Roland Barthes merece que dediquemos as ele não apenas a leitura atenta e encantada, mas o reconhecimento do quanto contribui para entendermos melhor a nossa época, que ele decifrou como ninguém. Estou me referindo, claro, ao seu clássico Mitologias, escrito entre 1954/1956 e publicado em 1957. Não me aprofundei ainda em seus outros escritos, mas só esse livro já me alimenta por uma década. Posso assegurar que os melhores momentos do Diário da Fonte são puro Roland Barthes, ou o que aprendi com ele.
No momento em que ele escreveu que as “franjas obstinadas” nas testas dos personagens do filme Julio César, de Joseph Mankiewicks, eram a “ostentação da romanidade” inventada por Hollywood, abriu-se um clarão e uma estrada infinita de insights sobre filmes, livros, reportagens, imagens etc. Se Barthes, o gênio que foi convidado para ser professor da Escola dos Altos Estudos da França pela sua obra radical e profunda, tem a ousadia de enxergar uma evidência dessas, é porque toda a manipulação a que estamos submetidos pode ser lida de uma outra maneira.
Foi assim que descobri que em “De olhos bem fechados”, Stanley Kubrick mostra como a alta burguesia impede que as outras classes sociais a enxerguem, para melhor dominá-las. Ou que, no cinema, não existe reconstituição de época, mas apenas composição de cenários em função da narrativa, como escrevi no ensaio sobre o filme “As horas”. Quando Barthes mostra o filé com fritas como expressão da “francidade”, do perfil nacional da França, ou o cinema sobre lugares exóticos como uma das muitas armadilhas da exclusão de uma cultura de classes (texto que sintonizei com meus posts sobre documentários que distorciam o mundo animal e o colocavam sob as patas da hegemonia humana) Barthes está abrindo nossos olhos para o poder da mistificação que nos esvazia.
Ler o mito, para reconciliar “o real e os homens, a descrição e a explicação, o objeto e o saber” é, para Barthes, revelar a função essencial dos mitos. O importante é não deixar-se levar pela iconoclastia, a relação sarcástica com o tema, pois essa é uma armadilha do próprio mito, que a tudo impregna. O leitor de mitos, com o qual Barthes se identifica, é diferente do mitólogo, o decifrador de mitos, que acaba se separando da comunidade a qual se dirige, pois acredita pairar acima dos mortais quando acha estar demolindo as certezas. Vimos como os mitólogos proliferaram nas mídias, principalmente na Internet, onde todos são Paulos Francis a sapatear sobre todos os assuntos. Produzir ou consumir mitos é tão alienante quanto ser um sarcástico demolidor de mitos.
O importante é ler com os olhos livres, para entender o mecanismo da alienação promovido por essa cultura que transforma História em Natureza, no dizer de Barthes. Ou seja, essa cultura que encara as coisas como eternas, imutáveis, e esconde as transformações que sofremos ao longo do tempo e das ações. Esconder que somos seres mutantes, transformar o ideal da classe dominante em ideal humano, é a função da vasta gama de mitos que nos cercam por todos os lados.
Vemos isso diariamente, na imprensa e na televisão. Os eventos são apresentados de forma mitificada, para manter essa situação de arrocho econômico e político. O imobilismo nos governa. Vejam como nada muda, por mais que mudem os governantes. É que a imposição dos mitos é tão vasta e profunda, que tudo conspira para que continuemos nesse ambiente sinistro em que as coisas são assim “desde que mundo é mundo”, como costumam dizer.
Barthes é uma ferramenta poderosa para nos desvencilharmos dessa arapuca. É por isso que, toda vez que leio Mitologias, me transformo. Esse cara, Roland Barthes, ao abraçar o “incontornável Marx” (como agora estão se dando conta) se debruça sobre o poder de manipulação da indústria moderna de fabricação de mitos. Melhor para nós, que podemos carregá-lo como um passaporte para as realidades encobertas pela dominação.
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