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28 de outubro de 2006

SUCATA DE PESSOAS E NAÇÕES





O bom de ver filmes em dvd é que podemos assisti-los sem nos preocupar com o gênero a qual deveria pertencer, nem com os prêmios que ganhou ou perdeu. O disco caseiro te deixa livre dos festivais ou das noites de gala. Te devolve o gosto de ver sem que interferências variadas digam qual o tipo de percepção que deveríamos ter. Gosto principalmente de filmes fora dos grandes centros. Nesses, seja qual for a nação que produziu a obra, um tema é recorrente: a destruição de pessoas e nações promovida pela globalização. Esta, é o esplendor do velho imperialismo. Conseguiu acabar com as economias nacionais, tungando-as de seus recursos e estabelecendo um vínculo permanente de dinheiroduto que corre pelas veias abertas do sistema financeiro virtual e real. Destruiu identidades nacionais e desmoralizou o passado, já que a memória (não a saudade) é a grande concorrente da atual situação de miséria cultural a que fomos reduzidos. Seja na Argentina ou na Finlândia, esse é o tema dos filmes que nos encantam e nos fazem ter esperança de que há consciência desse massacre, primeiro passo para tentar reverter o pesadelo.

METÁFORA - O Homem sem passado (2002), de Aki Kaurismäki, é metáfora dessa destruição. A economia finlandesa destruída oferece um quadro de incerteza e miséria, com empresários falidos, bancos sendo vendidos para a Coréia, falta de comida, moradia e emprego, violência social, desemprego e principalmente amnésia. O protagonista (Markku Peltola, ótimo na sua performance de gigante quase mudo , triste e determinado) foi assaltado e perdeu a memória devido a um golpe na cabeça. Sem vínculo com sua vida anterior, recebe a solidariedade de uma família e do Exército de Salvação, onde encontra uma namorada (Kati Outinen, premiadíssima com esta atuação). Mesmo sabendo depois o próprio nome e o lugar onde pertencia, preferiu a nova vida, onde encontrou um ambiente que o acolheu. A escassez e a solidão das pessoas sucateadas gerou novos caminhos: maneiras diferentes de ganhar a vida, rumos não tradicionais, sintonia de gestos e falas e resgate de culturas perdidas, principalmente a música finlandesa, com canções de quebrar o gelo.

DENÚNCIA - Conseguir dar a volta por cima não é um elogio para a adaptação aos tempos duros de hoje, e sim uma denúncia. Significa que a nação persiste dentro de seus cidadãos perseguidos. A metáfora funciona como a vida possível que acontece depois da morte certa. Pois o protagonista apresenta-se morto no hospital que começa a providenciar seu funeral. Ele se levanta da cama e vai para ao subúrbio de Helsinque. Ex-operário da indústria nacional destruída, ele agora quer ser empresário de música, ter uma conta bancária (o que fica difícil por não se lembrar do próprio nome) e ter alguém com quem compartilhar o próximo inverno. Todos vivem num limbo, na ressaca da globalização, esse conto do vigário monumental que acabou com os países e enriqueceu meia dúzia de espertalhões.

HUMANIDADE - Foi isso o que eu vi ontem bem no horário do debate na TV aberta. Preferi viajar para Helsinque, num filme encantador e memorável, sem aquelas ridículas cenas de blockbusters americanos (onde sempre há, obrigatoriamente, desculpe insistir, tenho verificado isso diariamente, a cena do mijo, seja em que momento for do filme). No trabalho feito pelos finlandezes, ninguém mija em cena, ninguém explode coisas e sai correndo com a cara séria e o olhar cool, Há humanidade em cena, gente precária. Não há galãs nem estrelas, mas atores, atrizes, músicos, e um cineasta de primeira. Walter Salles adorou o filme e disse que era o melhor dos últimos tempos. Quando vi essa frase na locadora, fiquei ainda mais resolvido a ver. Pois Walter Salles já nos deu tantos belos filmes e seus textos e opiniões sobre cinema e a situação política é sempre de primeira. Mas não fui pela recomendação, fui porque estava fora do circuito, porque da Finlândia nunca tinha visto nada.

PERGUNTA - O debate? Só vi o início. "Sua pergunta é muito importante, Rutilene". Zap!

RETORNO - Imagem de hoje: Kati Outinen e Markku Peltola em cena de "O homem sem passado". A resistência em tempos sinistros.

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