Blog de Nei Duclós. Jornalismo. Poesia. Literatura. Televisão. Cinema. Crítica. Livros. Cultura. Política. Esportes. História.
Páginas
▼
19 de setembro de 2009
POUCAS PALAVRAS EM MANUEL BANDEIRA
Nei Duclós (*)
A poesia é a arte das poucas palavras. Não das palavras escassas, enxutas, áridas, secas, torcidas como arame farpado e expostas nos eventos suntuosos que celebram os talentos mínimos. Não das palavras úmidas e sebosas que compõem a redundância do sentimentalismo industrial. Mas das palavras como pontas de iceberg, para usar uma imagem comum, mas clara. Como bóia de gigantescas redes submersas, que ao serem vistas na madrugada dizem tudo sobre o que trazem no ventre, se peixes ou sargaços.
São como estrelas solitárias antes das tormentas, que representam todo o céu ainda encoberto, promessa do que virá na bonança. Palavras precisas, mas sem precisão cirúrgica, já que a poesia não serve para retalhos, cortes superficiais ou profundos, sangramentos ou costuras. Mas com grandeza suficiente para resumir uma legião num gesto, uma civilização num jarro, uma guerra perdida ao longo de dez continentes, representada por um único funeral, chorado por quem não deveria ter sobrevivido.
Para o poeta que analisa poesia, a exegese também obedece a esse sumário de necessidades fundamentais. Basta uma frase, um parágrafo, uma citação para Manuel Bandeira chegar ao núcleo do poeta abordado em sua Apresentação da poesia brasileira. O livro, relançado pela CosacNaify dentro das comemorações do ano dedicado a Bandeira, contem, em sua cara-metade, uma antologia primorosa dos principais poetas brasileiros desde a proto-História da América Portuguesa até os movimentos de vanguarda como Modernismo, Concretismo e Praxis. Nascido clássico, por ter sido criado por um Mestre que teve a paciência de militar no grande varejo da cultura literária do país, a obra abrange muito sem utilizar páginas em demasia. Por isso tornou-se referência de todos os manuais sobre o tema, já que, além dos movimentos literários e dos seus principais destaques, o autor cuida também de incluir algumas poucas palavras dos seus pares, críticos selecionados e obrigatórios, que também se debruçaram sobre o que está sendo apresentado.
A primorosa edição teve quase que só qualidades, como o volume de grande esmero visual e gráfico, a reprodução cuidadosa de capas originais dos livros citados e um posfácio decisivo de Otto Maria Carpeaux, que coloca na roda, num texto de erudita simplicidade e clareza, o mais importante poeta praticamente ignorado na antologia, ou seja, o próprio Manuel Bandeira. Mas contém alguns pecados, como destacar as boutades de Bandeira contra algumas vacas sagradas da poesia, no trecho de Alcides Villaça na contracapa do livro. Dizer que Bandeira foi, além de "sutil e sugestivo" em "cada inspirado approach", também "curto e grosso", não leva em conta o essencial da obra. Pois não se trata de de elencar curiosidades - as denúncias contra alguns cânones - mas exatamente a de poder dizer muito com poucas palavras.
Rastrear as origens da inspiração de grandes poetas, como Bandeira faz especialmente nos autores até o século 19, é, mais do que provocações, um sincero relato das raízes de nossa literatura, que, como o país, começou com a clonagem e foi se desdobrando e ganhando originalidade com o tempo, não apenas com o tempo da nação, mas com o espaço de vida dos autores, que começam plagiando e acabam adquirindo voz própria. Fica, portanto, incompleto o juízo sugerido pela apresentação de Villaça, pois algumas colocações fortes de Bandeira, desprovidos do seu contexto e pinçados como a forma de atrair a atenção dos compradores do livro, acabam resvalando para a injustiça. Ele disse realmente que alguns versos oswaldianos são de um romancista em férias, mas isso não mostra a grandeza atribuída por Bandeira ao mais representativo poeta modernista. O mesmo sobre Mario de Andrade, com quem Bandeira manteve extensa correspondência por 22 anos e que na contracapa acaba sofrendo mutilação provocado por aspas súbitas.
Há ainda, agora na própria obra, a ressalva do voo superficial sobre muitos autores e fases da poesia brasileira, o que é de se esperar num manual que tenta abarcar três séculos de produção em mais de 200 páginas de análise e 250 de poemas selecionados. Isso nada tem a ver com a síntese celebrada no início desta resenha, já que o tiro certeiro do poeta sobre seus destaques jamais peca pela ligeireza ou superficialidade. O que falta é mais paciência para tratar muitos poetas com a mesma desenvoltura com que ele trata os de sua preferência. Mas isso seria pedir demais, já que, se deixou praticamente de lado Mario Quintana, dedicou-se com gosto a Cecília Meirelles e Augusto Frederico Schmidt.
Mas o forte da sua antologia são os primeiros tempos da saga poética brasileira, ou melhor, a época que vai do berço até os simbolistas. São páginas antológicas e esclarecedoras sobre os gongorizantes e árcades, românticos e parnasianos, num balanço que sabe ser, à luz desse enfoque das poucas palavras, minucioso e abrangente. Em cada item analisado, há sempre a contribuição oportuna tanto do exegeta brilhante, como do estudioso ético, que cita os críticos que ajudam a lançar luzes sobre os temas.
Ler Manuel Bandeira, é recuperar o gosto não só pela História da literatura brasileira, mas também mergulhar em obras que fazem parte do nosso imaginário e que está dispersa na atual vida nacional, em que perdemos a pista dos nossos parâmetros e ficamos esquecidos da nossa formação, fruto talvez do excesso do consumo desses tipo de cultura em épocas passadas.
Quando Bandeira chega no modernismo, fica claro essa exaustão verde-amarela do pensar o Brasil de todas as formas, de tentar desengessar o país de suas amarras, de propor saídas para a percepção coletiva do que somos, de onde viemos e para onde vamos. Mesmo os autores que ficaram à parte da febre, exibem na sua solidão a postura explícita de confronto ao que ocupava as mentes nacionais na primeira metade do século vinte, pelo menos até os anos 1940. Eis aí a importância desta obra, pois ao resgatar o sabor do Brasil e sua grande e secular poesia, Manuel Bandeira nos entrega uma obra arejada, sem os vícios tão combatidos pelos modernistas como ele, e que possuem essa capacidade de servir de referência para a quantidade de informações e arte que circula ao redor de palavras escolhidas.
É uma farta sementeira contida em alguns esboços, páginas, parágrafos e capítulos. Não que Bandeira nos empurre para o passado, ao contrário. Ele nos conquista para as ocupações dos nosso grandes poetas, para a atualidade de recados que ganharam a permanência, para a força de obras que foram geradas no ventre do país complicado.
É tocante revisitar não apenas o trabalho crítico do poeta eterno da Evocação do Recife e de tantos outros poemas inesquecíveis. Mas também ouvir a voz novamente de Gonçalves Dias, Castro Alves, Alphonsus de Guimaraes, Olavo Bilac, Cecília Meireles, Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, entre tantos outros. Ficamos encantados com esse tesouro que redescobrimos. Temos assim a chance de lembrar o país que fomos e que, se a continuidade da poesia permitir, sempre seremos.
RETORNO – (*) Texto publicado no caderno Variedades do Diário Catarinense.
Nenhum comentário:
Postar um comentário