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11 de janeiro de 2005

O DESPREZO PELA PAISAGEM

Esporte radical é o desprezo pela paisagem. O que é um rally senão jogar areia em cima do nada, passar voando sobre casebres e vilas perdidas e posar para as câmaras? Para que subir o Aconcágua senão para dizer que venceu a montanha, apesar de todo o papo politicamente correto de respeitar a natureza? Faz parte da arrogância do nosso tempo, em que as pessoas acham que tudo podem. Ficam testando os limites do ser humano, iludidos que poderão espichar esses limites até o infinito. O maremoto ensina: a paisagem não é tão dócil, pode te destruir facilmente. Para mim, isso é falta de infância: o assombro e o medo que a natureza impunha sobre nós fazia com que jamais desprezássemos um só graveto. Havia lobisomens, bruxas, assombrações. A lua estava tão perto que parecia cair. Tudo isso sumiu da percepção das pessoas criadas em apartamentos e que ficam desafiando os gigantes como se não houvesse perigo de retaliação.

REPORTAGENS - Minhas reportagens favoritas são aquelas que não consegui fazer. A mais antiga e importante é sobre o rio Pirajussara, em São Paulo, que teria o título de Não se mata um rio. Morei perto dele quando ainda estava a céu aberto e fazia estrago todos os anos por esta época do verão. Depois colocaram uma tumba em cima, a avenida Eliseu de Almeida, mas o bicho é selvagem e continua vivo, arrasando quarteirões. É um rio enorme, que cruza a cidade. Seria uma matéria sobre a judiada bacia hidrográfica paulistana e o Pirajussara seu principal personagem. Até hoje lembro o estupor da minha primeira visão do Tamanduateí. Vi o grande rio pela primeira vez depois de anos morando em São Paulo. Era época de cheia e o animal estava até a borda, correntoso como ele só. Ontem, assisti a um resgate de um homem desesperado que brigou com a família e se atirou no Tamanduateí. Foi difícil resgatá-lo. Pois esse é um rio fantástico, completamente desprezado pela megalópole em ruínas. Um rio é uma bênção. Anderson Petroceli me envia algumas fotos que fez na minha visita a Uruguaiana e lá aparece o Uruguai em sua plena majestade. As fotos foram feitas a partir do Colégio Santana, quando Anderson, Tabajara Ruas e eu visitamos o irmão Arno, nosso professor de História do Colégio. O rio, a ponte, a Argentina do outro lado: a presença da paisagem respeitada por todos os habitantes daquela região. Não se brinca com o mar, advertiram os pescadores do Índico. Nenhum pescador entende o desplante dos banhistas. Parece que nem sei. Os caras se atiram alegres na água como se estivessem num play-ground. Estão puxando as barbatanas do gigante. Ele pode explodir. Corra que o frio da montanha pode cair 35 graus em poucos minutos. O rally Paris-Dacar matou um ontem. Desça a cachoeira pendurado numa cordinha para nós ver. Atire-se no abismo com um mochilinha nas costas. Mostre que você é Deus. Saia no horário nobre. Mate-se para provar que é imortal.

RITA - A reportagem que mais gostei de não-fazer é uma que me pautaram no Estadão e que era sobre os ricos de São Paulo. Era tão absurda e cheia de exigências que quase desisti na hora em que vi a pauta. Mas cheguei a insistir e não deu outra. Enviei uma carta para a redação (eu era frila) e disse que abria mão da pedreira. Tinha que entrevistar os Suplicys, por aí. Coisa horrível. Talvez o melhor da reportagem seja imaginá-la e depois ir dormir. Pois um texto pronto é sempre frustrante. Toda reportagem que consegui fazer me deixou assim assim. O que conseguia apurar era monstruoso de tanta coisa (medo de falhar em algum ponto). Sintetizava tudo, caprichava, chegava a me emocionar numa primeira leitura. Depois que a reportagem saía, adeus. Até hoje lamento um perfil que fiz da Rita Lee para a revista Nova e que está no ar na Internet. Foi toda reescrita, ficou muito ruim. A primeira versão era melhor, mas a editora achou que estava muita séria e resolveu buchinchear um pouco. Colocou até o detalhe dos chinelinhos da cantora, coisa que eu nunca colocaria. Lembro que, no texto original, linkei Rita com São Paulo, bem antes da música Sampa e isso ainda me deixa mais puto. Sempre tem um boi corneta para te cortar as asas. Mas a Abril era assim: camisas quadriculadas bufantes, peitos de pomba, olhares para o infinito, aristocracia total. Hoje, não sei. Nunca mais entrei lá. Sorte que anos depois publiquei quatro páginas de ouro sobre Rita na Istoé. Essa não está na Internet.

REVELAÇÕES - Uma vez tentei fazer uma capa para a Bravo! sobre o Edu Lobo. Parei na gendarmeria que o cercava na época (uns tres anos atrás) e que nem conhecia a grande revista cultural criada por Wagner Carelli e que agora caiu nas garras da Abril. Fico cismado com a ausência do Edu na mídia. Li um trecho de entrevista de Chico Buarque dizendo que está preocupado ou impressionado, não lembro, com o avanço do obscurantismo e do reacionarismo das pessoas. É efeito dominó: a ausência do talento e da grandeza estimula a burrice e ajuda o retrocesso. Você abriu mão de aparecer na mídia, Chico. Precisa comparecer, senão todos os espaços serão tomados pelos chitãozós e chororinhos e moniques evans e tudo o mais. Nenhum especial de fim de ano com grandes artistas. Só o Roberto Carlos aparece. O resto é sangalice pululante. Grandes artistas precisam revelar novos grandes artistas. Se deixar na mão da canalha, só vem merda. Elis nos trouxe Belchior, Renato Teixeira, entre tantos outros . Nara Leão nos trouxe Betânia, Caetano e este Gal. Hermínio Belo de Carvalho ressuscitou Cartola. Não é hora de descansar, como disse uma vez Dom Helder Câmara, numa entrevista a Sérgio Pinto de Almeida, na Folha dos anos 70. O Brasil continua na ditadura.

RETORNO - 1. Vi no Esporte Espetacular da Globo uma prova do tal triatlo, feminino. Fiquei alarmado com a brutalidade da prova. As gurias nadavam, depois pedalavam e ainda por cima corriam no asfalto quente. Pois não bastava. Era apenas a primeira bateria. Foram três! Isso parece assassinato. Como é que as criaturas se submetem a semelhante tortura? Depois vêm as materinhas sobre os exageros da paranóia esportiva, com gente morrendo por todo o lado. Vamos instaurar a Grande Prova de Rede. Já tenho boa quilometragem de ficar na rede na varanda. Estou no páreo. 2. Esqueci de colocar como o pior comercial do ano o do Beto Carrero Word. Ganhou dos seus principais concorrentes, o Beto Carrero Windows e o Beto Carrero Linux.

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