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23 de setembro de 2009
HONDURAS: PRESIDÊNCIA ILEGAL E ESCRAVIDÃO
Presidência ilegal é aproveitar-se do mandato para contrariar a constituição e tentar espichá-lo por meio de um plebiscito. Democracia não é a ditadura da maioria, é o acordo entre forças políticas adversárias que disputam a maioria dos votos. Se há uma lei proibindo um segundo mandato, como no caso de Honduras, ou de um terceiro, como no Brasil, cumpra-se a lei. Manuel Zelaya tentou repetir Chavez (que está há uma década no poder), mas se deu mal. Foi demitido do cargo à força pelos outros poderes, sendo que o judiciário já consolidou a nova situação de fato. Ou seja, se existe alguém ilegal no país é Zelaya, acoitado na embaixada brasileira por Lula, que fez o que fez por um só motivo: tentar o terceiro mandato. É isso que está em jogo.
O caso Zelaya abria um precedente perigoso para Lula, pois demonstra que a vontade política pode impedir que um aventureiro use um expediente maroto para continuar no poder. Reinstaurá-lo não é para salvar a democracia no continente, mas é para provar que um oportunista pode muito bem se eternizar no palácio lançando mão de um recurso pretensamente democrático. Se Lula não quisesse um terceiro mandato, não escolheria um poste, Dilma, para candidata. É óbvio que essa candidatura fará água no percurso até as eleições, que são daqui a mais de um ano.
Bastará algumas marolas fortes nas grandes capitais para criar uma atmosfera de pânico e pronto, está oferecida a solução: o sujeito que mente sem parar e que sonha em sair vitorioso da enrascada em que se meteu, motivado por sua ambição e sua irresponsabilidade. Ele gerou uma enorme dívida com os países hispânicos, de todos os lados. Com os chavistas, pois ao ser usado pelo governo venezuelano para colocar Zelaya na embaixada, amarrou o rabo para sempre. Com os hondurenhos, pois transformou a embaixada no quartel do presidente deposto, o que está longe de ser um asilo político, transformando-se numa grossa interferência. E com o resto da gang, Morales, Lugo etc., que agora sabem que o Brasil perdeu a moral que tinha e podem continuar passando a mão como têm feito até agora.
O fato de Lula usar o discurso da ONU (que sempre, na abertura, conta com o Brasil, desde Oswaldo Aranha, secretário-geral da ONU e ministro do Brasil soberano) para exigir a volta de Zelaya ao poder desmascara todas as mentiras de que não sabia de nada. Foi tudo armado para coincidir com a presença de Lula na ONU. Viramos assim escravos da nossa própria brutalidade. Devemos não apenas trilhões para os especuladores que aqui se refestalam com nossa política de juros, mas também à comunidade internacional, ao participar como protagonista de uma palhaçada histórica. Como poderemos pagar as mortes que já começam a pipocar? E a instabilidade de Honduras? E os favores a Chavez, que se encarregou da operação invasora? Certamente Chavez convenceu Lula de que o Brasil sairia do episódio coberto de glórias. Milonga de malandro é fácil de detectar. Tem gente que não conhece as figuras e acaba se enredando, porque cai no conto do vigário: quer ser mais malandro do que o meliante.
A DÍVIDA IMPAGÁVEL
"A soberania nacional, para ser respeitada, deve conter-se nos seus limites", disse Joaquim Nabuco no livro fundamental da nacionalidade, O Abolicionismo. O mau uso da bandeira nacional nas alocuções do ex-presidente panamenho é apenas uma profanação, idêntica à dos navios negreiros que se escudavam no verde-amarelo para o tráfico ilegal. Esse episódio, que está sendo considerado "o Waterloo da política externa de Lula", além de encher o país de vergonha, gera uma dívida moral difícil de resgatar. Como poderemos exigir respeito se desrespeitamos a soberania de Honduras?
Como sabemos desde "O Abolicionismo", escravidão é dívida impagável. A imagem usada por Nabuco é a de Shylock, o cobrador da dívida na peça de Shakespeare, o Mercador de Veneza, que emprestou dinheiro em troca de uma libra de carne do corpo do devedor. Como cortar um braço para pagar uma dívida? A dependência, então, se eterniza.
No Brasil, nos ensina Nabuco, o escravo era uma dívida ao senhor. Valia pouco ao nascer, mas a mãe não tinha dinheiro para resgatá-lo. Ele crescia e o seu valor crescia junto. Para tirá-lo do cativeiro, só pagando muito caro, o que não acontecia. O normal era que outro proprietário resgatasse a dívida e o levasse para seus domínios. Vemos como esse expediente continua valendo no Brasil de hoje. Não falo apenas dos lavradores que ficam devendo até as botas que usam no trabalho para seus patrões e por isso não conseguem pagar a dívida, tornando-se escravos. Mas de todos nós que devemos nas megalojas e nos bancos: nunca se consegue pagar essa dívida totalmente, pois ela joga com nossas necessidades no país sem fundos (que, por sua vez, deve os tubos para os estrangeiros) e que é rolada indefinidamente. Somos, portanto, ainda escravos.
O Abolicismo é um livro admirável e impressionante. Nabuco esmiúça as idas e vindas dos senadores que conseguiram adiar indefinidamente a emancipação dos escravos por meio de várias artimanhas. Na Lei do Ventre Livre, de 1871, chegaram ao cúmulo de libertar os escravos que não tinham nascido e manter sob o jugo os adultos que, por lei, estavam emancipados desde 1831, segundo acordo internacional lavrado pela Regência Trina. O cativeiro ilegal assumia foro de lei, porque é assim que funciona: eles emendam uma lei óbvia até torná-la irreconhecível para que alguém como o Sarney assine. Isso pode acontecer na tentativa de eternização dos mandatos pretensamente apoiados pela maioria.
Presidência ilegal e escravidão: é isso que está em jogo em Tegucicalpa.
"Existe um povo que a bandeira empresta
Pr'a cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?!...
Silêncio!... Musa! chora, chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto...
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra,
E as promessas divinas da esperança...
Tu, que da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança,
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...
Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu na vaga,
Como um íris no pélago profundo!...
...Mas é infâmia de mais... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo...
Andrada! arranca este pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta de teus mares!"
(Castro Alves, Navio Negreiro)
RETORNO - 1. Imagem desta edição: Al Pacino como Shylock, no filme O Mercador de Veneza. 2. Ao longo do dia, esta edição foi aprimorada, já que joga com uma sintonia complicada entre a tradição escravagista brasileira e a intervenção em Honduras. O objetivo é colocar os eventos em contextos integradores, para que possamos entendê-los melhor. Nem sempre o trabalho é bem sucedido, mas vale a vontade de não se entregar a evidências e a versões datadas, que são superadas no dia seguinte. As edições do Diário da Fonte, em sete anos de existência, são lidas simultaneamente, todos os dias. Quanto menos "pontuais", melhor.
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