e o berreiros das suas canções mexicanas. Contra isso, nem um pio. Agora, uma febre brasileira que varre o país no Vinte de Setembro, aí não pode.

Quando as pessoas, a maioria urbanas, montam a cavalo e saem carregando bandeiras, ou se apresentam em galpões cantando os feitos do povo riograndense, não estão cultuando um "patriotismo caótico", estão apenas participando do imaginário construído para resgatar costumes, lendas, feitos, fatos, personagens do passado. Há várias formas de fazer isso. Eu prefiro ler memórias de ex-combatentes. Mas tem gente que prefere uma roda de chimarrão ou uma cavalhada.

No fundo, o grande sucesso do gauchismo, cevado até por brasileiros do Nordeste ou do Amazonas, onde tem CTGs, desmoraliza a campanha de difamação contra o Brasil que foi encetado pelos falsos intelectuais, os que prepararam o terreno para os governos atuais, que se sucedem entregando a soberania. Eles preferem o bolivarismo, essa expressão caolha do caudilhismo doentio hispânico, ao mito de heroísmo do Rio Grande, pois tremem de tesão diante do porco Chavez e fogem horrorizados quando um bombachudo surge no horizonte a trote, pronto para enfrentar o inimigo.

O bolivarismo deve ter seu charme. O porco Chavez, com suas roupas de cor vermelho sanguinolento, comprando foguetinhos dos russos, ameaçando tomar territórios que não lhe pertencem na Amazonia, é irresistível para os pseudo socialistas internacionalistas, os adeptos da Nuestra América, o continente inspirado no milionário Bolivar, líder dos manda-chuvas criollos, que fala espanhol e exclui o Brasil.

Brasil é nome feio para esses tipos. Eles propõem que o povo, no Brasil, não foi agente da sua História, foi tudo obra do latifúndio, do escravismo e dos estrangeiros. Pior é que a meninada acaba acreditando e todos se transformam em italianos, alemães ou espanhóis. O povo inteiro lutou na Revolução Farroupilha, por vários ideais: liberdade, República, justiça social, independência econômica. Isso não basta. Os achistas acham que o povo, naquela época, deveria era votar no PT ou nos tucanos para aí sim poderem celebrar a revolução. Os achistas lutam pela revolução que não houve, a do proletariado ou a do liberalismo, e cospem em cima das revoluções brasileiras, que formaram o país. O povo guerreiro que lutou contra o Império lutou mais tarde ao lado dele, contra os hispânicos. O Brasil existe porque houve guerra a favor da nacionalidade.

Mas não adianta discutir. Todo ano no Vinte de Setembro é a mesma coisa: é preciso dar um tranco nos autores e difusores dos manuais medíocres da nossa História, que hoje tomam conta do ensino médio, formando assim anti-cidadãos, sob os auspícios de uma “consciência crítica” que nada mais é do que entrega do país por meio de sentimentos e idéias de anti-nacionalidade. Inspirados no senso de justiça que dizem possuir, esses falsos historiadores (que se têm em alta conta) procuram “denunciar” as comemorações da Revolução Farroupilha, julgando assim, do alto de seus tribunais de araque, o povo a quem deveriam servir e amar. Aos poucos, com o passar dos anos, eles vão ganhando adeptos, ferindo de morte uma das poucas manifestações cívicas que ainda sobrevivem no país em ruínas, destruído pela incúria dos seus governantes e devorado pela cobiça de todos os quadrantes.

Pois estamos de guarda. E dêem graças a Deus que por enquanto ainda só usamos a sanfona. Não que a gente vá usar faca ou dar tiro. Não gastamos chumbo em covardes. Temos outros recursos. Pelego molhado na sanga ou relho são suficientes. E me passa o mate que agora me deu sede.

RETORNO - Imagem de hoje: foto tirei daqui. Ei índio véio: não pode tomar chimarrão. Não é sociologicamente correto!

