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21 de outubro de 2006

UMA PILHA DE LIVROS





Nei Duclós

Uma pilha de livros, todos atirados, saindo do saco sujo de sangue, no piso da padaria, atrás daquele troço que mostra os doces e salgados...como é mesmo o nome? Não é balcão, é uma cristaleira enferrujada. O inspetor Murrinha não dominava as palavras, desconhecia seus significados, por isso vivia rodeado de objetos sem nome, que precisavam ser descritos para se fazer entender.

- Ok, Murrinha, entendemos, os livros estão num canto, escondidos e só tu viu. Agora continua o relato.
Não fosse gago, Murrinha passava uma lição de moral no Gordo, que sempre arrumava um jeito de acabar o seu prestígio. Não fosse gago e coxo, talvez pudesse comer a mulher do Gordo. Seria sua vingança.
- É imppppportante saber de onde eles caíram.Eles caíram de cima dessa cccccccristaleira enferrujada, compreendeu? E ficaram no canto, onde ninguém viu, só eu.

O Gordo olhou para o lado, onde estavam dois policiais, que participavam da investigação. Usava um palito pendurado na boca. Abriu as mãos em forma de leque, dizendo bem casual:
- Entendemos...
Murrinha sabia: seu argumento não pesava, sua descoberta agora era dele, Gordo, e praticamente estava fora do trabalho. Dera duro, tinha vindo na primeira hora, estava a postos quando notou algo estranho, o brilho néon de um papel duro. Só então viu que era a capa envernizada de um livro. E mais outro. Havia um tesouro exposto com suas luzinhas naquele cantinho. Eram livros de negócios, auto-ajuda, como é mesmo nome? Livros que te conduzem para a inteligência visceral, emocional, ou sei lá o quê. O que fazia aquela pilha de livros esquecidos no lugar onde houvera um assassinato?
- Suicídio, corrigiu o Gordo. A balconista se matou.
- Com dddddois golpes na cabeça? Vvvvvai ver o primeiro não pegou direito aí ela mmmmandou ver de novo. Tttttodo mundo tem direito a uma ssssegunda chance, não é Gggggordo?

O rotundo inspetor-chefe olha para o nada com seus olhos de sampacu. Murrinha não era o problema. O problema era a imprensa. Já estava se sobreaviso. Dali a pouco chegariam as barbies segurando microfones, loucas para dizer afinal, afinal, afinal.
- Afinal, foi morte natural, disse o Gordo no fim da entrevista.
Houve uma gritaria geral:
- Como morte natural?
- Quero dizer, é natural que tenha morrido, depois de perpetrar suicídio. E chega por hoje. Vão ver se caiu algum barraco na zona leste.

Psssst. Murrinha era péssimo com a mulheres, não acertava uma. Queria chamar a atenção da repórter, mas só sabia dizer psssst.
- O senhor está me chamando, quer falar comigo, tem a ver com o caso?
- Vvvvvamos tomar um café. Vem aqui. Mas sem o câmara, o motorista, o segurança e o microfone. Só tu, só tu.
A mulher ficou desconfiada. Assim mesmo obedeceu. Foi para o canto da padaria, atrás dos gestos de vem por aqui do estranho policial, que usava chapéu de feltro e capote até os pés.
- Oooooolha ali.
- Não estou vendo nada.
- Cccccomo não? Não vê o saco cheio de livros?
- Ah, é verdade, o que tem?
- Nnnnão acha estranho uma pilha de livros numa padaria onde houve um cccccrime?
- Não. Por quê?
- Tu é mesmo repórter policial?
- Não, eu cubro shopping. Mas me disseram para vir aqui.
- Como assim, ccccobre shopping?
- Sabe dia das mães, da criança, Natal, Ano Novo? Eu faço o link do shopping. Pergunto se vale a pena e eles respondem vale a pena. Também cubro clima. Pergunto se está frio e eles respondem está frio. Nada a ver com isso aqui.
E fez uma cara de nojo.
- Mas os livros devem significar aaaaalguma coisa, tu não acha?
- Ah, isso deve, mas não é minha área.
E se retirou. Murrinha ainda ficou olhando para ela, depois para o saco sujo de sangue. Tocou com o pé uma capa branca, brilhante, que tinha no título a palavra Você bem destacada.
Mas tu é burro, hem Murrinha. Em vez de investigar, quer colocar a imprensa nesse caso. Falava consigo mesmo, não atinava o que iria fazer dali em diante.
- Murrinha, quer carona? Vamnbora para a delegacia. Os protocolos te esperam. Quero um relatório disso aqui, rápido.
- Vvvvvai tomar no cu, Gordo.
- Como é?
- É o que eu fffffalei. Vai tomar no teu cu gordo.
Os dois comparsas do inspetor chefe fizeram gestos de que iriam cair em cima do abusado, mas o Gordo pediu calma. Olhou o desafeto de alto a baixo e lascou:
- Vê se some da vida policial, Murrinha. De hoje em diante você está por sua conta. Nem me aparece lá. Vais receber tudo pelo correio. Fica em casa vendo sessão da tarde. E ó, leva a pilha de livros. Quem sabe você acha uma pista.
- Vvvvvou levar mesmo. Aqui está a cccchave do mistério.
Todos riram. Sabiam que Murrinha lia romances policiais antigos e vivia enchendo o saco com aquela arenga.
- Vai cagar pedra, Murrrinha, gago, manco, imbecil. Vai procurar tua turma.

Murrinha ficou só na padaria, junto ao saco de livros. Com fúria, jogou toda a pilha no chão ainda ensangüentado.
Do fundo do saco, agarrado a um manual de neurolinguística, lá estava ela, a arma do crime: uma faca bem pontuda e afiada, dessas de cortar queijo.
Murrinha pegou um lenço, se abaixou e pegou o material. A faca estava com riscos de sangue, pois tinha sido raspada na capa do livro de neurolinguística. O assassino tinha confiado na polícia: bastava colocar a arma do crime num saco que ninguém iria suspeitar de nada.
- O fiadaputa deu duas cutiladas na cabeça da vítima, disse que a coitada se suicidou e todos acreditaram!
Foi quando Murrinha se virou e teve tempo de ver ainda a cara do dono da padaria, com um rictus no canto da boca, apontando uma arma para ele:
- O Gordo fez uma encomenda. Mandou te matar, te colocar no saco junto com os livros, te atirar no rio, que ele livra a minha barra.
Murrinha não podia escapar, era manco . Não tinha condições de gritar, era gago. E se revidasse e se desse bem, iriam acusá-lo dos dois crimes, o da balconista e o do patrão dela. Por isso suspirou e levou um tiro enquanto folheava um livro que encontrou no meio da pilha. Era uma brochura toda carcomida. Uma velha revista de casos policiais.

RETORNO - Imagem de hoje: o cara.

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