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24 de novembro de 2004

TOM CAVALCANTI ACERTA NO VEIO


A comédia é a arte de provocar o riso por meio de uma atuação totalmente fundada na seriedade. Buster Keaton jamais movia uma linha do rosto. Chaplin fazia um personagem que se levava a sério, por isso era engraçado. Lição jamais aprendida por Jim Carrey, que debocha da própria performance, ou seja, ri no nosso lugar, por isso não é engraçado. Em O Infeliz, na TV Record, Tom Cavalcanti acerta no veio ao fazer uma paródia de O Aprendiz, onde denuncia, sem babaquice, a essência do papel do publicitário Justus: o de implantar no Brasil escravagista o escravagismo do mundo corporativo americano. O Infeliz resgata o poder da lucidez popular, que está em baixa no Brasil, pois o povo foi eliminado e no seu lugar foram colocadas contrafações em tudo, na comédia, na música, nas atividades profissionais.

EXCESSO - Fazer no rir no Brasil ainda se baseia nos formatos antigos do rádio. O que impera é o excesso: o homossexual estapafúrdio com o Seu Peru, de Zorra Total; o seu Creysson, no Casseta; o travesti na Praça da Alegria. Um comediante como Seinfeld é inimaginável no Brasil, um cara que faz comédia sem se fantasiar. Tom Cavalcanti acerta porque usa o máximo de contenção para destacar o excesso do personagem de Justus. Sua interpretação pega o que a origem tem de excessivo: o topete, a arrogância, a megalomania, a frieza, a violência. Tom fica sério o tempo todo, o que mata todo mundo de rir. Ele repassa o riso para os espectadores, fazendo com que sua audiência vá para o teto. E Justus torna-se um personagem da comédia ultrapassada, pois no fundo é uma caricatura como as outras, que existem nos programas humorísticos. Fica assim com algum sentido a migração de Tom para a Record. Na Globo, ele estava confinado ao que fez sua fama, a comédia escrachada construída em Fortaleza, terra de grandes comediantes. O seu programa ainda não tinha acertado, pois é difícil vê-lo como um anfitrião comum, desses que trazem as figurinhas carimbadas. Mesmo seu concurso de anedotas é fraco. Mas com O Infeliz, Tom alcança o mais alto nível do humorismo nacional. Deixa a anos luz os enganadores do Casseta & Planeta, que se baseiam inteiramente nos preconceitos e no horror ao povo. O povo foi substituído em todas as instâncias. A música country brasileira (filhote da pior música mexicana e que, de quebra, veste chapéu texano) expropriou a música caipira. Os atores que fingem ser feirantes ou pescadores colocam no lugar do povo a pseudo-aristocracia da classe média. E existem ainda os protótipos, como o mineirinho esperto, o gaúcho que insistem em provar que nada tem a ver com a virilidade (o que causa náuseas no Rio Grande), o professor fajuto, a estudante gostosinha.

ESCOLA - A educação, único caminho para denúncia da mediocridade que assola a mídia, é ridicularizada até o osso. No programa do Enjôo Soares, sempre tem um quadro em que ele reproduz as bobagens escritas por estudantes. A exceção é colocada como regra, e intelectual é nome feio em todas as instâncias. Parece que as pessoas deveriam fugir da condição de intelectual. É essa aversão ao conhecimento e à seriedade que faz com que os grandes pensadores dos nossos dias dificilmente apareçam no vídeo falando alguma coisa. Pelo menos, na chamada TV aberta, que eu considero a verdadeira TV fechada. Há ainda a estética de bordel, de que nos fala Luis Fernando Veríssimo. O desfile de lingerie, do qual o Gilberto Barros abusa na Band (mas existe em outros canais) nada mais é do que exposição pública de carnes. A coreografia de É o Tchan (que, para compensar a genialidade do quadro o Infeliz, apareceu ontem no programa de Tom Cavalcanti) revela a sexualidade a serviço da baixaria, com homens e mulheres imitando movimentos sexuais ridículos. Fale contra isso e será alvo do pior xingamento, o de moralista. A direita usa esse subterfúgio: toda vez que o pensamento progressista faz uma denúncia, é tachado de moralista. O moralismo foi apropriado pela direita, o que é uma tragédia. Como dizia o outro Tom, o Jobim, Vinícius de Morais é plural (plural de moral, Morales). O poeta como criatura moral é o feixe de luz que deve inundar a nação, erma de soberania, entregue à sanha dos assassinos da consciência.

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