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27 de outubro de 2006

OS MATERIAIS DO SONHO






EXTRA: A publicação no Comunique-se da resenha de Urariano Mota sobre "O Refúgio do Príncipe - Histórias Sopradas pelo Vento", provocou o seguinte comentário de Pedro Bondaczuk, editor do espaço Literário deste site de e para jornalistas: "Perfeita a análise das crônicas de Nei Duclós, um autêntico mestre do gênero, que precisa ser lido e estudado por todos os que pretendam se aventurar nesse campo literário. Parabéns a ambos. Ou seja, ao Urariano, pela sua lúcida análise e ao Nei Duclós, que a suscitou". Quando um retorno desse nível acontece, o autor só tem a agradecer e ficar emocionado. A seguir, a crônica de hoje:

A realidade define o perfil dos sonhos. O que vivemos, onde trabalhamos, com quem conversamos, por onde trafegamos formam a massa que se cristaliza na imaginação sem controle que é sonhar, dormindo ou acordado. Não dominamos o ofício do sonhar, criatura autônoma, mas totalmente vinculada ao mundo físico formatado por nós e nosso destino. Por mais que você delire, é o real velho de guerra que enche todos os vãos do teu edifício virtual e não adianta espernear: na outra encarnação, não foste Julio César.

Por que a realidade é tão esnobada por nossas certezas sobre arte? Porque ela nos desafia e assusta, exatamente por ser a pobreza amarrada a um burro de carga. A canga bruta faz com que fiquemos à parte, de olho vidrado num céu de vãs esperanças. O real é como lixo no quintal da infância. Estamos sentados ao lado de coisas sem uso, com um graveto na mão para pesquisar o que tem no punhado de cacarecos. Talvez abaixo de tudo haja um pouco de terra macia, e lá possamos retirar a pedra lisa e transparente. Seria o nosso sonhar, não fosse a pedra o fruto mais bem acabado do chão que nos serve de sustento. Talvez o sonho seja isso: de tanto se impregnar de terra, ele se transforma numa ametista, que olhamos contra o sol para ver se a luz se comporta como bailarina.

MEMÓRIA - Entre os materiais do sonho, existe a memória, que é o acervo de vivências reais cruzando o tempo e que se acumulam em você de maneira inexorável. É como lixo orgânico, capaz de servir de insumo para pensamentos e ações saudáveis. Hoje há um rio de memórias percorrendo os textos. Pessoas ainda jovens sentem saudade do país que eles vislumbraram e lhes escapou das mãos. Pomares, jogos infantis, bairros, tudo o que é sólido na lembrança é invocado pelos que ainda têm uma légua de tempo para cumprir. É a certeza de que o mundo se acaba e que para se manter vivo é preciso trazer de volta o que nos foi levado. Nem se trata mais de saudade, mas de sobrevivência.

CHOUPANA - Outro material do sonho é a esperança. Se você a perdeu, é a hora do pesadelo. Necessitamos de momentos mínimos para cevar janelas para sair um pouco de tanto sufoco. O problema é que a esperança, como tudo do sonhar, vêm da realidade e se esta não te dá uma chance, fica difícil encontrar um espaço para tua vontade de transcender tudo, com tuas palavras, inspiração, coragem, tesão. Quando o real conspira contra nós, a esperança se ilude com alguns acenos, mas acaba caindo na mesmice. A saída é romper, na realidade, o que nos limita, mas toda ruptura inclui risco. Cuidado, há um farto desequilíbrio por toda a parte. Quem sabe em outras pessoas existe mais madeira para essa choupana à beira-mar chamada esperança, em que é possível encarar o mar com alegria, enquanto a presença alheia compartilha conosco o sonho de estar vivo.

LANÇAMENTO - O leitor chegou ontem, no meu lançamento, se identificou como Gastão e me alcançou o livro que tinha comprado, para que eu autografasse. Disse que gostava do que escrevo pelo cuidado com a linguagem, que hoje está atirada por aí. Lê meus textos no Diário Catarinense e assim como chegou, saiu. No evento, fui brindado com presença da família Paulo Ahrenhardt, representada pela jornalista Janaina e o seu pequeno Eduardo, de nove meses, que foram levar seu abraço para o autor. Pelo celular, recebi os cumprimentos de Paulo Ahrenhart, marido de Janaina e pai de Eduardo. Paulo mexeu profundamente no mercado jornalístico de Florianópolis ao assumir como editor-chefe do jornal Notícias do Dia.

Ao meu lado também contei com a presença de Marlon Assef, homem de Livramento que eu, só para implicar, digo que é um bairro da Grande Rivera (ele ri, o fronteirista). Marlon e Janaina são mestrandos em História na UFSC e a conversa correu solta e cheia de idéias e planos. Eis o gesto carinhoso de pessoas queridas, que gostam do que escrevo e sabem o quanto é importante levar um abraço, uma palavra de estímulo. É bom ter ao lado pessoas que não se conformam com a imobilidade e tudo fazem (ou pelo menos, sonham) para que o mundo gire.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: cena do filme Geração roubada (2002), de Phillip Noyce. Crianças fogem, na Austrália dos anos 30, do racismo inglês. Elas tinham um sonho: voltar para casa. Para isso caminharam 2.400 quilômetros, despistando os rastreadores e seguindo a longa cerca que dividia o país entre fazendeiros e as "pragas" naturais. Filme maravilhoso pontuado pela música de Peter Gabriel.2. Mestre Moacir Japiassu coloca trecho do meu poema "Surrei a vida" como epígrafe da sua coluna Jornal da Imprença desta semana. No seu Blogstraquis, o poema, que faz parte do meu livro "No Meio da Rua" (L&PM, 1979), na íntegra. 3. Deu na Folha de hoje: Júlio Medaglia, maestro: "Duprat foi bem mais que um músico, foi um filósofo bem-humorado. Infelizmente se desencantou com a porcaria que a música brasileira virou depois dos anos 60 e 70, e preferiu ficar surdo. Foi um protesto contra a barbárie. A morte dele também é um protesto..."

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