19 de setembro de 2009

MAR DE CECÍLIA, ESPELHO SONORO



Viúva aos 34 anos, com três filhas para criar, a poeta maior do Brasil estava no mundo em um permanente e lúcido exercício de fuga, guardando o poder de sua poesia, sem se furtar a nada

Nei Duclós (*)

Foi na poesia, espelho da vida inteira, que Cecília Meireles deixou perdida a sua face. Como achá-la na leitura, se na sua criação é posta como enigma, pergunta, busca? Talvez de ouvido possamos resgatá-la, já que antes de tudo ela é sinfonia, cantata, quarteto de cordas, coral. Mas é impossível aprisioná-la nos olhos sem treino, identificá-la com o faro cego, enxergá-la com o tato morto. Mesmo que estivéssemos a pleno com os cinco sentidos, seria inútil tocá-la, já que aprendeu cedo a inventar ou descobrir mundos por meio da solidão e da proximidade com a morte. “Que mal faz esta cor fingida do meu cabelo, e do meu rosto, se tudo é tinta: o mundo, a vida, o contentamento, o desgosto?” (Mulher ao espelho)

Lá ela se recolheu, transparente como uma criatura das profundezas do mar, dessas que não se revelam e jamais vêm à tona, já que encerram em seus movimentos a comunhão de tudo o que vemos e que para ela são apenas ruínas. Sua missão é outra, não a de nos encantar ou exercer seu brilho. Se a deixássemos lá, onde se oculta de modo permanente, apesar de sua notoriedade, continuaria a mesma, a duelar com correntes marítimas vindas do magma e a buscar repouso em flores abandonadas. Ela quer nos dizer algo sobre o que somos, abismos. Poderemos, então, ser salvos de nós mesmos, passageiros potenciais de uma viagem à eternidade. “Longe, longe... Deus te guarde sobre o seu lado direito, como eu te guardava do outro, noite e dia, Amor-Perfeito” (Improviso do amor perfeito)

Serena e sonora, Cecília procura esse rosto que contraria todas as convenções, as personas que assumiu, formatado palavra por palavra, cevado na solidão de quem perdeu o pai antes de nascer, a mãe aos três anos, foi criada pela avó portuguesa e perdeu o marido suicida, que a deixou com três filhas. Cecília manteve-se no mundo irreal da vida prosaica, onde casou de novo, foi professora, pedagoga influente, autora de livros infantis e fundadora da primeira biblioteca especializada para crianças no Brasil. Mas seu território é a poesia, mar absoluto, espelho sonoro onde procuramos em vão sua identidade, guardada não num cofre, mas nesse movimento perene das águas, embalado pela mais alta música e inspirado nas raízes profundas da terra brasilis, a qual dedica todos os seus versos. “Em praias de indiferença navega o meu coração. Venho desde a adolescência na mesma navegação” (Constância do deserto).

Tudo na poeta maior é aparente. Sua entrega é, no fundo, condenação, sua alegria é projeção de uma tristeza infinita, seus laços são frágeis, feitos de vestidos, lágrimas, estrelas, ondas, ventos e verdades que ninguém aceita. Pelo menos não nesta vida, onde esquecemos de nos debruçar sobre as coisas, como faziam os antigos diante das amuradas, janelas, penhascos, gáveas. Somos bons em nos defender de acusações sobre comportamentos e hábitos, mas deixamos ao largo, passando indiferente, a necessidade de semear o coração com algo que não seja ruído inútil ou deserto. “Aqui está meu rosto verdadeiro, defronte do crepúsculo que não alcançaste. Abre o túmulo, e olha-me: dize-me qual de nós morreu mais?” (Canto 7 de Elegia).

Seu estar no mundo é um exercício permanente de fuga, promovido pela lucidez. A obra, que tem em Mar Absoluto e Retrato Natural, lançados em 1945 e 1949, respectivamente, uma síntese suprema, é teia tecida de enredar, seduzir e nos puxar para o fundo, lá onde mora a chama capaz de incendiar o espírito desabitado pela incúria do desconhecimento e da deslembrança. Os dois livros não cobrem a grande diversidade das manifestações do gênio da poeta nascida em 1901 e que se foi em 1964. Mas indica uma luz não para compreendê-la, mas para respeitá-la como fazemos diante das grandes tormentas, as que oferecem, antes da inundação, a face grave do calor e a leve agitação das folhas ainda desavisadas. “Passeio no gume de estradas tão graves que afligem o próprio inimigo. A mim, que me importam espécies de instantes, se existo infinita?” (Inscrição).

Podemos citá-la sem cessar, por décadas, e jamais chegaremos a um porto seguro, pois a cada abordagem nosso navio sente-se impulsionado para longe: “Rastro de flor e estrela, nuvem e mar. Meu destino é mais longe e meu passo mais rápido: a sombra é que vai devagar”. Ler Cecília Meireles é evitar equívocos como o que vemos atualmente, em que se aposta na brutalidade das mensagens, a aridez das palavras, na pseudo-ousadia dos temas. Não existe nada mais radical sobre as mulheres do que seu grande poema Balada das dez bailarinas do cassino: “Andam as dez bailarinas sem voz, em redor das mesas. Há mãos sobre facas, dentes sobre flores e os charutos toldam as luzes acesas. Entre a música e dança escorre uma sedosa escada de vileza(...) Vão perpassando como dez múmias, as bailarinas fatigadas. Ramo de nardos inclinando flores azuis, brancas, verdes, douradas. Dez mães chorariam, se vissem as bailarinas de mãos dadas”.

