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12 de janeiro de 2005

O REFÚGIO SELVAGEM

Devorar a paisagem para iludir o próprio pânico de estar vivo é a fonte da atual onda dos esportes radicais. Está todo mundo confinado pelo medo, que gerou as cidades insuportáveis, convivendo com vizinhos inóspitos e isso parece não ter solução. Então parte-se para a agressão ao que resta de selvagem no planeta, para dizer: posso estar lá, posso sair desta situação, posso dominar o que não domino aqui, no inferno urbano (que pode ser uma monótona cidade do interior). Nenhuma montanha te escala, então para que subir até ela? Os morros são domesticáveis, viram favelas, mas a montanha é uma divindade. Ela guarda uma avalanche, um vento mortal, uma temperatura impossível, mais de mil abismos. A montanha é o jeito de a terra dizer: há limites para você, comporte-se.

DESERTO - Ontem, morreu mais um no rally do deserto. Ficou para sempre na paisagem que desprezou. A história do sujeito é lapidar. Aos 47 anos, tinha feito aquele trajeto 13 vezes, venceu duas. Antes da última prova, anunciara sua aposentadoria, mas a vaidade o chamou de volta. Tombou a 170 quilômetros por hora no meio do nada (Não há nada no deserto, diz o príncipe Feisal, interpretado por Alec Guiness, em Lawrence da Arábia, o maior filme de todos os tempos). Sempre me pergunto o que quer dizer entrar numa máquina, ultrapassar todos os limites de velocidade para vencer o próximo. O que há de esporte nisso? Para mim, esporte é o futebol, uma criação genial do espírito humano, que cria um ambiente à parte para ser jogado e baseia-se na tensão geométrica entre retas e curvas. Isso é realmente humano. Mas ter 10 milhões de dólares para doar aos pobres da Ásia, como aconteceu com o Schumacher, por estar há anos pilotando carros de corrida, me parece um mistério total. Já não há carros suficientes neste mundo? Mortes aos milhões em todas as ruas e estradas com essa invenção hedionda, enquanto vivemos ermos de trens, outra grande invenção, em que o transporte é limitado por uma via pré-fixada, que agride ao mínimo a paisagem. O trem é eterno, mas o carro vai desaparecer um dia. Meter-se numa cabine dessas geringonças e desenvolver 300 quilômetros por horas em trajetos catatônicos é tão estúpido quanto deformar o corpo com a radicalidade esportiva. Vejam as ginastas olímpicas, me parecem deformadas. E os nadadores, com aquele peitoral ridículo e triangular, não são monstruosos? Sem falar na cara angulosa de montanhistas e corredores. Todos se destroem na busca incessante de recordes e vitórias. Decreto para todos uma boa quilometragem de rede. Da rede, dá para ver a montanha. A minha se chama Majestade.

TREINAMENTO - O esporte substitui completamente o estudo. As pessoas se destacavam em primeiro lugar na sala de aula e em segundo na quadra. Isso foi invertido totalmente. Fiquei sabendo que mais um jogador de futebol saiu de ambulância do campo, nesse torneio São Paulo Júnior. O cara teve um ataque epiléptico. Não pode jogar futebol. Mas se não praticar esporte, qual sua posição? Muitas vezes, qual seu futuro? O esporte permite apenas a ascensão social lotérica, o que é fonte permanente de conflito social. Para um sujeito como Junior Baiano ganhar 60 mil reais por mês, quantos pastam no anonimato? Já o preparo que a educação dá é muito mais democrático, isso se ainda tivéssemos uma sociedade que valorizasse as pessoas que suaram para ter acesso ao conhecimento. Temos hoje o treinamento, que subsitui a formação. O treinamento é algo animal, serve para adaptar as pessoas aos ditames do mercado. O que mais existe são as linguagens corporativas hegemônicas. Você precisa aprender a falar alguma língua. No esporte radical jovem light é galera-irado-iuhúú, conforme reproduz a mídia sem parar, já que ela é a mais interessada nessa joça.

PAREDÃO - Falo para o amigo Urariano que os médicos não gostam da língua, por isso inventaram uma à parte, absolutamente impronunciável. Não consigo engolir a explicação científica do maremoto, de que houve uma fricção ou sei lá o quê entre duas placas tectônicas, que provocou o terremoto no fundo do mar. Duvido que hajam placas que bóiam numa coisa chamada magma. Quando desconstruirem essa e outras besteiras, como o tal big-bang (que ainda está fazendo ruído, ha ha ha, conta outra), lembrem de quem não acreditou em nada. Prefiro a linguagem telúrica, poética, a que foi construída em milênios para estabelecer o convívio entre a humanidade e a paisagem. O maremoto para mim foi provocado pela criatura viva que é a terra durante o sono: ela mudou de lado e pronto. No pico da montanha, 35 graus negativos te esperam. O paredão de pedra pode te pegar no meio do salto. Quando entro no mar, rezo. Depois conto meus conflitos. Por fim peço que lave meu espírito de todo o mal. No meio disso tudo, me divirto. A paisagem não dá a mínima bola para você. Você é que precisa saber como chegar até ela. Desprezá-la não é um bom expediente.

RETORNO - Minha implicância com os esportes radicais gerou algum retorno. Nada como a polêmica. Sempre fui contra, mesmo aos vinte anos. Eu achava que os esportes em geral eram uma forma de discriminar os mais fracos e despreparados. Nós, os ruins de salto, corrida, levantamento de peso, nos vingávamos tirando o primeiro lugar nas inúmeras matérias. Os craques ficavam furiosos e nos perseguiam no recreio. Hoje não tem nada disso. É preciso entrar em campo e chutar canela, senão ninguém nota você. Acabaram as notas, as reprovações, os estudos. Nade, corra, pedale: ainda é a primeira bateria. Forças!

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