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23 de novembro de 2004

CARTAS QUE ILUMINAM

Uma carta chega para espantar as sombras. Quantas vezes não aconteceu isso? Lembro da caligrafia da minha mãe, me trazendo de volta o que me formou, com aquele verve que tornava a Dona Rosinha uma das pessoas mais queridas de Uruguaiana, a terra que volto a visitar neste próximo fim-de-semana, em mais uma Feira do Livro da cidade. Outra carta do meu pai, emocionado por eu ter escrito uma carta exclusiva para ele e que sempre se despedia com a frase do pai, amigo certo, que é uma expressão muito usada no Rio Grande, terra da solidariedade e da franqueza. Lembro também as muitas cartas que recebi de Caio Fernando Abreu, que sempre me colocava a par do que acontecia na vida dos escritores da nossa geração. Foi Caio quem me levou pela mão, junto com Juarez Fonseca e Cláudio Levitan, para o Instituo Estadual do Livro/RS, onde estreei com meu primeiro livro, Outubro. Agora é a vez de Cláudio Levitan novamente, que me envia algumas palavras de ouro:

MILONGA - "Nei. Ainda estou zonzo com tanta emoção. Aquela tarde maravilhosa em Porto Alegre. A feira do livro sempre é premiada com muita chuva, mas tem dias de sol e brisa que a tornam o lugar mais lindo do mundo! Foi justamente o que ocorreu no teu dia. Que linda tarde de primavera acolhendo nosso encontro. Saí de lá feliz por reencontrar amigos de tanto tempo atrás e de te ver o mesmo, o sempre poeta cheio de melancolia e humor!! Não protelei a leitura do teu Universo Baldio, já saí lendo ali mesmo no ônibus e fiquei com ele todos esses dias sorvendo cada parágrafo. Cara!! Que maravilha um poeta tornar-se romancista! Tudo é poesia e tudo é história. A vida toma uma outra dimensão e já me veio uma angustiosa espera pelo novo livro. Conta de ti, fala de ti, deixa tua mala/alma rolar ladeira abaixo com suas folhas voando voando como teus pássaros em liberdade plena, com teus angustiosos debates internos sobre as escolhas e nos permite acompanhar teu deleite aos sorver palavras e pensamentos! Na primeira parte de teu livro (o primeiro tempo), lembrei-me do caio que falou daquela mesma época em seus livros sob uma ótica tão dilacerada e corajosa, com seu olhar castanho escuro, e te senti parceiro daquelas viagens, mas transitando com outra melodia igualmente dilacerante sob teu olhar azul claro. E senti saudades de outros livros teus sobre este mesmo período. Saiu com tanta precisão e humor que reviver aquele tempo foi um enorme prazer. Quando iniciou o "segundo tempo", descobri um outro nei, cinematográfico, em que a fantasia não vem para aliviar mas para reconstruir a vida. O tempo não é obstáculo para a palavra. A história é fantástica como todo o pampa, e como a vida de uma pessoa. Pura poesia. Emocionante. Tenho falado a todos, leiam o Universo Baldio, é uma milonga falando sobre o Brasil, sobre São Paulo, o sul do Brasil, sobre o interior do brasileiro. Cara, gostei muito!!! E gostei muito de te ver com o mesmo sorriso gostoso entre divertindo-se com tudo e consigo mesmo, mas dolorido com a tragédia geral. Há sempre esperança nas tuas palavras. E é isto o que vale" (Claudio Levitan).

VIVÊNCIA - Tudo é representação e linguagem. Vivemos para dar nosso testemunho, para incluir os personagens da nossa vida. Para que serve a literatura? Para que nada se perca, e todos os territórios palmilhados tenham existência real para os contemporâneos. Convivemos com muitas pessoas e a maioria delas desconhece o que realmente somos, e isso acontece com cada um de nós. Costumamos guardar pessoas em gavetas de percepção. Mas uma visita, uma conversa, uma carta rompem a barreira e nos despejam na praia habitada pelos pássaros de múltiplos acontecimentos. O tempo se esvai como areia e temos, como disse Drummond, apenas duas mãos e o sentimento do mundo. Num almoço com Juarez Fonseca (onde recontatei aquela afetividade que nos encanta) descobri seus inúmeros projetos para livros, ele que passou a vida inteira escrevendo sobre cultura brasileira. A cultura somos nós, seres datados que revelam nos livros seus segredos e aventuras. No livro A Construção das Ruínas, que Carlos Eduardo Caramez lançou recentemente, descobrimos esse sentimento de exclusão que nos mortifica. Mas sua poesia resgata iluminações das sombras. Num jantar reencontro Uda, o mítico artista da fotografia Leonid Strelaiev. Mal nos cumprimentamos e começamos a conversar, como se não tivesse passado vinte anos, nós que compartilhamos tantas conversas e viagens. Tudo cabe no paiol, de imagens e à noite, na cervejada, reencontro Olívio Lamas, outro grande fotógrafo que está expondo seus trabalhos numa galeria portoalegrense. É importante o registro de todas essas vivências, pois o que fazemos será um dia lembrado como a época em que não deixamos de lado o coração. As pessoas são cartas ao vivo, que nos iluminam com suas presenças e a alegria de estarmos sempre presentes.

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