Não é necessário uma só palavra pretensamente violenta. A violência vem da armação da poesia, do que se diz por meio de deslizamentos e sussurros, numa delicadeza que perdemos miseravelmente. Temos muitas justificativas para sermos brutos. Mas Cecília viveu duas grandes guerras e fala com serenidade tocante sobre a mortandade, construindo baladas para soldados mortos, para viúvas e mães que aguardam em súbito desespero. Ela viveu num mundo mais transtornado e confuso do que o nosso. Mas soube guardar o poder de sua poesia, sem se furtar a nada. Ela já tinha provado o sal das suas grandes perdas familiares, em que a morte da avó que a criou foi sua grande dor.

É quando ela chora sobre a pessoa querida que jaz à sua frente: “Minha primeira lágrima caiu dentro dos teus olhos. Tive medo de a enxugar: para não saberes que havia caído. No dia seguinte, estavas imóvel, na tua forma definitiva, modelada pela noite, pelas estrelas, pelas minhas mãos. Exalava-se de ti o mesmo frio do orvalho; a mesma claridade da lua”.

Revisitar Cecília, navegá-la, relê-la, rememorar, comemorar novamente seu nascimento e sua obra, eis um evento fundamental para quem quer a alma ancorada em algo que nos sustenta e transcende. Temos fome de transcendência, nós, os deserdados desta terra. Precisamos do que possuímos de melhor, porque o tempo jamais decide ser mais ameno e existem poucas chances de recuperar o que perdemos. A trágica aventura da nação fez com que voltássemos as costas para o que pode nos salvar da tragédia.

Com Cecília talvez não encontremos seu rosto, submerso em tanta grandeza e talento. Mas podemos olhar pelo seu espelho, o poema sem mácula, e vê-la a sorrir seu desafio feito pólen, sua máscara múltipla, seus pertences girando na tarde que cai na montanha, onde as estrelas formam a margem prateada de uma revelação: “E este mar visível levanta para mim uma face espantosa. E retrai-se, ao dizer-me o que preciso. E é logo uma pequena concha fervilhante, nódoa líquida e instável, célula azul sumindo-se no reino de um outro mar: ah! Do Mar Absoluto.”

RETORNO - 1. (*)Texto publicado no caderno Cultura do Diário Catarinense,em 19/09/09.

2. A poeta Beth Fleury, de Minas Gerais, deixou o seguinte recado no meu site, onde o texto acima também foi publicado:

"Cecília Meirelles e minha própria poesia

Olá, Nei Duclós, bom dia! Que boa coisa fiz ao abrir teu site nesta madrugada mineira... Fez bem para minha alma reencontrar a grande Cecília Meirelles em tua crônica. Foi pelas mãos dela que encontrei a poesia em minha vida. Fui tangida para a poesia justamente por Cecília. Agora, que me reencontro com a maturidade da grande poesia brasileira através da obra de Laís Corrêa de Araújo e de um diálogo que construí entre Laís e eu (Beth Fleury) para homenageá-la em um evento de poesia aqui em Belo Horizonte, é um momento lindo para reencontrar Cecília. Obrigada! Vamos nos falar...Um abraço grande, Beth Fleury."

3. O poeta Alcides Buss,de Santa Catarina, disse o seguinte sobre o texto:

"Caro Escritor: Gostei de ver no DC Cultura seu ensaio sobre Cecília. Sou fã dessa poesia, a nossa melhor, junto com a de Drummond. Aquele abraço! Alcides."

POUCAS PALAVRAS EM MANUEL BANDEIRA


Nei Duclós (*)

A poesia é a arte das poucas palavras. Não das palavras escassas, enxutas, áridas, secas, torcidas como arame farpado e expostas nos eventos suntuosos que celebram os talentos mínimos. Não das palavras úmidas e sebosas que compõem a redundância do sentimentalismo industrial. Mas das palavras como pontas de iceberg, para usar uma imagem comum, mas clara. Como bóia de gigantescas redes submersas, que ao serem vistas na madrugada dizem tudo sobre o que trazem no ventre, se peixes ou sargaços.

