Se o futebol fosse dividido (e não articulado) entre força e arte teríamos que ler os cronistas esportivos. Como não se divide, podemos dispensar os luminares da bola.
O que nos oferece a campanha da seleção brasileira feminina de futebol, campeã deste Pan no Rio? Primeiro, que futebol é o esporte verdadeiro. Basta lembrar nossa ansiedade na hora em que o caroneiro das vitórias alheias, o oportunista Galvão Bueno, chamava alguma briga aos pontapés e interrompia a transmissão da final do Brasil contra os Estados Unidos, quando as gurias da camisa amarela deram um vareio de cinco a zero nas gringas.
Queríamos, nessas interrupções, o esporte de volta, esse jogo coletivo que depende da resistência, do treinamento, do preparo, do fôlego (e por isso ele é força) com o coroamento do talento e da técnica (e por isso ele é arte). Não queríamos ver pessoas se chutando e vibrando quando levavam algum tranco pelos flancos (talvez levar pontapé na bunda conte pontos, sei lá).
Pequeno intervalo para Galvão Bueno, que só apareceu no apagar das luzes do torneio, com a cara lambida, se apropriando de toda a trajetória não só das jogadoras como dos seus colegas da Globo, tendo o desplante de implorar apoio às atletas, ele que faz parte do monopólio, que pega a parte do leão na divisão de verbas, pois meu caro contribuinte, você acha que sai de onde a bufunfa que mantém a Globo com a mão em tudo o que é transmissão esportiva?
Voltamos ao jogo. Futebol não é espetáculo nem pugilismo, é futebol mesmo. Quando a combinação entre força e talento exibe o estado de arte da equipe, temos o que a crônica esportiva suspira, algo como 1982 sem os italianos. Esquecem-se que no próximo lance, as americanas virão com tudo contra as gurias brasileiras, pois aprenderam uma dura lição no Maracanã: não podem subestimar um conjunto que se aprimorou na sintonia entre suas partes, graças ao esforço e à cultura acumulada do futebol pentacampeão do mundo. Nesse próximo evento, o Brasil feminino terá que resgatar um pouco de Dunga para chegar a Telê Santana. Pois tudo nessa vida é movida pela dialética.
Veja a diferença do Brasil em relação ao resto pela rigidez dos joelhos. As gringas, por exemplo, por mais eficientes que tenham sido neste longo período em que nossas atletas amargaram o exílio da parte mais alta do pódio, jamais poderão desamarrar os joelhos. Estes ficarão sempre presos, como se alguém os tivesse atado com cordas de aço. É preciso soltar as articulações para que exista futebol brasileiro. Vimos isso nas corridas em direção ao gol. Quando as brasileiras atacavam, tudo nelas estava solto. Não perdiam tempo, como as gringas, em firmar o corpo nos joelhos presos e atarrachados com algum parafuso invisível.
As articulações soltas nos tornozelos faziam com que as bolas da linha de fundo chutadas para dentro da área chegassem de maneira perigosa, às vezes até quase cometendo um gol olímpico. O totózinho final de esquerda e de chapa para fazer um dos outros gols também é revelador. O pescoço solto e a cabeça firme fazia com que a bola quicasse mais de uma vez nas cabeças das jogadoras brasileiras em direção às redes. O drible final antes do lance matador vem dessa soltura em campo, viabilizada pela dureza do ofício e pela herança do futebol pentacampeão do mundo.
Não quer dizer que Dunga estava errado ao não subestimar os adversários e colocar em campo a equipe possível de maneira prudente, mas firme, que depois do susto contra o México se firmou e venceu a Copa América. As gurias também tiveram que tirar o salto alto contra o México. Voltaram mais objetivas, pois o treinador lhes ensinou que elas só podem brilhar depois do serviço feito. Não se coloca uma coroa na sola do pé. Não se exala um perfume pela raiz. O futebol arte é o esplendor do futebol força, jogado com as articulações soltas.
Quem quiser que explique de outra maneira.
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