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28 de novembro de 2004

GRAVETO QUEBRA AO SOL DA MEIA NOITE


Os espíritos guerreiros fazem um aglomerado parecido com os tufos de árvores iluminadas pela lua cheia. Vislumbro a brasa de um cigarro e o volume mais escuro das montarias. Não há como ver os rostos apesar do dia limpo em pleno começo da madrugada. Mal ouço os cascos e alguns pigarros. A lenta viagem cruzando o pampa me transporta até o grupo. O olhar fica preso na janela do ônibus, mas o vidro não é parede para a vontade de saber o que está acontecendo. Descubro então, pelo barulho de um graveto quebrado, o local onde há uma reunião entre adversários, juntos diante do imenso tombo da noite.

MILAGRE - Vozes contidas pela pressão do momento repassam os acontecimentos. Não há mais guerra no Outro Lado. Todos estão um perante o outro, com suas adagas, cartucheiras, chapéus, cavalos. Onde não há mais luta nem sangue, resta o resgate. O assunto é o estrondo que acometeu a cidade dez anos antes. Espíritos desse campo assombrado pela visita que faço a Uruguaiana sussurram e cada um traz o testemunho de alguém que viu o cogumelo de fogo subindo pelo céu azul da cidade, em 1994, perto dali. Nas mesas que existem nas calçadas, nas esquinas de conversas do território que ainda cultiva, apesar dos conflitos evidentes, a paz na diferença, as narrativas sobre aquela explosão fazem parte do tema dos guerreiros encobertos pelo dia noturno. Eles reproduzem as falas sobre o milagre que foi a sobrevivência do atual patrono da 30a. Feira do Livro da cidade, que começou na última sexta-feira dia 26. O poeta Ubirajara Raffo Constant está elegante na sua roupa clara, seu cabelo caprichado, sua voz que entoa Castro Alves com o tom da fronteira. Ele lança seu romance Pampa em 23, que já nasce clássico e enche os olhos de diretores de TV, secos por História. Peço-lhe um autógrafo entre frases que ele mal ouve, seqüela daquela explosão que destruiu sua casa, episódio que não comenta, como um veterano de guerra que evita o toque de clarim porque sabe o quanto de vidas custou cada nota. Os vidros do apartamento tremeram, comenta um. O repórter Chico Alves (homônimo do rei da Voz que até chegou a ganhar um dia direitos autorais por isso, o que é pura verdade) foi o primeiro a chegar, diz outro, e irradiou os acontecimentos. Vi Bira Tuxo (que é esse o apelido do patrono querido) sair do meio da fuligem, lembra Tabajara Ruas, que estava vendo televisão quando assistiu ao milagre ao vivo. Tudo isso é comentado pelos guerreiros da sombra e eu escuto abismado, a pé, olhando para cima os cavaleiros de nenhum rosto. Eles me olham com deferência. Algo aconteceu agora, e não mais dez anos antes. Um tropel vindo de longe vem me anunciar o inesperado.

ATENTADO - A viagem continua irresistível campo adentro e o ônibus desliza num chão de veludo. O olhar se debate no vidro como abelha que tenta voltar ao ninho. Mas continuo lá no miolo da roda, de corpo inteiro, enquanto sobe o balão de luz branca para demarcar o zênite. Chega então o mensageiro. Apeia para me olhar frente a frente. Inclina-se em minha direção e me reporta o covarde atentado que o jornalismo brasileiro sofreu em São Paulo. Tenho um sobressalto! Atacaram Marcelo Min, pelas costas, com uma barra de ferro! Pergunto, desesperado, se o Olhar Absoluto se encontra fora de perigo. O mensageiro balança a cabeça dizendo sim, mas continuo em pânico. Amarrado pelo hábito ao computador, me sinto desolado naquele território nu, onde os lutadores continuam de prontidão, apesar do permanente concílio que promove, de maneira precária, o entendimento. O estrondo dez anos antes e o barulho da barra de ferro vibrado pelo mastodonte na mais privilegiada cabeça do fotojornalismo brasileiro me deixam fora de mim. Sou sacudido pela memória e pela notícia. Imediatamente me vem à mente o primeiro telefonema que dei para Marcelo Min convocando-o para reportar o chão de fábrica.Fiz uma provocação: quero ver se me revela o que está emergindo nos porões das indústrias, no mundo produtivo brasileiro sucateado pela predação pirata internacional. Marcelo ri para seu novo editor e futuro amigo pela primeira vez. Ele topa, ele está pronto. Lembro Thais Rebello, diretora de arte, dizendo que Min dá raiva pois a vontade é publicar todas as fotos que tira de qualquer evento, pois uma é melhor que a outra. Ele não erra um clic, diz Thais. E lembro a ética de Min me apontando inúmeros talentos que eu desconheço, tornando-se parte de um grupo poderoso de olhares de denúncia e de extrema iluminação sobre o Brasil em guerra civil. Queria passar-lhe um telegrama, digo no meu delírio. Mas meu olhar ainda se debate na janela do ônibus.