São como estrelas solitárias antes das tormentas, que representam todo o céu ainda encoberto, promessa do que virá na bonança. Palavras precisas, mas sem precisão cirúrgica, já que a poesia não serve para retalhos, cortes superficiais ou profundos, sangramentos ou costuras. Mas com grandeza suficiente para resumir uma legião num gesto, uma civilização num jarro, uma guerra perdida ao longo de dez continentes, representada por um único funeral, chorado por quem não deveria ter sobrevivido.

Para o poeta que analisa poesia, a exegese também obedece a esse sumário de necessidades fundamentais. Basta uma frase, um parágrafo, uma citação para Manuel Bandeira chegar ao núcleo do poeta abordado em sua Apresentação da poesia brasileira. O livro, relançado pela CosacNaify dentro das comemorações do ano dedicado a Bandeira, contem, em sua cara-metade, uma antologia primorosa dos principais poetas brasileiros desde a proto-História da América Portuguesa até os movimentos de vanguarda como Modernismo, Concretismo e Praxis. Nascido clássico, por ter sido criado por um Mestre que teve a paciência de militar no grande varejo da cultura literária do país, a obra abrange muito sem utilizar páginas em demasia. Por isso tornou-se referência de todos os manuais sobre o tema, já que, além dos movimentos literários e dos seus principais destaques, o autor cuida também de incluir algumas poucas palavras dos seus pares, críticos selecionados e obrigatórios, que também se debruçaram sobre o que está sendo apresentado.

A primorosa edição teve quase que só qualidades, como o volume de grande esmero visual e gráfico, a reprodução cuidadosa de capas originais dos livros citados e um posfácio decisivo de Otto Maria Carpeaux, que coloca na roda, num texto de erudita simplicidade e clareza, o mais importante poeta praticamente ignorado na antologia, ou seja, o próprio Manuel Bandeira. Mas contém alguns pecados, como destacar as boutades de Bandeira contra algumas vacas sagradas da poesia, no trecho de Alcides Villaça na contracapa do livro. Dizer que Bandeira foi, além de "sutil e sugestivo" em "cada inspirado approach", também "curto e grosso", não leva em conta o essencial da obra. Pois não se trata de de elencar curiosidades - as denúncias contra alguns cânones - mas exatamente a de poder dizer muito com poucas palavras.

Rastrear as origens da inspiração de grandes poetas, como Bandeira faz especialmente nos autores até o século 19, é, mais do que provocações, um sincero relato das raízes de nossa literatura, que, como o país, começou com a clonagem e foi se desdobrando e ganhando originalidade com o tempo, não apenas com o tempo da nação, mas com o espaço de vida dos autores, que começam plagiando e acabam adquirindo voz própria. Fica, portanto, incompleto o juízo sugerido pela apresentação de Villaça, pois algumas colocações fortes de Bandeira, desprovidos do seu contexto e pinçados como a forma de atrair a atenção dos compradores do livro, acabam resvalando para a injustiça. Ele disse realmente que alguns versos oswaldianos são de um romancista em férias, mas isso não mostra a grandeza atribuída por Bandeira ao mais representativo poeta modernista. O mesmo sobre Mario de Andrade, com quem Bandeira manteve extensa correspondência por 22 anos e que na contracapa acaba sofrendo mutilação provocado por aspas súbitas.

Há ainda, agora na própria obra, a ressalva do voo superficial sobre muitos autores e fases da poesia brasileira, o que é de se esperar num manual que tenta abarcar três séculos de produção em mais de 200 páginas de análise e 250 de poemas selecionados. Isso nada tem a ver com a síntese celebrada no início desta resenha, já que o tiro certeiro do poeta sobre seus destaques jamais peca pela ligeireza ou superficialidade. O que falta é mais paciência para tratar muitos poetas com a mesma desenvoltura com que ele trata os de sua preferência. Mas isso seria pedir demais, já que, se deixou praticamente de lado Mario Quintana, dedicou-se com gosto a Cecília Meirelles e Augusto Frederico Schmidt.

Mas o forte da sua antologia são os primeiros tempos da saga poética brasileira, ou melhor, a época que vai do berço até os simbolistas. São páginas antológicas e esclarecedoras sobre os gongorizantes e árcades, românticos e parnasianos, num balanço que sabe ser, à luz desse enfoque das poucas palavras, minucioso e abrangente. Em cada item analisado, há sempre a contribuição oportuna tanto do exegeta brilhante, como do estudioso ético, que cita os críticos que ajudam a lançar luzes sobre os temas.

