Quando a tragédia extrapola seus limites cotidianos, e confirma as tendências esboçadas na rotina (a pista insuficiente abraçada à superlotação do aeroporto, por exemplo), a indignação abandona o foro íntimo, ganha corpo e chega a ocupar as atenções da mídia e de algumas autoridades, mas só por algum tempo. Logo depois, volta ao seu leito normal.
É o que se espera de uma indignação tornada inócua por se tratar sempre de uma impostura. Pois ela não é movida coletivamente por uma reação ao evento trágico e sim pela inércia individualizada de hábitos cristalizados. Pode até se agrupar, momentânea ou permanentemente, mas jamais consegue infletir sobre o que sempre escapa, os destinos. Ela não toma forma de uma representação conseqüente, antes se estilhaça no momento mesmo de se manifestar. Ou fica confinada a alguns testemunhos mais exaltados, ou se derrama em lágrimas das pessoas próximas às vítimas, exatamente as menos indicadas para expressar a indignação que deveria ser uma ação política.
Trata-se de uma impostura pois os mesmos poderes que guardam a revolta trancada em camadas espessas, canais obstruídos e mistificação em massa se apressam em selecionar as manifestações que vão desaguar na vala comum. Desagregada pela falta de um sistema democrático verdadeiro, que paire acima dos interesses que mudam o batismo de aeroportos para atender dores repentinas (como aconteceu com o Dois de Julho em Salvador), a indignação permanece atônita, diante da sua própria inoperância.
As fantasias costumam assenhorar-se do espaço vazio deixado pela revolta que roda sobre si mesma. Uma delas é o desejo latente da “volta” da ditadura, como se na ditadura não estivéssemos ainda. O mito de que nos libertamos dos opressores é talvez a verdadeira tragédia nacional. Entronizamos um simulacro de democracia para nos servir de álibi para a saudade do arbítrio, que teria o dom salvacionista para o desamparo. Que democracia é esta? costuma perguntar a indignação tornada uma impostura.
Num país onde são enterrados com honras nacionais os impostores que derrubaram um governo duas vezes consagrado nas urnas (o de João Goulart, nas eleições presidenciais e no plebiscito), sem que nesses funerais tardios nenhuma autoridade se manifeste contra a manipulação da opinião pública e a malversação dos poderes, convivemos com a ausência completa de oposição. E não temos oposição porque a indignação é um simulacro, é uma certeza de que é inócua, é apenas um desabafo da hora, um abraçar entre lágrimas, um dedo em riste, algumas palavras inspiradas na sabedoria de ocasião e no descrédito de que somos realmente uma nação.
Tudo o que realmente importa faz parte apenas de um sistema de perigosas superficialidades: disputa de butins, privatizações, corrupção, ineficiência, especialmente a teórica. Não estamos acostumados a pensar o Brasil com o espírito público que formou a grande nação e que poderia evitar o ambiente sinistro de tragédia permanente, pública ou privada, de responsabilidade ou não do governo. Costumamos culpar ou mitificar o passado para cristalizarmos o álibi do imobilismo.
Abrimos mão inclusive do épico, já que fomos reduzidos à tragicomédia. Não temos mais os gestos que fazem parar o tempo e redirecionar a História. Nossa cultura é a da migalha, do resto. Somos uma fagulha no chão abandonado e coberto de combustível.
RETORNO - Imagem de hoje: Favelão na Via Dutra, vista pelo lado direito de quem chega a São Paulo. Foto de Helcio Toth. Se a indignação não fosse uma impostura, não teríamos um espetáculo desse porte e visibilidade. Teríamos bairros decentes.
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