VIGÍLIA - Chegamos no amanhecer agradável de um dia claro de primavera, e fomos então visitar Miguel Ramos, ator e amigo de décadas, que nos brinda com um chimarrão. Ele fica feliz como menino diante dessa novidade, nossa presença naquele rincão eterno. Naquela noite, Miguel me falava da importância do amor para o país perdido na violência. Há incúria demais, barbárie demais, me diz me olhando fundo. Precisamos de amor, porque tudo se resume ao amor. Em Uruguaiana, penso eu, só tenho amigos. Pessoas que não pensam da mesma maneira, que se digladiam o tempo todo com palavras e são companheiros de jornada. Se espicaçam, se cutucam, se desafiam, mas gargalham todos ao mesmo tempo. Falam em eleições, em gestão, em ruas, em prefeitura. Nas calçadas largas, as pessoas recolhidas em sua solenidade digna te cumprimentam quando te reconhecem, e quando nada sabem de ti aguardam um gesto para só então te olhar nos olhos. Há respeito no andar, nenhuma arrogância. E um rio de afetividade me cerca como um grupo de cavaleiros que um dia fizeram História. A lua cheia continua presente na cidade. As cicratizes estão abertas. Mas há admiração, há reconhecimento e escritores de todas as palavras confraternizam. Chamam isso de evento. Eu digo que é magia. Não fosse o estado atual de vigília e aprofundamento das sombras que seu reúnem no pampa para tecer comentários sobre os acontecimentos, haveria retaliação. Uma vanguarda seria despachada, de trem (como se trem ainda houvesse) para São Paulo. Montariam guarda no hospital onde Marcelo Min foi tratado. Facas brilhariam diante dos flashes. Rostos impassíveis estariam olhando para possíveis inimigos. Fomos convocados, diriam. Somos solidários ao repórter guiado pela coragem.

RETORNO - Viajei a convite da Prefeitura Municipal de Uruguaiana. Tive o prazer de autografar meu romance para o prefeito Caio Repiso Riella, homem público que coloca a cultura em destaque na sua administração. Fico imensamente agradecido ao secretário da Cultura, Bebeto Alves, e à sua equipe, Ricardo Peró Job, Marilda Peró e a todos os profissionais reponsáveis pela Feira do Livro, que há 30 anos é realizada na cidade. Nas próximas edições, o Diário da Fonte estará reportando algumas das alegrias dessa visita, onde dei palestra e autógrafos e fui cumulado pela generosa afetividade dos conterrâneos. Conheci novos amigos e convivi por alguns dias com gente da minha mais alta consideração, como o poeta Luis de Miranda, Rubens Montardo Junior, Anderson Petroceli (que me levou a Libres), e fui agraciado com vasto espaço nos jornais locais e também na rádio, graças a Miguel Ramos (com seu ótimo programa Contraponto, na Líder) e ao jornalista Everaldo Jacques (programa diário na São Miguel). Além, é claro, da conversa amiga com vários escritores da terra como Colmar Duarte (com lançamento de belíssimo livro de poemas pela Editora Movimento, que vou comentar), Vera Ione Silva (que está de volta à terra), Fernando Pereira Júnior (colega e amigo de longa data), entre muitos outros.

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