Ler Manuel Bandeira, é recuperar o gosto não só pela História da literatura brasileira, mas também mergulhar em obras que fazem parte do nosso imaginário e que está dispersa na atual vida nacional, em que perdemos a pista dos nossos parâmetros e ficamos esquecidos da nossa formação, fruto talvez do excesso do consumo desses tipo de cultura em épocas passadas.

Quando Bandeira chega no modernismo, fica claro essa exaustão verde-amarela do pensar o Brasil de todas as formas, de tentar desengessar o país de suas amarras, de propor saídas para a percepção coletiva do que somos, de onde viemos e para onde vamos. Mesmo os autores que ficaram à parte da febre, exibem na sua solidão a postura explícita de confronto ao que ocupava as mentes nacionais na primeira metade do século vinte, pelo menos até os anos 1940. Eis aí a importância desta obra, pois ao resgatar o sabor do Brasil e sua grande e secular poesia, Manuel Bandeira nos entrega uma obra arejada, sem os vícios tão combatidos pelos modernistas como ele, e que possuem essa capacidade de servir de referência para a quantidade de informações e arte que circula ao redor de palavras escolhidas.

É uma farta sementeira contida em alguns esboços, páginas, parágrafos e capítulos. Não que Bandeira nos empurre para o passado, ao contrário. Ele nos conquista para as ocupações dos nosso grandes poetas, para a atualidade de recados que ganharam a permanência, para a força de obras que foram geradas no ventre do país complicado.

É tocante revisitar não apenas o trabalho crítico do poeta eterno da Evocação do Recife e de tantos outros poemas inesquecíveis. Mas também ouvir a voz novamente de Gonçalves Dias, Castro Alves, Alphonsus de Guimaraes, Olavo Bilac, Cecília Meireles, Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, entre tantos outros. Ficamos encantados com esse tesouro que redescobrimos. Temos assim a chance de lembrar o país que fomos e que, se a continuidade da poesia permitir, sempre seremos.

RETORNO – (*) Texto publicado no caderno Variedades do Diário Catarinense.

RAYMUNDO FAORO E O ANACRONISMO: TRÊS ENSAIOS EXEMPLARES


Nei Duclós

Anacronismo é a palavra chave dos três ensaios de Raymundo Faoro, enfeixados num só volume publicado pela Atica em 1994 e que leva o título de um deles Existe um pensamento político brasileiro? Neste texto principal, o Mestre analisa a osmose entre Portugal e Brasil nas ações do poder, consolidadas num acervo pragmático de princípios que se adaptam às circunstâncias. O segundo é A Modernização Nacional, onde aborda as diferenças entre modernidade, a evolução social equilibrada e dentro de um cronograma "natural", e a modernização, que são as intervenções feitas aos arranques, na base do fórceps e que deixam um rastro de ruinas. E o terceiro é A Ponte Suspensa, sobre a a natureza e a influência na vida brasileira da biografia que Joaquim Nabuco fez sobre seu pai, "Um estadista no Império", lançado no final do século 19.

Anacronismo vem do grego e significa "contra o tempo". No caso dos ensaios citados, é a sobrevivência de esquemas ultrapassados no presente como fonte das tragédias nacionais. O que deveria estar morto e enterrado continua dando as cartas, pois o poder não se transforma com as pressões da realidade, antes faz concessões para se manter intacto. Isso provoca um círculo vicioso, um tempo cíclico que volta sempre ao ponto de partida, sem jamais ir em frente, amarrando o país a anacronismos e asfixiando a evolução social. Como acontece esse fenômeno, na visão de Faoro? Por meio do pensamento político, que é uma praxis, é a própria política, diferente da filosofia política.

Por exemplo, o liberalismo. Faoro coloca o paradigma inglês e americano em oposição à gestão do Marquês de Pombal, no final do século 18, que, aproveitando o grande terremoto em Lisboa, desengessou Portugal do Absolutismo sem abrir mão dele. No lugar da livrre circulação das idéias e da desenvoltura dos atores sociais por meio da representação e da ação, tivemos a continuidade do realismo, constitucional só na aparência, com a prevalência do Rei sobre as Cortes, que existiam pró-forma e poucas vezes eram convocadas - e quando isso acontecia, era para reafirmar a vopntade do trono. O processo se intensificou até a ruptura na Revolução do Porto em 1820, em que Portugal, inconformado com a transferência do Reino para o Brasil, exigiu a volta de suas prerrogativas.

O pensamento político que se desenvolveu nesse período, segundo Faoro, acabou marcando definitivamente o pensamento político nos dois lados do Atlântico. A partir dessa situação, começaram a conviver dois tipos de forças: o liberalismo consentido e orgânico do Rei e seus áulicos, e um liberalismo subeterrâneo, potencial, que jamais se impôs e que a toda hora ressurge com grande poder de desarticulação, obrigando o poder a rearrumar a casa para continuar imperando. Essa pulsação doentia do projeto político fracassado, alimentado pelas circunstâncias reais, confronta ciciclamente a artimanha oficial e faz com que o país continue marcando passo, sem jamais chegar a um desenlace.

Essa visão pessimista do Brasil, de uma obra que não reconhece aqui a existência de um verdadeiro capitalismo, quando nem temos uma sociedade de classes clássica, já que o topo da pirâmide é ocupada sempre pelo estamento político e burocrático, tem grande margem de acerto, apesar de ser contestada por outras correntes do pensamento brasileiro. Os marxistas não toleram esse foco weberiano da análise de Faoro, já que eles acreditam na sociedade de classes tradicional e acham até que a Revolução de 30 foi uma "revolução burguesa" e que os operários e camponeses, como aconteceu na Rússia, deveriam tomar o poder. Mas o que vimos com Lula, num processo posterior à divulgação da tese de Faoro, é que o pretenso operário virou parte do estamento e tudo continuou como antes.

Vejo o seguinte furo: Faoro faz tabula rasa da Era Vargas, colocando-a ao lado, em sintonia com sua demolição, 1964. Não poderia haver relação em 1930 e 1964, ou entre 1937 e 64, como sustenta Faoro, já que 37 foi a implantação de uma economia que viabilizou o país soberano (vitória colhida mais tarde por JK) enquanto 64 foi exatamente o contrário. Ambos se parecem pelas intervenções do Estado, mas os objetivos se apartam radicalmente. Mas essa é a visão que tenho hoje, lendo o mestre e sua brilhante análise do pensamento político brasileiro.

O segundo ensaio do livro, ou Segunda Parte, "A Modernização Nacional", aprofunda o mesmo tom de lamento. Nossa modernização é a anti-modernidade. Ou seja, as intervenções estatais para queimar etapas e fazer do Brasil uma nação desenvolvida, como quis Vargas e JK, ou uma potência, como quiseram os militares em 1964, acaba gerando insegurança e ruina por não se sustentar em bases sólidas. São fases que sofrem de ultrapassagem permanente do tempo, como aconteceu nos planos econômicos da chamada Nova República na época de Sarney, citados por Faoro como exempolo desses arranques perniciosos (outro foi a implantação do sistema ferroviário no tempo do Império e outro o Encilhamento, a grande festa financiera da Primeira República). No lugar de gerar o que se chama hoje de desenvolvimento sustentável (que não era moda quando o livro foi escrito), opta-se pelas mágicas salvadoras. Vemos isso na atual febre do pré-sal, panacéia para todos os nossos pronblemas.

Na Terceira Parte, "A Ponte Suspensa", Faoro coloca o livro de Nabuco sobre seu pai como exemplo dessa falta de sintonia entre uma base podre e uma supperestrutura equivocada. No caso, o perfil dos estadistas de inspiração francesa, como Nabuco e o pai, e que reforçam a necessidade de um poder sem povo, mas de aparência moderna. Resgatar a permanência das atitudes e pensamentos do Segundo Império, como faz Nabuco, tanto nessa biografia quanto no seu clássico "O Abolicionismo", segundo Faoro, acaba infletindo sobre o pensamento político da República. O anacronismo é o alerta de Faoro, ao explicar que a excelência do estilo esconde no fundo um projeto de poder que pretende se manter eternamente assentado sob mesmas colunas do passado.

Essa é a síntese, a vôo de pássaro, que faço dessa leitura gratificante do Mestre Raymundo Faoro, que sempre nos torna melhores quando o lemos. Ele nos desperta e, muitas vezes, nos obriga a contestá-lo, não porque tenha dito algo sem consistência, mas porque sua argumentação sólida e brilhante pode nos contrariar, e revidar é sempre um esforço que contribui para a auto-superação. Somos nós, cidadãos brasileiros, estudantes diante dos Mestres: assim , aprendemos a lidar com a produção de pensamento.